São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2008

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Bricolagem filosófica

"Cinismo e Falência da Crítica" mescla várias disciplinas para defender que o planeta vive hoje num estado de exceção

EVANDO NASCIMENTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lê-se com interesse o livro "Cinismo e Falência da Crítica", do professor de filosofia da USP Vladimir Safatle. Vale assinalar que o próprio autor reconhece na introdução possíveis lacunas. Ressalta o fato de o estudo mesclar linguagens de várias disciplinas: filosofia, sociologia, economia política, literatura, lingüística pragmática, mídia, moda, estética, música e psicanálise.
Dentro da autonomeada "bricolagem intelectual" freudo-marxista, são convocados, num grande amálgama, entre outros, Hegel, Lacan, Marx, Freud, Adorno, Habermas, Austin, Althusser, Deleuze, Bakhtin, Foucault, Lyotard, Sloterdijk, Zizek, Butler, Agamben...
Cabe indagar o que Foucault e Deleuze estão fazendo num texto que retrocede a uma filosofia da consciência hegeliana, aliada a uma teoria psicanalítica lacaniana, sem que a problemática do inconsciente seja adequadamente desenvolvida, o que por si só traria inúmeros problemas de lógica argumentativa; e sem que tampouco se refira ao falocentrismo bastante criticado de Lacan, com o apego à "função paterna".
Difícil é imaginar que a microfísica do poder foucaultiana possa se coadunar com a visão totalizante e unitária do poder como centro de Safatle, por meio de recurso ao rótulo impreciso de origem norte-americana, praticamente inexistente na França e em outros países europeus, de "pós-estruturalismo".

Crise de legitimação
Do mesmo modo, num único capítulo três teóricos de peso são julgados sumariamente a propósito da paródia, do simulacro e da transgressão, relacionados ao "cinismo" e à "plasticidade" identitária contemporânea: Gilles Deleuze, Giorgio Agamben e Judith Butler.
A tese principal é a de que o mundo atual estaria mergulhado numa profunda anomia, em que vigora cada vez mais o estado de exceção, sustentado pelo "cinismo" generalizado, o imperativo do "gozo" e a conseqüente falência da crítica. A impressão que se tem com esse tipo de raciocínio é que teria havido na história do globo um período de total e pleno direito, após o qual ocorreria o advento de sociedades anômicas, em que predomina a crise de legitimação.
Importa saber se o "cinismo" -de resto, muito mal explicado em sua vinculação com a Grécia Antiga, tratando-se superficialmente a história complexa do termo e sua mudança de sentido- é o melhor instrumento para analisar a contemporaneidade, pois isso também levaria a crer que as relações sociais possam sempre ocorrer, de modo exclusivo e sem falha, por meio da seriedade e da transparência, como seria idealmente desejável.

Ideologia
Em vez de um processo degenerativo geral, caberia pensar no que hoje, em razão dos mecanismos disseminados de poder, impede a compreensão de si e do outro, numa convivência pautada por valores solidários, dentro da melhor tradição democrática, mas sem utopias. Outro problema conceitual relevante é o recurso freqüente no livro ao termo ideologia, apenas definido por vias negativas, afirmando que não se trata mais da concepção marxista como falsa consciência nem como fator de reificação. Vigora assim uma noção consensual e naturalizada ("ideológica", no sentido marxista original) de ideologia.
Essa negatividade dialética, que é mais negativa do que dialética, pois opta claramente por um dos pólos da oposição, sem chegar à síntese, propõe uma "ascese crítica", presa aos dogmas que julga atacar. O ecletismo filosófico do livro copia o suposto "ecletismo cínico", numa autêntica performance ironista, a contrapelo da vontade do autor.
O final do ensaio é patético, com o investimento amargo na lógica do pior, recusando-se a propor soluções, porque "o verdadeiro desespero conceitual produz uma ação que satisfaz à urgência. Se ainda não há ação que satisfaça a urgência, é porque não fomos suficientemente longe com nosso desespero".

EVANDO NASCIMENTO leciona na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e é autor de "Retrato Desnatural" (Record), entre outros.


CINISMO E FALÊNCIA DA CRÍTICA
Autor: Vladimir Safatle
Editora: Boitempo (tel. 0/xx/11/3875-7250)
Quanto: R$ 36 (216 págs.)




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