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LIVROS...
Relume-Dumará edita ensaio inédito do filósofo tcheco Vilém Flusser
A dúvida da dúvida
da Redação
Leia abaixo um trecho do ensaio
"A Dúvida" (Relume Dumará),
do filósofo tcheco Vilém Flusser
(1920-1991), sobre quem a editora
está também publicando a coletânea de ensaios "Vilém Flusser no
Brasil" (R$ 25,00, 240 págs.).
"A Dúvida" (R$ 15,00, 104 págs.,
prefácio de Celso Lafer) será lançado na próxima sexta-feira, com
outros dois títulos da coleção
"Conexões": "Antonin Artaud - O
Artesão do Corpo Sem Órgãos",
de Daniel Lins, e "Platão - As Artimanhas do Fingimento", de Maria Cristina Franco Ferraz.
O lançamento marcará os 10
anos da editora e acontecerá no
Rio, Livraria Marcabru (r. Marquês de São Vicente, 124/206-7,
tel. 0/xx/ 21/ 294-5994), a partir
das 20h.
VILÉM FLUSSER
A dúvida é um estado de espírito polivalente. Pode significar o
fim de uma fé ou pode significar o
começo de uma outra. Pode ainda, se levada ao extremo, ser vista
como "ceticismo", isto é, como
uma espécie de fé invertida. Em
dose moderada, estimula o pensamento. Em dose excessiva, paralisa toda atividade mental. A
dúvida, como exercício intelectual, proporciona um dos poucos
prazeres puros, mas como experiência moral ela é uma tortura. A
dúvida, aliada à curiosidade, é o
berço da pesquisa e, portanto, de
todo o conhecimento sistemático.
Em estado destilado, no entanto,
mata toda a curiosidade e é o fim
de todo o conhecimento.
O ponto de partida da dúvida é
sempre uma fé. Uma fé (uma
"certeza") é o estado de espírito
anterior à dúvida. Com efeito, a fé
é o estado primordial do espírito.
O espírito "ingênuo" e "inocente"
crê. Ele tem "boa-fé". A dúvida
acaba com a ingenuidade e inocência do espírito e, embora possa
produzir uma fé nova e melhor,
esta não mais será "boa". A ingenuidade e a inocência do espírito
se dissolvem no ácido corrosivo
da dúvida. O clima de autenticidade se perde irrevogavelmente.
O processo é irreversível. As tentativas dos espíritos corroídos pela dúvida de reconquistar a autenticidade, a fé original, não passam
de nostalgias frustradas. São tentativas de reconquistar o paraíso.
As "certezas" originais, postas em
dúvida, nunca mais serão certezas
autênticas. A dúvida metodicamente aplicada produzirá, possivelmente, novas certezas, mais refinadas e sofisticadas, mas essas
novas certezas nunca serão autênticas. Conservarão sempre a marca da dúvida que lhes serviu de
parteira.
A dúvida pode ser, portanto,
concebida como uma procura de
certeza que começa por destruir a
certeza autêntica para produzir
certeza inautêntica. A dúvida é
absurda. Surge portanto a pergunta: "Por que duvido?". Essa
pergunta é mais fundamental que
a outra: "De que duvido?". Trata-se, com efeito, do último passo do
método cartesiano, a saber: trata-se de duvidar da dúvida. Trata-se,
em outras palavras, de duvidar da
autenticidade da dúvida em si. A
pergunta "por que duvido?" implica a outra: "Duvido mesmo?".
Descartes, e com ele todo o pensamento moderno, parece não
dar esse último passo. Aceita a dúvida como indubitável. A última
certeza cartesiana, incorruptível
pela dúvida, é, a saber: "Penso,
portanto sou". Pode ser reformulada: "Duvido, portanto sou". A
certeza cartesiana é portanto autêntica, no sentido de ser ingênua
e inocente. É uma fé autêntica na
dúvida. Essa fé caracteriza toda a
Idade Moderna, essa idade cujos
últimos instantes presenciamos.
Essa fé é responsável pelo caráter
científico e desesperadamente
otimista da Idade Moderna, pelo
seu ceticismo inacabado, ao qual
falta dar o último passo. À fé na
dúvida cabe, durante a Idade Moderna, o papel desempenhado pela fé em Deus durante a Idade Média.
A dúvida da dúvida é um estado
de espírito fugaz. Embora possa
ser experimentado, não pode ser
mantido. Ele é sua própria negação. Vibra, indeciso, entre o extremo "tudo pode ser duvidado, inclusive a dúvida", e o extremo
"nada pode ser autenticamente
duvidado". Com o fim de superar
o absurdo da dúvida, leva esse absurdo ao quadrado. Oscilando,
como oscila, entre o ceticismo radical (do qual duvida) e um positivismo ingênuo radicalíssimo
(do qual igualmente duvida), não
concede ao espírito um ponto de
apoio para fixar-se.
