São Paulo, Domingo, 05 de Dezembro de 1999


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LITERATURA
Elegância verbal de Almeida Garrett, autor nascido há 200 anos, o aproxima das noções contemporâneas de moda e simulação
O poeta do efêmero

E.M. DE MELO E CASTRO


especial para a Folha

José Maria de Almeida Garrett nasceu há 200 anos e morreu há 145. Viveu 55 anos e foi aquilo a que, em linguagem de meados do século 20, se chamaria um democrata progressista. Parece-me portanto oportuno, a poucos dias do ano 2000, perguntar: por que parâmetros críticos será ainda possível ler a poesia de Garrett? Como é que essa poesia, fundadora do romantismo português, se poderá relacionar com a nossa poesia contemporânea?
Marcado por contradições, quer na sua vida quer na sua obra, o homem de nome próprio José Maria foi "um feixe de contradições", como observa António José Saraiva. Na sua existência e personalidade sobrepõem-se, nem sempre pacificamente, a origem burguesa cuja família enriquecera no Brasil; a ideologia liberal; o dandismo e a superficialidade social; a intervenção política esclarecida; a criação do Conservatório e do Teatro Nacional, que vai até a escrita de um repertório de peças para esse teatro; a luta pela educação do povo; os exílios políticos; a vida amorosa transgressiva; o nacionalismo; a preocupação com a idéia de Europa; o fascínio pela aristocracia... à qual ascende, próximo do fim da vida, com o título de visconde, fato esse que reflete o reconhecimento pelo rei do seu mérito cultural.
Entre esses vários fatores dispersivos encontra-se a prática da poesia lírica, já que Garrett é principalmente um homem teatral e do teatro. Poesia lírica que é, ela própria também, dilacerada entre uma origem classicizante (muito presente na frequente referência a personagens da mitologia grega e romana) e uma profunda necessidade de renovação que fosse mais do que isso, isto é, que fosse uma verdadeira invenção. "A índole desse poema é absolutamente nova" -é a primeira frase da introdução do próprio Garrett ao seu poema "Camões", de 1825. Frase esta que, pronunciada com a ênfase adequada, prefigura as declarações altissonantes dos manifestos futuristas de Almada Negreiros ou de Álvaro de Campos nos anos 10 do século 20.
Mas, no tempo de Garrett, essa invenção do novo tinha o nome de romantismo e estava ligada tanto à idéia de Europa, quanto à de um novo indivíduo europeu possuidor também de uma nova sensibilidade e de uma nova escrita. Por isso, é contrastando com um romantismo de escola, que não tinha essas concepções, como por exemplo o de António Feliciano de Castilho e o de Alexandre Herculano, que a poesia lírica de Garrett se constrói, evidenciando um individualismo sensível, esse original e verdadeiramente romântico.
Tal contradição entre a chamada escola romântica portuguesa e o romantismo individualista e intimista de Garrett, que ao leitor de hoje tanto salta à vista, é assim notada por Túlio Ramires Gomes (em artigo de 1954 publicado no jornal "O Comércio do Porto"): "Guiado pelo seu fino gosto de artista nato e eclético, Garrett submeteu a sua poesia a uma espécie de depuração que a libertou de um romantismo convencional e exterior, documentado nos seus longos e ambiciosos poemas "Camões" e "D. Branca", e permitiu a renovação e enriquecimento dum lirismo anacreôntico aparentemente frívolo e sensualista, de proveniência clássica, que surge rejuvenescido nas suas composições mais perfeitas, graças à permanente juvenilidade dum espírito epicurista e elegante (falamos da elegância íntima, moral de Garrett, não de elegância exterior), de mundano cético e sensual".
Mas, se esse crítico dos anos 50 não quer falar da elegância exterior de Garrett, nós, neste fim do século 20, veremos nessa mesma elegância dita exterior, que a nossos olhos se reflete na elegância verbal da sua poesia, um dos vetores de aproximação com o atual sentido do efêmero, da moda e da simulação, que tanto marcam a nossa sociedade finissecular, tal como referem tanto Baudrillard quanto Lipovetsky. Porque afinal "a moda é o que passa de moda", como dizia a estilista francesa Chanel, e o dandismo e a preocupação com o vestuário e a aparência exterior, tão notórios em Garrett, como importantes na cultura dos dias de hoje, são tanto a conotação de uma subjetiva tentativa de suster a passagem acelerada do tempo, quanto a denotação de um objetivo desejo de participar dessa mesma aceleração.
