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LITERATURA
Elegância verbal de Almeida Garrett, autor nascido há 200 anos, o aproxima das noções contemporâneas de moda e simulação
O poeta do efêmero
E.M. DE MELO E CASTRO
especial para a Folha
José Maria de Almeida Garrett
nasceu há 200 anos e morreu há
145. Viveu 55 anos e foi aquilo a
que, em linguagem de meados do
século 20, se chamaria um democrata progressista. Parece-me
portanto oportuno, a poucos dias
do ano 2000, perguntar: por que
parâmetros críticos será ainda
possível ler a poesia de Garrett?
Como é que essa poesia, fundadora do romantismo português, se
poderá relacionar com a nossa
poesia contemporânea?
Marcado por contradições,
quer na sua vida quer na sua obra,
o homem de nome próprio José
Maria foi "um feixe de contradições", como observa António José
Saraiva. Na sua existência e personalidade sobrepõem-se, nem
sempre pacificamente, a origem
burguesa cuja família enriquecera
no Brasil; a ideologia liberal; o
dandismo e a superficialidade social; a intervenção política esclarecida; a criação do Conservatório e
do Teatro Nacional, que vai até a
escrita de um repertório de peças
para esse teatro; a luta pela educação do povo; os exílios políticos; a
vida amorosa transgressiva; o nacionalismo; a preocupação com a
idéia de Europa; o fascínio pela
aristocracia... à qual ascende, próximo do fim da vida, com o título
de visconde, fato esse que reflete o
reconhecimento pelo rei do seu
mérito cultural.
Entre esses vários fatores dispersivos encontra-se a prática da
poesia lírica, já que Garrett é principalmente um homem teatral e
do teatro. Poesia lírica que é, ela
própria também, dilacerada entre
uma origem classicizante (muito
presente na frequente referência a
personagens da mitologia grega e
romana) e uma profunda necessidade de renovação que fosse mais
do que isso, isto é, que fosse uma
verdadeira invenção. "A índole
desse poema é absolutamente nova" -é a primeira frase da introdução do próprio Garrett ao seu
poema "Camões", de 1825. Frase
esta que, pronunciada com a ênfase adequada, prefigura as declarações altissonantes dos manifestos futuristas de Almada Negreiros ou de Álvaro de Campos nos
anos 10 do século 20.
Mas, no tempo de Garrett, essa
invenção do novo tinha o nome
de romantismo e estava ligada
tanto à idéia de Europa, quanto à
de um novo indivíduo europeu
possuidor também de uma nova
sensibilidade e de uma nova escrita. Por isso, é contrastando com
um romantismo de escola, que
não tinha essas concepções, como
por exemplo o de António Feliciano de Castilho e o de Alexandre
Herculano, que a poesia lírica de
Garrett se constrói, evidenciando
um individualismo sensível, esse
original e verdadeiramente romântico.
Tal contradição entre a chamada escola romântica portuguesa e
o romantismo individualista e intimista de Garrett, que ao leitor de
hoje tanto salta à vista, é assim notada por Túlio Ramires Gomes
(em artigo de 1954 publicado no
jornal "O Comércio do Porto"):
"Guiado pelo seu fino gosto de artista nato e eclético, Garrett submeteu a sua poesia a uma espécie
de depuração que a libertou de
um romantismo convencional e
exterior, documentado nos seus
longos e ambiciosos poemas "Camões" e "D. Branca", e permitiu a
renovação e enriquecimento dum
lirismo anacreôntico aparentemente frívolo e sensualista, de
proveniência clássica, que surge
rejuvenescido nas suas composições mais perfeitas, graças à permanente juvenilidade dum espírito epicurista e elegante (falamos
da elegância íntima, moral de
Garrett, não de elegância exterior), de mundano cético e sensual".
Mas, se esse crítico dos anos 50
não quer falar da elegância exterior de Garrett, nós, neste fim do
século 20, veremos nessa mesma
elegância dita exterior, que a nossos olhos se reflete na elegância
verbal da sua poesia, um dos vetores de aproximação com o atual
sentido do efêmero, da moda e da
simulação, que tanto marcam a
nossa sociedade finissecular, tal
como referem tanto Baudrillard
quanto Lipovetsky. Porque afinal
"a moda é o que passa de moda",
como dizia a estilista francesa
Chanel, e o dandismo e a preocupação com o vestuário e a aparência exterior, tão notórios em Garrett, como importantes na cultura
dos dias de hoje, são tanto a conotação de uma subjetiva tentativa
de suster a passagem acelerada do
tempo, quanto a denotação de um
objetivo desejo de participar dessa mesma aceleração.