Kant afirmava que o ceticismo é
um lugar de descanso para a razão, embora não seja uma moradia. O mesmo pode ser afirmado
quanto ao positivismo ingênuo. A
dúvida na dúvida impede esse
descanso. O espírito tomado pela
quintessência da dúvida está, em
sua indecisão fundamental, numa
situação de vaivém que a análise
de Sísifo feita por Camus ilustra
apenas vagamente. O Sísifo de Camus é frustrado, em sua correria
absurda, por aquilo dentro do
qual corre. Daí o problema básico
camusiano: "Por que não me mato?". O espírito tomado pela dúvida da dúvida é frustrado por si
mesmo. O suicídio não resolve a
sua situação, já que não duvida
suficientemente do caráter duvidoso da vida eterna. Camus nutre
ainda a fé na dúvida, embora essa
fé periclite nele.
"Penso, portanto sou". Penso:
sou uma corrente de pensamentos. Um pensamento segue o outro, portanto sou. Um pensamento segue o outro por quê? Porque
o primeiro pensamento não basta
a si mesmo se exige outro pensamento. Exige outro para certificar-se de si mesmo. Um pensamento segue outro porque o segundo duvida do primeiro e porque o primeiro duvida de si mesmo. Um pensamento segue o outro pelo caminho da dúvida. Sou
uma corrente de pensamentos
que duvidam. Duvido. Duvido,
portanto sou. Duvido que duvido,
portanto confirmo que sou. Duvido que duvido, portanto duvido
que sou. Duvido que duvido, portanto sou, independentemente de
qualquer duvidar. Assim se afigura, aproximadamente, o último
passo da dúvida cartesiana. Estamos num beco sem saída. Estamos, com efeito, no beco que os
antigos reservaram a Sísifo.
A mesma situação pode ser caracterizada por outra corrente de
pensamentos: por que duvido?
Porque sou. Duvido portanto que
sou. Portanto duvido que duvido.
É o mesmo beco visto de outro
ângulo.
Esse é o lado teórico da dúvida
radical. Tão teórico, com efeito,
que até bem pouco tempo tem sido desprezado, com razão, como
um jogo fútil de palavras. Tratava-se de um argumento pensável,
mas não existencialmente visível
("erlebbar"). Era possível duvidar
teoricamente da afirmativa "sou"
e era possível duvidar teoricamente da afirmativa "duvido que
sou", mas essas dúvidas não passavam de exercícios intelectuais
intraduzíveis para o nível de vivência. Os poucos indivíduos que
experimentaram vivencialmente
a dúvida da dúvida, que autenticamente duvidaram das afirmativas "sou" e "duvido que sou", foram considerados loucos.
A situação atual é diferente. A
dúvida da dúvida se derrama, a
partir do intelecto, em direção a
todas as demais camadas da mente e ameaça solapar os últimos
pontos de apoio do senso de realidade. É verdade que "senso de
realidade" é uma expressão ambígua. Pode significar simplesmente "fé", pode significar "sanidade
mental" e pode significar "capacidade de escolha". Entretanto o
presente contexto prova que os
três significados são fundamentalmente idênticos. A dúvida da
dúvida ameaça destruir os últimos vestígios da fé, da sanidade e
da liberdade, porque ameaça tornar o conceito "realidade" um
conceito vazio, isto é, não vivível.
O esvaziamento do conceito
"realidade" acompanha o progresso da dúvida e é, portanto, um
processo histórico, se visto coletivamente, e um processo psicológico, se visto individualmente.
Trata-se de uma intelectualização
progressiva. O intelecto, isto é,
aquilo que pensa -portanto
aquilo que duvida-, invade as
demais regiões mentais para articulá-las e as torna, por isso mesmo, duvidosas. O intelecto desautentica todas as demais regiões
mentais, inclusive aquelas regiões
dos sentidos que chamo, via de regra, de "realidade material". A
dúvida da dúvida é a intelectualização do próprio intelecto; com
ela, o intelecto reflui sobre si mesmo. Torna-se duvidoso para si
mesmo, desautentica a si mesmo.
A dúvida da dúvida é o suicídio
do intelecto. A dúvida cartesiana,
tal como foi praticada durante a
Idade Moderna, portanto a dúvida incompleta, a dúvida limitada
ao não-intelecto acompanhada de
fé no intelecto, produziu uma civilização e uma mentalidade que
deram refúgio, dentro do intelecto, à realidade.