David Mourão-Ferreira, no ensaio "A Poesia Confidencial de Folhas Caídas", de 1954, depois de verificar nesse livro uma simulada desordem na ordenação das poesias, o que intensifica a desejada (mas aparente) intimidade entre autor e leitor, diz que "a ilusória desarrumação de "folhas caídas" e precipitadamente apanhadas, enfeixadas à pressa, se apresenta, assim, sob o aspecto de uma confidência involuntária; o próprio título, para aquém da insinuação outonal, revela isso mesmo: "folhas caídas" da mão do poeta, laudas expostas ante os olhos do leitor, toda a fatalidade de um livro aberto". De um livro aberto à passagem do tempo e por onde o tempo passa de uma forma simuladamente fragmentária e caótica, dizemos nós.
Seguidamente Mourão-Ferreira identifica nesse livro aberto duas séries de poemas aparentemente misturadas: a série dos poemas de circunstância mundana e a dos poemas amorosos, concluindo que a primeira tem a função de atenuar a inquietante presença dos poemas amorosos... Mas, embora tenham sido estes últimos os que mais controvérsia geraram no seu tempo, pelos aspectos ambiguamente biográficos neles contidos, para nós, hoje, pela intensa valorização do efêmero e do sensual, são precisamente alguns dos poemas considerados como de circunstância mundana, presentes tanto em "Flores sem Fruto" (1843) como em "Folhas Caídas" (1853), que melhor se inscrevem numa poética finissecular que se caracteriza também pela economia vocabular, pela organização espacial na página, pela ambiguidade conduzindo a uma enorme contenção conceptual (palavras sobrecarregadas de significados, como disse Ezra Pound).
Considere-se, quer visual quer auditivamente, o poema "Rosa e Lírio", de "Folhas Caídas". Nesse poema, a distribuição espacial resulta de uma enunciação fragmentada em versos de quatro, três, duas e sete sílabas rigorosamente organizados, criando, pela repetição estrófica, um padrão simultaneamente visual e auditivo. Como se vê, nada de mais atual e até pós-concreto!... como muita da poesia dos anos 90.
Não me é possível desenvolver aqui a leitura hermenêutica que desejaria realizar, mas não posso deixar de referir que a contradição entre rosa e lírio é a tradução, num código floral que remonta à Idade Média, da vivência dramática do amor de um homem amadurecido, na contradição dolorosa entre o impossível e o desejo... por isso o amor só pode ser o lírio roxo.
Mas a efemeridade desse e de tantos outros poemas de Garrett vem de muito mais longe e cruza-se nas suas origens com a poética, a um tempo epicurista e estóica, das "Odes" de Ricardo Reis (Fernando Pessoa): "As rosas amo dos jardins de Adonis,/ Essas volucres amo, Lydia, rosas,/ Que o dia em que nascem,/ Em esse dia morrem". Odes estas, as de Ricardo Reis, cuja estirpe horaciana é pelo próprio Pessoa afirmada, mas que pode ser rastreada também em Garrett, por exemplo e principalmente na "Lírica de João Mínimo": "Basta de crueldades, Lídia bela/ Que das castas Penélopes a moda/ Há muito que se foi". Ou: "Lembras-te, diz, ó Delia, do momento/ Que aos teus formosos lábios/ Voou dos meus o filho de Ciprina?/ Acaso não sentiste/ Abrir-se um céu de amor para nós ambos?/ Não te bateu no peito/ Ansiado o coração de gozo arfando?".
Esse culto do momento privilegiado, raro e instantâneo do amor e da revelação "insciente" da sua própria transitoriedade, como diz Reis, é um elo horaciano a unir o poeta latino a Garrett, a Fernando Pessoa e à poesia do fim deste século, no qual a vivência do efêmero resulta do intersecionismo instantâneo das informações díspares e das percepções caóticas.
Quanto a Fernando Pessoa, penso que é de grande significado relembrar, como o faz Joel Serrão no livro de 1981, "Fernando Pessoa, Cidadão do Imaginário", o que o próprio Pessoa revelou num documento confiado a Armando Cortes-Rodrigues, seu companheiro de "Orpheu": "Num impulso súbito, vindo da leitura das "Folhas Caídas" e das "Flores sem Fruto", começa a escrever versos portugueses. Pensou, ao começo, em escrever só poesias inglesas".