David Mourão-Ferreira, no ensaio "A Poesia Confidencial de
Folhas Caídas", de 1954, depois de
verificar nesse livro uma simulada desordem na ordenação das
poesias, o que intensifica a desejada (mas aparente) intimidade entre autor e leitor, diz que "a ilusória desarrumação de "folhas caídas" e precipitadamente apanhadas, enfeixadas à pressa, se apresenta, assim, sob o aspecto de
uma confidência involuntária; o
próprio título, para aquém da insinuação outonal, revela isso mesmo: "folhas caídas" da mão do
poeta, laudas expostas ante os
olhos do leitor, toda a fatalidade
de um livro aberto". De um livro
aberto à passagem do tempo e por
onde o tempo passa de uma forma simuladamente fragmentária
e caótica, dizemos nós.
Seguidamente Mourão-Ferreira
identifica nesse livro aberto duas
séries de poemas aparentemente
misturadas: a série dos poemas de
circunstância mundana e a dos
poemas amorosos, concluindo
que a primeira tem a função de
atenuar a inquietante presença
dos poemas amorosos... Mas, embora tenham sido estes últimos os
que mais controvérsia geraram
no seu tempo, pelos aspectos ambiguamente biográficos neles
contidos, para nós, hoje, pela intensa valorização do efêmero e do
sensual, são precisamente alguns
dos poemas considerados como
de circunstância mundana, presentes tanto em "Flores sem Fruto" (1843) como em "Folhas Caídas" (1853), que melhor se inscrevem numa poética finissecular
que se caracteriza também pela
economia vocabular, pela organização espacial na página, pela ambiguidade conduzindo a uma
enorme contenção conceptual
(palavras sobrecarregadas de significados, como disse Ezra
Pound).
Considere-se, quer visual quer
auditivamente, o poema "Rosa e
Lírio", de "Folhas Caídas". Nesse
poema, a distribuição espacial resulta de uma enunciação fragmentada em versos de quatro,
três, duas e sete sílabas rigorosamente organizados, criando, pela
repetição estrófica, um padrão simultaneamente visual e auditivo.
Como se vê, nada de mais atual e
até pós-concreto!... como muita
da poesia dos anos 90.
Não me é possível desenvolver
aqui a leitura hermenêutica que
desejaria realizar, mas não posso
deixar de referir que a contradição entre rosa e lírio é a tradução,
num código floral que remonta à
Idade Média, da vivência dramática do amor de um homem amadurecido, na contradição dolorosa entre o impossível e o desejo...
por isso o amor só pode ser o lírio
roxo.
Mas a efemeridade desse e de
tantos outros poemas de Garrett
vem de muito mais longe e cruza-se nas suas origens com a poética,
a um tempo epicurista e estóica,
das "Odes" de Ricardo Reis (Fernando Pessoa): "As rosas amo dos
jardins de Adonis,/ Essas volucres
amo, Lydia, rosas,/ Que o dia em
que nascem,/ Em esse dia morrem". Odes estas, as de Ricardo
Reis, cuja estirpe horaciana é pelo
próprio Pessoa afirmada, mas que
pode ser rastreada também em
Garrett, por exemplo e principalmente na "Lírica de João Mínimo": "Basta de crueldades, Lídia
bela/ Que das castas Penélopes a
moda/ Há muito que se foi". Ou:
"Lembras-te, diz, ó Delia, do momento/ Que aos teus formosos lábios/ Voou dos meus o filho de
Ciprina?/ Acaso não sentiste/
Abrir-se um céu de amor para nós
ambos?/ Não te bateu no peito/
Ansiado o coração de gozo arfando?".
Esse culto do momento privilegiado, raro e instantâneo do amor
e da revelação "insciente" da sua
própria transitoriedade, como diz
Reis, é um elo horaciano a unir o
poeta latino a Garrett, a Fernando
Pessoa e à poesia do fim deste século, no qual a vivência do efêmero resulta do intersecionismo instantâneo das informações díspares e das percepções caóticas.
Quanto a Fernando Pessoa,
penso que é de grande significado
relembrar, como o faz Joel Serrão
no livro de 1981, "Fernando Pessoa, Cidadão do Imaginário", o
que o próprio Pessoa revelou
num documento confiado a Armando Cortes-Rodrigues, seu
companheiro de "Orpheu":
"Num impulso súbito, vindo da
leitura das "Folhas Caídas" e das
"Flores sem Fruto", começa a escrever versos portugueses. Pensou, ao começo, em escrever só
poesias inglesas".
