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Bricolagem filosófica
"Cinismo e Falência da Crítica" mescla várias disciplinas
para defender que o planeta vive hoje
num estado de exceção
EVANDO NASCIMENTO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Lê-se com interesse o livro "Cinismo e Falência da Crítica", do professor de filosofia da
USP Vladimir Safatle.
Vale assinalar que o próprio
autor reconhece na introdução
possíveis lacunas.
Ressalta o fato de o estudo
mesclar linguagens de várias
disciplinas: filosofia, sociologia, economia política, literatura, lingüística pragmática, mídia, moda, estética, música e
psicanálise.
Dentro da autonomeada
"bricolagem intelectual" freudo-marxista, são convocados,
num grande amálgama, entre
outros, Hegel, Lacan, Marx,
Freud, Adorno, Habermas,
Austin, Althusser, Deleuze,
Bakhtin, Foucault, Lyotard,
Sloterdijk, Zizek, Butler,
Agamben...
Cabe indagar o que Foucault
e Deleuze estão fazendo num
texto que retrocede a uma filosofia da consciência hegeliana,
aliada a uma teoria psicanalítica lacaniana, sem que a problemática do inconsciente seja
adequadamente desenvolvida,
o que por si só traria inúmeros
problemas de lógica argumentativa; e sem que tampouco se
refira ao falocentrismo bastante criticado de Lacan, com o
apego à "função paterna".
Difícil é imaginar que a microfísica do poder foucaultiana
possa se coadunar com a visão
totalizante e unitária do poder
como centro de Safatle, por
meio de recurso ao rótulo impreciso de origem norte-americana, praticamente inexistente na França e em outros
países europeus, de "pós-estruturalismo".
Crise de legitimação
Do mesmo modo, num único
capítulo três teóricos de peso
são julgados sumariamente a
propósito da paródia, do simulacro e da transgressão, relacionados ao "cinismo" e à "plasticidade" identitária contemporânea: Gilles Deleuze, Giorgio
Agamben e Judith Butler.
A tese principal é a de que o
mundo atual estaria mergulhado numa profunda anomia, em
que vigora cada vez mais o estado de exceção, sustentado pelo
"cinismo" generalizado, o imperativo do "gozo" e a conseqüente falência da crítica.
A impressão que se tem com
esse tipo de raciocínio é que teria havido na história do globo
um período de total e pleno direito, após o qual ocorreria o
advento de sociedades anômicas, em que predomina a crise
de legitimação.
Importa saber se o "cinismo"
-de resto, muito mal explicado
em sua vinculação com a Grécia
Antiga, tratando-se superficialmente a história complexa do
termo e sua mudança de sentido- é o melhor instrumento
para analisar a contemporaneidade, pois isso também levaria
a crer que as relações sociais
possam sempre ocorrer, de modo exclusivo e sem falha, por
meio da seriedade e da transparência, como seria idealmente
desejável.
Ideologia
Em vez de um processo degenerativo geral, caberia pensar
no que hoje, em razão dos mecanismos disseminados de poder, impede a compreensão de
si e do outro, numa convivência
pautada por valores solidários,
dentro da melhor tradição democrática, mas sem utopias.
Outro problema conceitual
relevante é o recurso freqüente
no livro ao termo ideologia,
apenas definido por vias negativas, afirmando que não se trata mais da concepção marxista
como falsa consciência nem como fator de reificação.
Vigora assim uma noção consensual e naturalizada ("ideológica", no sentido marxista
original) de ideologia.
Essa negatividade dialética,
que é mais negativa do que dialética, pois opta claramente por
um dos pólos da oposição, sem
chegar à síntese, propõe uma
"ascese crítica", presa aos dogmas que julga atacar.
O ecletismo filosófico do livro copia o suposto "ecletismo
cínico", numa autêntica performance ironista, a contrapelo da
vontade do autor.
O final do ensaio é patético,
com o investimento amargo na
lógica do pior, recusando-se a
propor soluções, porque "o verdadeiro desespero conceitual
produz uma ação que satisfaz à
urgência. Se ainda não há ação
que satisfaça a urgência, é porque não fomos suficientemente
longe com nosso desespero".
EVANDO NASCIMENTO leciona na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e é autor de "Retrato Desnatural" (Record), entre outros.
CINISMO E FALÊNCIA DA CRÍTICA
Autor: Vladimir Safatle
Editora: Boitempo (tel. 0/xx/11/3875-7250)
Quanto: R$ 36 (216 págs.)
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