Quando esse impulso súbito aconteceu, Fernando Pessoa regressara havia pouco do seu exílio juvenil na África do Sul e estava lendo Antero de Quental, Cesário Verde, Guerra Junqueiro, Gomes Leal, António Nobre... poetas portugueses que tinham recebido as lições de Garrett, podendo-se falar em pós e em ultra-romantismo. Que lições foram essas e como cada um desses poetas, nas respectivas obras, interpretou, assimilou ou contestou a poesia de Garrett é um vasto território para a exegese crítica que aqui, obviamente, não pode ser abordado. Mas penso que o impulso súbito de Fernando Pessoa nada teve a ver com considerações de escolas literárias, cujo significado era e é difuso, quando não confuso, mas sim com o reconhecimento de um uso original da língua poética portuguesa, que intuitivamente sentiu e que lhe poderia servir de referência para a reaprendizagem da sua própria língua e escrita da nova poesia-diferença que certamente em si já estava fermentando.
Outra linha de reconhecimento tem como fulcro as circunstâncias do exílio, recentemente estudadas pela ensaísta portuguesa Maria Fernanda Abreu no caso de Almeida Garrett, circunstâncias essas a que Fernando Pessoa não terá sido insensível, pois elas determinaram em Garrett uma verdadeira escrita do exílio. Assim se poderá imaginar criticamente uma outra série, a da literatura de exílio que, tendo origem em Ovídio, passa por Camões escrevendo "Os Lusíadas" em Macau, no século 16, vem até Garrett que, por sua vez, escreve e publica o seu poema "Camões" no exílio de Paris (1825), se prolonga no Pessoa juvenil, que escreve em inglês, no início do século 20, em Durban (vide Alexander Search), e se atualiza na última poesia de Jorge de Sena, mas também na poesia de Manuel Alegre, o exilado na Argélia no tempo da guerra colonial de África, na década de 1960, tal como na poesia de vários poetas jovens portugueses que, por causa dessa mesma guerra, foram forçados ao exílio em vários países da Europa, aí escrevendo e publicando em português.
Outros tópicos poderão servir de veios condutores para averiguar a presença e a legibilidade de Garrett na poesia portuguesa nos dois fins de século, o final do século 19 e o fim do ainda presente século 20. De entre esses tópicos um poderia ser, por exemplo, a saudade. Não foi Garrett quem iniciou o seu poema "Camões" com os seguintes versos, que contêm a única, quanto a mim, credível noção de saudade?: "Saudade? gosto amargo de infelizes,/ Delicioso pungir de acerbo espinho,/ Que me está repassando o íntimo peito/ Com dor que os seios d'alma dilacera,/ -Mas dor que tem prazeres - Saudade!".
Tal idéia de saudade, pelo seu evidente masoquismo, pode considerar-se motora de uma linha de poesia confessional que em António Nobre, em José Duro, mas também em Manuel Laranjeira, tem os seus cultores mais em evidência.
A ela se contrapõe o saudosismo de Teixeira de Pascoaes, que se propõe definir pela ausência uma certa idiossincrasia dita portuguesa, que se aproxima do niilismo decadentista do final do século 19, simultaneamente tocando em várias chagas da sensibilidade nacional, tentando curá-las por meio de uma outra idéia de saudade centrada no desejo, que Pascoaes opõe à de Garrett: "Saudade: a velha lembrança gerando um novo desejo". No entanto tal definição não é mais do que uma outra formulação de uma velha idéia do jurista do rei Filipe 2º, Duarte Nunes. Esse frágil conceito pouco eco virá a ter na moderna poesia portuguesa do século 20, porque isso de o velho gerar o novo apenas pelo desejo, além de ser pouco verossímil, nada diz do que é o velho, nem do que é o novo, nem do que poderá ser o desejo... Talvez por isso Fernando Pessoa logo abandone Pascoaes e o seu saudosismo. Ele que, tal como Garrett na sua época, procurou intensamente o novo por meio da escrita a que justamente se poderá chamar de invenção.


E.M. de Melo e Castro é poeta e ensaísta português, autor de "Poligonia do Soneto" e "Re-Camões", entre outros.


Texto Anterior: Ana Mae Barbosa: À espera da democracia
Próximo Texto: Rosa e Lírio
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.