Quando esse impulso súbito
aconteceu, Fernando Pessoa regressara havia pouco do seu exílio
juvenil na África do Sul e estava
lendo Antero de Quental, Cesário
Verde, Guerra Junqueiro, Gomes
Leal, António Nobre... poetas portugueses que tinham recebido as
lições de Garrett, podendo-se falar em pós e em ultra-romantismo. Que lições foram essas e como cada um desses poetas, nas
respectivas obras, interpretou, assimilou ou contestou a poesia de
Garrett é um vasto território para
a exegese crítica que aqui, obviamente, não pode ser abordado.
Mas penso que o impulso súbito
de Fernando Pessoa nada teve a
ver com considerações de escolas
literárias, cujo significado era e é
difuso, quando não confuso, mas
sim com o reconhecimento de um
uso original da língua poética
portuguesa, que intuitivamente
sentiu e que lhe poderia servir de
referência para a reaprendizagem
da sua própria língua e escrita da
nova poesia-diferença que certamente em si já estava fermentando.
Outra linha de reconhecimento
tem como fulcro as circunstâncias
do exílio, recentemente estudadas
pela ensaísta portuguesa Maria
Fernanda Abreu no caso de Almeida Garrett, circunstâncias essas a que Fernando Pessoa não terá sido insensível, pois elas determinaram em Garrett uma verdadeira escrita do exílio. Assim se
poderá imaginar criticamente
uma outra série, a da literatura de
exílio que, tendo origem em Ovídio, passa por Camões escrevendo "Os Lusíadas" em Macau, no
século 16, vem até Garrett que, por
sua vez, escreve e publica o seu
poema "Camões" no exílio de Paris (1825), se prolonga no Pessoa
juvenil, que escreve em inglês, no
início do século 20, em Durban
(vide Alexander Search), e se
atualiza na última poesia de Jorge
de Sena, mas também na poesia
de Manuel Alegre, o exilado na
Argélia no tempo da guerra colonial de África, na década de 1960,
tal como na poesia de vários poetas jovens portugueses que, por
causa dessa mesma guerra, foram
forçados ao exílio em vários países da Europa, aí escrevendo e publicando em português.
Outros tópicos poderão servir
de veios condutores para averiguar a presença e a legibilidade de
Garrett na poesia portuguesa nos
dois fins de século, o final do século 19 e o fim do ainda presente século 20. De entre esses tópicos um
poderia ser, por exemplo, a saudade. Não foi Garrett quem iniciou o seu poema "Camões" com
os seguintes versos, que contêm a
única, quanto a mim, credível noção de saudade?: "Saudade? gosto
amargo de infelizes,/ Delicioso
pungir de acerbo espinho,/ Que
me está repassando o íntimo peito/ Com dor que os seios d'alma
dilacera,/ -Mas dor que tem prazeres - Saudade!".
Tal idéia de saudade, pelo seu
evidente masoquismo, pode considerar-se motora de uma linha
de poesia confessional que em
António Nobre, em José Duro,
mas também em Manuel Laranjeira, tem os seus cultores mais
em evidência.
A ela se contrapõe o saudosismo de Teixeira de Pascoaes, que
se propõe definir pela ausência
uma certa idiossincrasia dita portuguesa, que se aproxima do niilismo decadentista do final do século 19, simultaneamente tocando em várias chagas da sensibilidade nacional, tentando curá-las
por meio de uma outra idéia de
saudade centrada no desejo, que
Pascoaes opõe à de Garrett: "Saudade: a velha lembrança gerando
um novo desejo". No entanto tal
definição não é mais do que uma
outra formulação de uma velha
idéia do jurista do rei Filipe 2º,
Duarte Nunes. Esse frágil conceito pouco eco virá a ter na moderna poesia portuguesa do século
20, porque isso de o velho gerar o
novo apenas pelo desejo, além de
ser pouco verossímil, nada diz do
que é o velho, nem do que é o novo, nem do que poderá ser o desejo... Talvez por isso Fernando Pessoa logo abandone Pascoaes e o
seu saudosismo. Ele que, tal como
Garrett na sua época, procurou
intensamente o novo por meio da
escrita a que justamente se poderá
chamar de invenção.
E.M. de Melo e Castro é poeta e ensaísta
português, autor de "Poligonia do Soneto" e
"Re-Camões", entre outros.
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