São Paulo, Domingo, 05 de Dezembro de 1999


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Um eclipse polêmico no Brasil

especial para a Folha

Recentemente, o "Times Literary Supplement" (TLS) reacendeu o debate sobre uma questão polêmica: a teoria da relatividade geral foi ou não comprovada no eclipse de 1919, observado em Sobral, no Ceará, e na ilha de Príncipe, na costa africana?
Em 29 de maio daquele ano, surgiu uma nova chance para testar a relatividade geral -tentativas passadas mostraram-se infrutíferas, devido ao mau tempo ou a empecilhos da Primeira Guerra Mundial. Haveria um eclipse solar. E aí estava a chance de comprovar uma das implicações da teoria: raios de luz deveriam se curvar, desviando-se minimamente de sua trajetória, ao passar nas proximidades de um campo gravitacional intenso como o do Sol.
Esse efeito de curvatura da luz, por exemplo, faz com a estrela seja vista, da Terra, um pouco deslocada em relação à sua posição verdadeira no céu.
A grosso modo, a relatividade geral propõe uma medida para o desvio entre a posição real e a aparente. O número a que chegou Einstein para esse pequeno ângulo era mais ou menos o dobro daquele proposto no século 17 pela teoria da gravitação do físico e matemático inglês sir Isaac Newton (1642-1727).
O Reino Unido assumiu a liderança dessa tentativa de comprovar a nova teoria da gravitação. Depois de levantamentos, dois lugares foram considerados satisfatórios para a observação: Sobral e a ilha de Príncipe. Nesta, o céu nublado interferiu na qualidade das chapas fotográficas tiradas do eclipse. No Brasil, o Sol se apagou num dia sem chuvas e várias chapas foram feitas.
A análise das chapas levou o astrônomo inglês Arthur Eddington (1882-1944), líder dos trabalhos, a dar a relatividade geral como comprovada para o mundo ainda em 1919. Para muitos textos e livros, a data é histórica. E desse assento será difícil removê-la.
"O problema que minha mente formulou foi respondido pelo luminoso céu do Brasil", comentou Einstein, por escrito, a um repórter, em sua primeira e breve passagem pelo Brasil, em 5 de março de 1925.
Antes de voltar à questão sobre a comprovação, vale ressaltar algo sobre o próprio Einstein: sua certeza quanto à relatividade geral -e, por consequência, da relatividade especial. Essa certeza levou a situações cômicas.
Ainda em 1919, depois de a notícia da comprovação ter se espalhado mundialmente, um estudante perguntou-lhe o que teria dito se a curvatura dos raios de luz não tivesse sido a prevista por ele. "Que me desculpe o bom Deus, mas a teoria está certa", respondeu Einstein.
Uma crença profunda, de natureza semelhante, pode ter feito Eddington anunciar para o mundo a comprovação em 1919. Mesmo sabendo que os resultados que detinha só tinham 30% de precisão, como descreve o físico americano Clifford Will, no ensaio "The Renaissance of General Relativity", parte do excelente "New Physics: A Synthesis" ("Nova física: uma síntese", Cambridge University Press, 1989).
Will é enfático: "os experimentos com eclipses posteriores não tiveram melhores resultados experimentais; esses mostravam valores que variavam de metade a duas vezes o de Einstein, e os níveis de precisão eram muito baixos."
Nas páginas do "TLS", de 24 de setembro deste ano, o físico David Oderberg, do departamento de filosofia da Universidade de Reading (Reino Unido), reclama de resenha feita pelo radioastrônomo inglês sir Bernard Lovell sobre dois livros tratando de eclipses solares. "Estou surpreso por essa repetição acrítica de uma afirmação questionável, isto é, de que os resultados do eclipse de 1919 tenham de algum modo comprovado a teoria da relatividade geral de Einstein", frisa na seção de cartas, num tom indignado e educado.
Oderberg afirma que argumentos contra a suposta comprovação datam ainda de 1922, do livro "Gravitation Versus Relativity" ("Gravitação versus relatividade"), de Charles Poor, professor de mecânica celestial na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Depois disso, lista oito tópicos que pesam contra a comprovação de 1919.
Entre vários argumentos, ele cita o uso de telescópios impróprios; a grande margem de erro das medições; chapas fotográficas nas quais o desvio sofrido pela luz ao passar perto do Sol estava mais próximo do valor de Newton; o fato de Eddington ter desprezado chapas do grande telescópio de Sobral; a distorção causada pela interferência da atmosfera terrestre nas imagens; e também que, na média, o valor obtido para a deflexão da luz (o quanto ela se curva) difere em cerca de 19% do valor previsto por Einstein.
Ao final, o missivista recomenda a Sir Lovell a leitura tanto do livro de Poor quanto de "The Golem: What You Should Know About Science" ("O Golem: o que você deveria saber sobre ciência"), de Hary Collins e Trevor Pinch, que revela algumas máculas da ciência (a comprovação pelo eclipse de 1919 entre elas).
Se tão fortes evidências, como as que aponta Oderberg, pesam contra a comprovação de 1919, fica-se então tentado a formular a pergunta: por que Eddington a considerou comprovada?
A partir daqui, tudo passa a brotar do terreno desfocado da especulação. Eddington, pioneiro no estudo de estruturas das estrelas, foi o maior divulgador em sua época da relatividade no Reino Unido. Conhecia a fundo os meandros e as implicações daquilo que disseminava. Talvez, como Einstein, também não tivesse dúvidas sobre a validade da teoria. Talvez tenha, como se diz popularmente, forçado a barra, por acreditar que experimentos posteriores mais precisos mostrariam essa validade. Foi o que aconteceu.
Por fim, uma hipótese bem mais difícil de provar. Em 1919, por conta da Primeira Guerra, o mundo sentia-se destruído. Pode-se afirmar -e isso está nos bons livros- que Einstein foi o primeiro grande herói do pós-guerra. Era ideal. Mente assombrosa, já adepto do pacifismo, preocupado com a justiça, opositor ferrenho do racismo e trabalhando para a ciência, atividade que ainda hoje se autoproclama "sem fronteiras". Por conta disso e da fama que ganhou pós-1919, foi a primeira celebridade alemã a visitar formalmente a França depois do fim do conflito. Foi recebido com imenso entusiasmo. Multidões foram às ruas nos Estados Unidos. "Por que ninguém me entende, mas todos gostam de mim?", resumiu.
Talvez Eddington soubesse que um herói nada de mal causaria a um mundo esfacelado. Talvez tenha visto em Einstein, com antecedência, um pouco do que o físico britânico Freeman Dyson descreve num trecho de "Einstein's 1912 Manuscript on the Special Theory of Relativity" ("O manuscrito de Einstein de 1912 sobre a teoria especial da relatividade"), iniciativa, no mínimo, louvável da Jacob E. Safra Philanthropic Foundation.
Dyson relembra Einstein, no início da década de 1920, andando pelas ruas no Japão e sendo reverenciado e tocado por todos. Décadas mais tarde, no mesmo país, ele mesmo testemunhou fato semelhante: dessa vez, o alvo era o físico inglês Stephen Hawking. O curto depoimento termina de modo elegante: os japoneses têm bom gosto para escolher seus heróis. "Talvez eles tenham de algum modo percebido que Einstein e Hawking são muito mais do que grandes cientistas. São grandes seres humanos", finaliza.
(CÁSSIO LEITE VIEIRA)


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