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AMÉRICA LATINA
Intelectuais se reúnem contra o terrorismo de Estado em 4 metrópoles latino-americanas
Política do desaparecimento
JEAN-LOUIS DÉOTTE
especial para a Folha
De meados de agosto aos primeiros dias de setembro de 99,
uma equipe de universitários e artistas franceses (Alain Brossat,
Daniel Buren, Jean-Louis e Martine Déotte, Stéphane Douailler,
Olivier Le Cour Grandmaison de
Evry), à qual vieram se juntar um
alemão (Hubertus von Amelunxen de Kiel), chilenos (Nelly Richard e Carlos Ruiz), argentinos
(Enrique Oteiza e Claudia Feld) e
uruguaios (os psiquiatras Marcelo e Maren Vinar), percorreu antigas capitais onde se exerceu o terror de Estado: Santiago, Buenos
Aires, Rio e São Paulo.
Tratava-se de confrontar uma
experiência européia do desaparecimento (o gulag soviético, a
Shoah, a Guerra da Argélia etc.)
com a experiência latino-americana dos anos 60-70, levando em
consideração que essa técnica terrorista de Estado foi em parte exportada para a América Latina
nos anos 60 por oficiais franceses
anti-subversivos e contra-revolucionários que tinham mostrado a
que vinham na Argélia (cf. G. Peries: "De l'Action Militaire à l'Action Politique"; A. Rouquié: "Pouvoir Militaire en République Argentine").
Os encontros tiveram tonalidades diferentes de acordo com as
cidades, os públicos, os organizadores locais: universitários na
maioria, em Santiago, onde o colóquio foi aberto pelo embaixador
da França e o reitor da Universidade do Chile; políticos e intelectuais em Buenos Aires, sendo a
iniciativa do Centro Cultural da
Recoleta; universitários no Rio,
em que o anfitrião era o Colégio
Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares, ligado à
UERJ; e ainda em São Paulo, na
USP.
Nas duas primeiras cidades, o
debate foi acompanhado de exposições de obras, representações
teatrais, projeções de vídeo. Nessa
ocasião, a nova diretoria do Museu de Arte Contemporânea de
Santiago apresentou 20 artistas
chilenos e manifestou sua ruptura
com a política opaca conduzida
até então, enquanto em Buenos
Aires foram apresentadas mais de
80 obras.
Se a avaliação da política do desaparecimento faz totalmente
parte da atualidade em Santiago,
em decorrência da prisão do "senador biônico" e do julgamento
de oficiais que participaram da
marcha da morte, tal já não é o caso em Buenos Aires, onde o debate entre as mães da Praça de Maio
volta-se atualmente para o assunto da indenização das vítimas e da
edificação de um parque da lembrança, dedicado aos desaparecidos.
Quanto ao Brasil, o encontro
demonstrou que o recalque da
questão permanece muito intenso e implica uma ampla psicologização e sociologização, tendência
aliás bastante geral, que permite, a
partir do desaparecimento físico
de cadáveres de opositores -ainda que marca de uma nova etapa
histórica no tratamento do corpo
do inimigo (cf. A. Brossat: "Le
Corps de l'Ennemi")-, estender
o conceito a todas as outras formas de desaparecimento: a exclusão social, o desemprego, até mesmo o "desaparecimento da Europa" dentro da Otan, durante a
guerra do Kosovo!
Perniciosa para a reflexão conceitual do tema é a generalização
do conceito de totalitarismo. Essa
imprecisão terminológica reflete
uma distância (tanto desejada
quanto involuntária) em relação
ao objeto. Aparentemente, a "ditadura militar" e os seus correlatos, "repressão, tortura e desaparecimento", não constituem o
fundo histórico a partir do qual a
transição democrática se calcou,
mas foram transformados em um
passado remoto com o qual ninguém quer (ou pode) se identificar.
Não deixa de ser notório que esse evento tenha ocorrido no Rio
de Janeiro durante as comemorações dos 20 anos de anistia: no caso brasileiro, mais do que nunca,
anistia e amnésia parecem se confundir. Apenas os depoimentos
de alguns ex-presos políticos,
com o relato das suas atividades
de resistência à amnésia socialmente orquestrada, deixam entrever uma possibilidade de diálogo com o passado.
Em Santiago, ainda se está reconstituindo a rede das responsabilidades, em cujo topo se encontra o Estado terrorista, enquanto
em Buenos Aires tentam encontrar as crianças sequestradas pelos militares, e antigos torturados
são forçados a sair do anonimato
protetor por
meio de processos instaurados por filhos de desaparecidos: o "escrache".
Os três casos
remetem a modos diferentes
de passagem
para a democracia: no Brasil, aparentemente, o modelo de transição "lenta, gradual e segura"
para a democracia, bem como a
imposição autoritária do consenso, não permitiu o processo de
julgamento e incorporação do período ditatorial; no Chile, após o
plebiscito e o fracasso eleitoral
dos militares, deu-se um pacto secreto aliando os parlamentares
não-comunistas aos antigos golpistas, com o ônus da presença
persistente do Exército na vida
política.
Os exércitos não foram expurgados, e a comissão "Verdade e
Reconciliação" se limitou a identificar as vítimas. Os militares não
aceitaram reconhecer uma ação
que eles elevavam no entanto à
dignidade do mais justo combate.
Na Argentina, a extraordinária
resistência das mães de desaparecidos (cf. H. de Bonafini: "Una
Madre Contra la Dictatura") e a
incapacidade da Junta em realizar
um programa econômico neoliberal no modelo chileno conduziram o país à expedição das Malvinas e ao choque contra um outro
arauto do neoliberalismo: Margaret Thatcher.
