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Um eclipse polêmico no Brasil
especial para a Folha
Recentemente, o "Times Literary Supplement" (TLS) reacendeu o debate sobre uma questão
polêmica: a teoria da relatividade
geral foi ou não comprovada no
eclipse de 1919, observado em Sobral, no Ceará, e na ilha de Príncipe, na costa africana?
Em 29 de maio daquele ano,
surgiu uma nova chance para testar a relatividade geral -tentativas passadas mostraram-se infrutíferas, devido ao mau tempo ou a
empecilhos da Primeira Guerra
Mundial. Haveria um eclipse solar. E aí estava a chance de comprovar uma das implicações da
teoria: raios de luz deveriam se
curvar, desviando-se minimamente de sua trajetória, ao passar
nas proximidades de um campo
gravitacional intenso como o do
Sol.
Esse efeito de curvatura da luz,
por exemplo, faz com a estrela seja vista, da Terra, um pouco deslocada em relação à sua posição
verdadeira no céu.
A grosso modo, a relatividade
geral propõe uma medida para o
desvio entre a posição real e a aparente. O número a que chegou
Einstein para esse pequeno ângulo era mais ou menos o dobro daquele proposto no século 17 pela
teoria da gravitação do físico e
matemático inglês sir Isaac Newton (1642-1727).
O Reino Unido assumiu a liderança dessa tentativa de comprovar a nova teoria da gravitação.
Depois de levantamentos, dois lugares foram considerados satisfatórios para a observação: Sobral e
a ilha de Príncipe. Nesta, o céu nublado interferiu na qualidade das
chapas fotográficas tiradas do
eclipse. No Brasil, o Sol se apagou
num dia sem chuvas e várias chapas foram feitas.
A análise das chapas levou o astrônomo inglês Arthur Eddington (1882-1944), líder dos trabalhos, a dar a relatividade geral como comprovada para o mundo
ainda em 1919. Para muitos textos
e livros, a data é histórica. E desse
assento será difícil removê-la.
"O problema que minha mente
formulou foi respondido pelo luminoso céu do Brasil", comentou
Einstein, por escrito, a um repórter, em sua primeira e breve passagem pelo Brasil, em 5 de março
de 1925.
Antes de voltar à questão sobre
a comprovação, vale ressaltar algo
sobre o próprio Einstein: sua certeza quanto à relatividade geral
-e, por consequência, da relatividade especial. Essa certeza levou
a situações cômicas.
Ainda em 1919, depois de a notícia da comprovação ter se espalhado mundialmente, um estudante perguntou-lhe o que teria
dito se a curvatura dos raios de luz
não tivesse sido a prevista por ele.
"Que me desculpe o bom Deus,
mas a teoria está certa", respondeu Einstein.
Uma crença profunda, de natureza semelhante, pode ter feito
Eddington anunciar para o mundo a comprovação em 1919. Mesmo sabendo que os resultados
que detinha só tinham 30% de
precisão, como descreve o físico
americano Clifford Will, no ensaio "The Renaissance of General
Relativity", parte do excelente
"New Physics: A Synthesis" ("Nova física: uma síntese", Cambridge University Press, 1989).
Will é enfático: "os experimentos com eclipses posteriores não
tiveram melhores resultados experimentais; esses mostravam valores que variavam de metade a
duas vezes o de Einstein, e os níveis de precisão eram muito baixos."
Nas páginas do "TLS", de 24 de
setembro deste ano, o físico David
Oderberg, do departamento de filosofia da Universidade de Reading (Reino Unido), reclama de
resenha feita pelo radioastrônomo inglês sir Bernard Lovell sobre
dois livros tratando de eclipses solares. "Estou surpreso por essa repetição acrítica de uma afirmação
questionável, isto é, de que os resultados do eclipse de 1919 tenham de algum modo comprovado a teoria da relatividade geral de
Einstein", frisa na seção de cartas,
num tom indignado e educado.
