São Paulo, Domingo, 05 de Dezembro de 1999


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AMÉRICA LATINA
Intelectuais se reúnem contra o terrorismo de Estado em 4 metrópoles latino-americanas
Política do desaparecimento

JEAN-LOUIS DÉOTTE
especial para a Folha

De meados de agosto aos primeiros dias de setembro de 99, uma equipe de universitários e artistas franceses (Alain Brossat, Daniel Buren, Jean-Louis e Martine Déotte, Stéphane Douailler, Olivier Le Cour Grandmaison de Evry), à qual vieram se juntar um alemão (Hubertus von Amelunxen de Kiel), chilenos (Nelly Richard e Carlos Ruiz), argentinos (Enrique Oteiza e Claudia Feld) e uruguaios (os psiquiatras Marcelo e Maren Vinar), percorreu antigas capitais onde se exerceu o terror de Estado: Santiago, Buenos Aires, Rio e São Paulo.
Tratava-se de confrontar uma experiência européia do desaparecimento (o gulag soviético, a Shoah, a Guerra da Argélia etc.) com a experiência latino-americana dos anos 60-70, levando em consideração que essa técnica terrorista de Estado foi em parte exportada para a América Latina nos anos 60 por oficiais franceses anti-subversivos e contra-revolucionários que tinham mostrado a que vinham na Argélia (cf. G. Peries: "De l'Action Militaire à l'Action Politique"; A. Rouquié: "Pouvoir Militaire en République Argentine").
Os encontros tiveram tonalidades diferentes de acordo com as cidades, os públicos, os organizadores locais: universitários na maioria, em Santiago, onde o colóquio foi aberto pelo embaixador da França e o reitor da Universidade do Chile; políticos e intelectuais em Buenos Aires, sendo a iniciativa do Centro Cultural da Recoleta; universitários no Rio, em que o anfitrião era o Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares, ligado à UERJ; e ainda em São Paulo, na USP.
Nas duas primeiras cidades, o debate foi acompanhado de exposições de obras, representações teatrais, projeções de vídeo. Nessa ocasião, a nova diretoria do Museu de Arte Contemporânea de Santiago apresentou 20 artistas chilenos e manifestou sua ruptura com a política opaca conduzida até então, enquanto em Buenos Aires foram apresentadas mais de 80 obras.
Se a avaliação da política do desaparecimento faz totalmente parte da atualidade em Santiago, em decorrência da prisão do "senador biônico" e do julgamento de oficiais que participaram da marcha da morte, tal já não é o caso em Buenos Aires, onde o debate entre as mães da Praça de Maio volta-se atualmente para o assunto da indenização das vítimas e da edificação de um parque da lembrança, dedicado aos desaparecidos.
Quanto ao Brasil, o encontro demonstrou que o recalque da questão permanece muito intenso e implica uma ampla psicologização e sociologização, tendência aliás bastante geral, que permite, a partir do desaparecimento físico de cadáveres de opositores -ainda que marca de uma nova etapa histórica no tratamento do corpo do inimigo (cf. A. Brossat: "Le Corps de l'Ennemi")-, estender o conceito a todas as outras formas de desaparecimento: a exclusão social, o desemprego, até mesmo o "desaparecimento da Europa" dentro da Otan, durante a guerra do Kosovo!
Perniciosa para a reflexão conceitual do tema é a generalização do conceito de totalitarismo. Essa imprecisão terminológica reflete uma distância (tanto desejada quanto involuntária) em relação ao objeto. Aparentemente, a "ditadura militar" e os seus correlatos, "repressão, tortura e desaparecimento", não constituem o fundo histórico a partir do qual a transição democrática se calcou, mas foram transformados em um passado remoto com o qual ninguém quer (ou pode) se identificar.
Não deixa de ser notório que esse evento tenha ocorrido no Rio de Janeiro durante as comemorações dos 20 anos de anistia: no caso brasileiro, mais do que nunca, anistia e amnésia parecem se confundir. Apenas os depoimentos de alguns ex-presos políticos, com o relato das suas atividades de resistência à amnésia socialmente orquestrada, deixam entrever uma possibilidade de diálogo com o passado.
Em Santiago, ainda se está reconstituindo a rede das responsabilidades, em cujo topo se encontra o Estado terrorista, enquanto em Buenos Aires tentam encontrar as crianças sequestradas pelos militares, e antigos torturados são forçados a sair do anonimato protetor por meio de processos instaurados por filhos de desaparecidos: o "escrache".
Os três casos remetem a modos diferentes de passagem para a democracia: no Brasil, aparentemente, o modelo de transição "lenta, gradual e segura" para a democracia, bem como a imposição autoritária do consenso, não permitiu o processo de julgamento e incorporação do período ditatorial; no Chile, após o plebiscito e o fracasso eleitoral dos militares, deu-se um pacto secreto aliando os parlamentares não-comunistas aos antigos golpistas, com o ônus da presença persistente do Exército na vida política.
Os exércitos não foram expurgados, e a comissão "Verdade e Reconciliação" se limitou a identificar as vítimas. Os militares não aceitaram reconhecer uma ação que eles elevavam no entanto à dignidade do mais justo combate.
Na Argentina, a extraordinária resistência das mães de desaparecidos (cf. H. de Bonafini: "Una Madre Contra la Dictatura") e a incapacidade da Junta em realizar um programa econômico neoliberal no modelo chileno conduziram o país à expedição das Malvinas e ao choque contra um outro arauto do neoliberalismo: Margaret Thatcher.