Trata-se de uma civilização e de
uma mentalidade idealistas. A dúvida completa, a dúvida da dúvida, a intelectualização do intelecto
destroem esse refúgio e esvazia o
conceito "realidade". As frases
aparentemente contraditórias,
entre as quais a dúvida da dúvida
oscila, a saber, "tudo pode ser objeto de dúvida, inclusive a dúvida"
e "nada pode ser autenticamente
objeto de dúvida", se resolvem,
nesse estágio do desenvolvimento
intelectual, na frase: "Tudo é nada". O idealismo radical, a dúvida
cartesiana radical, a intelectualização completa desembocam no
niilismo.
Somos a primeira ou a segunda
geração daqueles que experimentam o niilismo vivencialmente.
Somos a primeira ou a segunda
geração daqueles para os quais a
dúvida da dúvida não é mais um
passatempo teórico, mas uma situação existencial. Enfrentamos,
nas palavras de Heidegger, "a clara noite do nada". Nesse sentido
somos os produtos perfeitos e
consequentes da Idade Moderna.
Conosco a Idade Moderna alcançou a sua meta. Mas a dúvida da
dúvida, o niilismo, é uma situação
existencial insustentável. A perda
total da fé, a loucura do nada todo-envolvente, a absurdidade de
uma escolha dentro desse nada
são situações insustentáveis. Nesse sentido, somos a superação da
Idade Moderna: conosco a Idade
Moderna se reduz ao absurdo.
Os sintomas dessa afirmativa
abundam. O suicídio do intelecto,
fruto de sua própria intelectualização, se manifesta em todos os
terrenos. No campo da filosofia
produz o existencialismo e o logicismo formal, duas abdicações do
intelecto em favor de uma vivência bruta e inarticulada -portanto, o fim da filosofia. No campo da
ciência pura produz a manipulação com conceitos conscientemente divorciados de toda realidade, tendendo a transformar a
ciência pura em instância de proliferação de instrumentos conscientemente destinados a destruírem a humanidade e os seus próprios instrumentos (são portanto
instrumentos destruidores e autodestrutivos). No campo da arte,
produz a arte que significa a si
mesma, portanto uma arte sem
significado. No campo da "razão
prática" produz um clima de
oportunismo imediatista, um
"carpe diem" tão individual
quanto coletivo, acompanhado
do esvaziamento de todos os valores.
Há, obviamente, reações contra
esse progresso rumo ao nada. Essas reações são, entretanto, reacionárias, no sentido de tentarem
fazer retroceder a roda do desenvolvimento. São desesperadas,
porque tentam reencontrar a realidade dos níveis já esvaziados pelo intelecto em seu avanço. No
campo da filosofia caracterizam-se pelo prefixo melhorativo "neo"
(neokantianismo, neo-hegelianismo, neotomismo). No centro
da ciência pura caracterizam-se
pelo esforço de reformular as premissas da disciplina científica em
bases mais modestas. No campo
da ciência aplicada caracterizam-se por uma esperança já agora
inautêntica em uma nova revolução industrial, capaz, esta sim, de
produzir o paraíso terrestre. No
campo da arte resultam naquele
realismo patético chamado "socialista", que não chama a si mesmo de "neo-realista" por pura
questão de pudor.
No campo da "razão prática"
assistimos a tentativas de uma
ressurreição das religiões tradicionais: pululam as seitas de religiões inventadas "ad hoc" ou buscadas em regiões geográfica ou
historicamente distantes. No
campo da política e da economia
ressurgem inautenticamente conceitos esvaziados e superados há
muito, como, por exemplo, o conceito medieval de "soberania".
Busca-se a realidade, já agora
completamente inautêntica, no
conceito do "sangue" (nazismo)
ou da "liberdade de empreendimento" (neoliberalismo), conceitos esses emprestados de hipotéticas épocas passadas. Todas essas
reações são condenadas ao malogro. Querem ressuscitar fés mortas ou inautênticas "ab initio".
Embora seja o niilismo uma situação existencial insustentável,
precisa ser tomado como ponto
de partida para toda tentativa de
superação. A inautenticidade das
reações acima esboçadas reside
na sua ignorância (autêntica ou
fingida) da situação atual da filosofia, da ciência pura e aplicada,
da arte, do indivíduo dentro da
sociedade e da sociedade perante
o indivíduo. Reside na ignorância
do problema fundamental: em todos esses terrenos, já agora altamente intelectualizados, a dúvida
desalojou a fé e perdeu o senso da
realidade. Essa situação deve ser
aceita como um fato, embora talvez não ainda como um fato totalmente consumado. Resíduos de
fé podem ser encontrados em todos esses terrenos, menos no
campo da filosofia, mais no campo da sociedade, mas resíduos
condenados. Não é a partir deles
que sairemos da situação absurda
do niilismo, mas a partir do próprio niilismo, se é que sairemos.
Trata-se, em outras palavras, da
tentativa de encontrar um novo
senso de realidade. O presente
trabalho é uma contribuição modesta para essa busca no campo
da filosofia.
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