Os militares pensam sempre em
reconquistar sua legitimidade no
único terreno que conhecem: o
campo de batalha. Napoleão 3º fizera a mesma experiência diante
de Bismarck: sabe-se o que veio
depois. A perda da Alsácia-Lorena por parte da França, o espírito
de revanche, os nacionalismos
que levaram à Primeira Guerra
Mundial. O desmoronamento
militar da Junta Argentina, diferentemente do chileno, foi patente, e a democracia pôde então
abrir processos. Mas sabe-se que
Alfonsin, incapaz de controlar a
situação econômica, teve de dar
marcha a ré e, a partir de uma série de leis (de "ponto final", de
"obediência forçada"), relegitimar os torturadores.
Só nos dias de hoje as acusações
podem novamente atravancar a
Junta, por motivos imprescritíveis em direito: os sequestros de
crianças e os saques a particulares.
É compreensível que o Centro
Cultural da Recoleta tenha podido organizar, sob iniciativa das
mães e dos movimentos de defesa
dos direitos humanos, em dezembro de 98, uma exposição de fotos
desses casais ou dessas mulheres
sozinhas que, ao final dos anos 70,
desapareceram (foram tragados,
"engolidos", no âmbito daquilo
que o "processo" militar chamava
de um "achatamento") e tiveram
seus filhos arrancados e vendidos
para famílias corretas, que saberiam educá-los segundo princípios nacionalistas e cristãos. Essa
exposição destinava-se a tais
crianças tornadas adultas, para
que, na dúvida de sua genealogia,
pudessem quem sabe reconhecer
seus pais naturais ao comparar no
espelho a própria imagem com a
deles.
Cabe imaginar após tal exemplo
que a cultura latino-americana seja hoje, com frequência, menos
fútil que a européia ou a americana, de tanto que o peso dos desaparecidos entrega uma sociedade
aos fantasmas. É possível constatar o seguinte:
1. Os movimentos de desaparecidos, as Mães argentinas -em
particular as que não querem do
Estado nenhuma compensação
enquanto os torturadores não forem identificados- permanecem politicamente na mesma posição que seus filhos nos anos 70.
São antiimperialistas e antiamericanas até mesmo quando se trata
de um genocídio como o kosovar.
Uma delegação conduzida
por Bonafini
encontrava-se
em Belgrado
sob as bombas
da Otan, em
apoio às "mães
iugoslavas",
sem jamais
evocar o genocídio em curso.
A política do
desaparecimento condena um grupo social a não poder
pensar a diferença dos tempos. O
tempo parou no instante do desaparecimento. Não haverá ruptura
com o passado. Não haverá, pois,
futuro.
2. Mas, ao mesmo tempo, a
identificação com os filhos desaparecidos não é total; o registro de
referência não é mais político,
mas jurídico: o dos direitos humanos. Se Claude Lefort podia
ainda, num texto célebre ("A Invenção Democrática") contra a
interpretação marxista da Declaração dos Direitos Humanos ("A
Questão Judaica"), tentar reintegrá-los no horizonte da democracia política, torna-se hoje cada vez
mais evidente, crime após crime,
genocídio após genocídio, que
não é mais o "homem" totalmente indeterminado quem enuncia
direitos novos a respeito dos homens, nem um Outro, nem um
deus, mas sim a massa daqueles
que desapareceram sem deixar
rastro.
Para Lefort, o enunciador devia
proferir de algum modo o novo
direito a partir de um lugar vazio,
não tendo ele mesmo nenhuma
determinação (nem homem, nem
mulher, nem adulto, nem criança,
nem normal, nem deficiente etc.).
Desde o julgamento de Nuremberg, o quadro mudou: o ponto
de onde é enunciado esse tipo de
direito se revela em negativo, a
partir do insuportável. Falando
em nome dos desaparecidos, dos
torturados, das violentadas, circunscreve-se ao avesso uma outra
humanidade. Significa dizer que
se legisla em nome do imemorial,
do sem-sepultura. Mas, paradoxalmente, esse sem-rastro é menos abstrato, menos formalmente
vazio que o enunciador clássico
dos direitos humanos: submete-se muito mais à história (infernal)
dos homens.
Por essa razão, as leis que regem
atualmente os tribunais internacionais são mais heteronômicas
do que autônomas: aqui se está
mais na ordem da dívida do que
na da igualdade. A declaração de
1948 dá, portanto, maior ênfase a
uma nova positividade: o fato de
haver pertencimentos coletivos,
étnicos, religiosos ou políticos
-e de isso constituir a humanidade em direito, segundo um
princípio do "différend". Pois esses pertencimentos são incomparáveis. Os homens do pós-guerra
pagavam assim a dívida que tinham para com os que haviam sido exterminados em nome de um
pertencimento.
3. Por conseguinte, a cultura
deixa de ser lúdica tanto quanto
permanece de um modo geral no
Ocidente. Diante de uma política
negacionista e antiexistencialista,
que exige dos pais de vítimas que
eles provem que seus filhos existiram, ao passo que para os órgãos
do Estado há apenas os sem-rastros, a arte retorna à imagem incorporando os rastros e as impressões dos desaparecidos.
Trata-se de um retorno político
a uma técnica analógica que se
acreditava em via de desaparecimento: a fotografia. Pois, para que
haja uma foto, é de fato necessário
que alguma existência tenha refletido um raio luminoso e que esse
raio impressione uma película foto-sensível.
A partir daí o paradoxo é o seguinte: se há uma imagem que resiste ao desaparecimento, trata-se
da foto dos desaparecidos.
Jean-Louis Déotte é professor de filosofia
na Universidade de Paris 8 (França).
Tradução de Sabira Alencar.
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