Os militares pensam sempre em reconquistar sua legitimidade no único terreno que conhecem: o campo de batalha. Napoleão 3º fizera a mesma experiência diante de Bismarck: sabe-se o que veio depois. A perda da Alsácia-Lorena por parte da França, o espírito de revanche, os nacionalismos que levaram à Primeira Guerra Mundial. O desmoronamento militar da Junta Argentina, diferentemente do chileno, foi patente, e a democracia pôde então abrir processos. Mas sabe-se que Alfonsin, incapaz de controlar a situação econômica, teve de dar marcha a ré e, a partir de uma série de leis (de "ponto final", de "obediência forçada"), relegitimar os torturadores.
Só nos dias de hoje as acusações podem novamente atravancar a Junta, por motivos imprescritíveis em direito: os sequestros de crianças e os saques a particulares.
É compreensível que o Centro Cultural da Recoleta tenha podido organizar, sob iniciativa das mães e dos movimentos de defesa dos direitos humanos, em dezembro de 98, uma exposição de fotos desses casais ou dessas mulheres sozinhas que, ao final dos anos 70, desapareceram (foram tragados, "engolidos", no âmbito daquilo que o "processo" militar chamava de um "achatamento") e tiveram seus filhos arrancados e vendidos para famílias corretas, que saberiam educá-los segundo princípios nacionalistas e cristãos. Essa exposição destinava-se a tais crianças tornadas adultas, para que, na dúvida de sua genealogia, pudessem quem sabe reconhecer seus pais naturais ao comparar no espelho a própria imagem com a deles.
Cabe imaginar após tal exemplo que a cultura latino-americana seja hoje, com frequência, menos fútil que a européia ou a americana, de tanto que o peso dos desaparecidos entrega uma sociedade aos fantasmas. É possível constatar o seguinte:
1. Os movimentos de desaparecidos, as Mães argentinas -em particular as que não querem do Estado nenhuma compensação enquanto os torturadores não forem identificados- permanecem politicamente na mesma posição que seus filhos nos anos 70. São antiimperialistas e antiamericanas até mesmo quando se trata de um genocídio como o kosovar.
Uma delegação conduzida por Bonafini encontrava-se em Belgrado sob as bombas da Otan, em apoio às "mães iugoslavas", sem jamais evocar o genocídio em curso. A política do desaparecimento condena um grupo social a não poder pensar a diferença dos tempos. O tempo parou no instante do desaparecimento. Não haverá ruptura com o passado. Não haverá, pois, futuro.
2. Mas, ao mesmo tempo, a identificação com os filhos desaparecidos não é total; o registro de referência não é mais político, mas jurídico: o dos direitos humanos. Se Claude Lefort podia ainda, num texto célebre ("A Invenção Democrática") contra a interpretação marxista da Declaração dos Direitos Humanos ("A Questão Judaica"), tentar reintegrá-los no horizonte da democracia política, torna-se hoje cada vez mais evidente, crime após crime, genocídio após genocídio, que não é mais o "homem" totalmente indeterminado quem enuncia direitos novos a respeito dos homens, nem um Outro, nem um deus, mas sim a massa daqueles que desapareceram sem deixar rastro.
Para Lefort, o enunciador devia proferir de algum modo o novo direito a partir de um lugar vazio, não tendo ele mesmo nenhuma determinação (nem homem, nem mulher, nem adulto, nem criança, nem normal, nem deficiente etc.).
Desde o julgamento de Nuremberg, o quadro mudou: o ponto de onde é enunciado esse tipo de direito se revela em negativo, a partir do insuportável. Falando em nome dos desaparecidos, dos torturados, das violentadas, circunscreve-se ao avesso uma outra humanidade. Significa dizer que se legisla em nome do imemorial, do sem-sepultura. Mas, paradoxalmente, esse sem-rastro é menos abstrato, menos formalmente vazio que o enunciador clássico dos direitos humanos: submete-se muito mais à história (infernal) dos homens.
Por essa razão, as leis que regem atualmente os tribunais internacionais são mais heteronômicas do que autônomas: aqui se está mais na ordem da dívida do que na da igualdade. A declaração de 1948 dá, portanto, maior ênfase a uma nova positividade: o fato de haver pertencimentos coletivos, étnicos, religiosos ou políticos -e de isso constituir a humanidade em direito, segundo um princípio do "différend". Pois esses pertencimentos são incomparáveis. Os homens do pós-guerra pagavam assim a dívida que tinham para com os que haviam sido exterminados em nome de um pertencimento.
3. Por conseguinte, a cultura deixa de ser lúdica tanto quanto permanece de um modo geral no Ocidente. Diante de uma política negacionista e antiexistencialista, que exige dos pais de vítimas que eles provem que seus filhos existiram, ao passo que para os órgãos do Estado há apenas os sem-rastros, a arte retorna à imagem incorporando os rastros e as impressões dos desaparecidos.
Trata-se de um retorno político a uma técnica analógica que se acreditava em via de desaparecimento: a fotografia. Pois, para que haja uma foto, é de fato necessário que alguma existência tenha refletido um raio luminoso e que esse raio impressione uma película foto-sensível.
A partir daí o paradoxo é o seguinte: se há uma imagem que resiste ao desaparecimento, trata-se da foto dos desaparecidos.


Jean-Louis Déotte é professor de filosofia na Universidade de Paris 8 (França).
Tradução de Sabira Alencar.


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