Oderberg afirma que argumentos contra a suposta comprovação datam ainda de 1922, do livro
"Gravitation Versus Relativity"
("Gravitação versus relatividade"), de Charles Poor, professor
de mecânica celestial na Universidade de Columbia, nos Estados
Unidos. Depois disso, lista oito tópicos que pesam contra a comprovação de 1919.
Entre vários argumentos, ele cita o uso de telescópios impróprios; a grande margem de erro
das medições; chapas fotográficas
nas quais o desvio sofrido pela luz
ao passar perto do Sol estava mais
próximo do valor de Newton; o
fato de Eddington ter desprezado
chapas do grande telescópio de
Sobral; a distorção causada pela
interferência da atmosfera terrestre nas imagens; e também que,
na média, o valor obtido para a
deflexão da luz (o quanto ela se
curva) difere em cerca de 19% do
valor previsto por Einstein.
Ao final, o missivista recomenda a Sir Lovell a leitura tanto do livro de Poor quanto de "The Golem: What You Should Know
About Science" ("O Golem: o que
você deveria saber sobre ciência"), de Hary Collins e Trevor
Pinch, que revela algumas máculas da ciência (a comprovação pelo eclipse de 1919 entre elas).
Se tão fortes evidências, como
as que aponta Oderberg, pesam
contra a comprovação de 1919, fica-se então tentado a formular a
pergunta: por que Eddington a
considerou comprovada?
A partir daqui, tudo passa a brotar do terreno desfocado da especulação. Eddington, pioneiro no
estudo de estruturas das estrelas,
foi o maior divulgador em sua
época da relatividade no Reino
Unido. Conhecia a fundo os
meandros e as implicações daquilo que disseminava. Talvez, como
Einstein, também não tivesse dúvidas sobre a validade da teoria.
Talvez tenha, como se diz popularmente, forçado a barra, por
acreditar que experimentos posteriores mais precisos mostrariam essa validade. Foi o que
aconteceu.
Por fim, uma hipótese bem
mais difícil de provar. Em 1919,
por conta da Primeira Guerra, o
mundo sentia-se destruído. Pode-se afirmar -e isso está nos bons
livros- que Einstein foi o primeiro grande herói do pós-guerra.
Era ideal. Mente assombrosa, já
adepto do pacifismo, preocupado
com a justiça, opositor ferrenho
do racismo e trabalhando para a
ciência, atividade que ainda hoje
se autoproclama "sem fronteiras". Por conta disso e da fama
que ganhou pós-1919, foi a primeira celebridade alemã a visitar
formalmente a França depois do
fim do conflito. Foi recebido com
imenso entusiasmo. Multidões
foram às ruas nos Estados Unidos. "Por que ninguém me entende, mas todos gostam de mim?",
resumiu.
Talvez Eddington soubesse que
um herói nada de mal causaria a
um mundo esfacelado. Talvez tenha visto em Einstein, com antecedência, um pouco do que o físico britânico Freeman Dyson descreve num trecho de "Einstein's
1912 Manuscript on the Special
Theory of Relativity" ("O manuscrito de Einstein de 1912 sobre a
teoria especial da relatividade"),
iniciativa, no mínimo, louvável da
Jacob E. Safra Philanthropic
Foundation.
Dyson relembra Einstein, no
início da década de 1920, andando
pelas ruas no Japão e sendo reverenciado e tocado por todos. Décadas mais tarde, no mesmo país,
ele mesmo testemunhou fato semelhante: dessa vez, o alvo era o
físico inglês Stephen Hawking. O
curto depoimento termina de
modo elegante: os japoneses têm
bom gosto para escolher seus heróis. "Talvez eles tenham de algum modo percebido que Einstein e Hawking são muito mais do
que grandes cientistas. São grandes seres humanos", finaliza.
(CÁSSIO LEITE VIEIRA)
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