São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

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Heróis de nosso tempo

Escrito por jornalistas especializados e centrado na saga da esquerda brasileira, "novo biografismo" se apóia no romance-reportagem e no memorialismo e busca recuperar o gosto pela fabulação das narrativas do século 19

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O novo biografismo surgiu nos anos 70, quando os autores passaram a vasculhar desvãos e personagens mais enigmáticos. Aos poucos, vão resultando livros estimulantes, baseados em pesquisas que iluminam celebridades da terra, tais como militantes e políticos, cantores e músicos, artistas, ídolos do futebol etc. Tem uma origem específica, apesar de transbordar posteriormente desse estreito vale: o resgate da saga da esquerda, duramente reprimida pela ditadura militar de 1964.
Avultam à época o memorialismo e o romance-reportagem, como que ladeando o biografismo, com ambos demarcando fronteiras às vezes flutuantes. O memorialismo, há tempos praticado no país, daria todavia um salto de qualidade com a monumental obra em seis volumes de Pedro Nava [relançados pela ed. Ateliê]. Surgindo num momento em que a literatura andava em baixa, fincaria um padrão de qualidade que as obras ficcionais coevas não atingiam. A prosa modernista e uma grandiosa cultura geral, quadro no qual Proust é freqüentemente invocado, são perceptíveis em sua pena. No âmbito das letras, é a maior realização dos anos 70.
A obra de Nava assinala uma das duas linhas do memorialismo, à época: de um lado o memorialismo dos velhos, de alto nível estético; e de outro lado o memorialismo dos jovens, que na primeira mocidade já têm experiências terríveis para contar, de tortura, cárcere e exílio. O primeiro desses livros a surgir, e que permaneceu como uma espécie de carro-chefe, é "O Que É Isso, Companheiro?" (1979, Cia. das Letras), de Fernando Gabeira.
Contemporâneo do memorialismo é o romance-reportagem, no qual acontecimentos atuais de impacto jornalístico ligados a crimes e criminosos são submetidos à ficcionalização. O romance-reportagem desenvolve um discurso muito próximo do jornalismo: sensacionalismo, ângulo de terceira pessoa, linguagem desataviada sem evitar o lugar-comum etc. O gênero continua atual. Drauzio Varella, autor de "Estação Carandiru" (1999, Cia. da Letras), ficou famoso, ganhou talk-show na televisão e se tornaria uma autoridade midiática em assuntos de saúde.


O sucesso do gênero deu origem a uma linha de subprodutos, menos interessantes, que privilegia empresários, políticos e esportistas


Traços do memorialismo e do romance-reportagem permeariam o biografismo. Do memorialismo, a experiência pessoal: os autores escrevem sobre vidas que lhes são próximas e com as quais se identificam, de uma maneira ou de outra. Do romance-reportagem: ao fazer uma biografia, delimitam uma área e tratam de investigá-la minuciosamente, operando sua cartografia social e humana.
A origem desses livros, aliás, está numa grande reportagem, "A Ilha" (1976, Cia. das Letras), do jornalista Fernando Morais, até hoje cultor do biografismo e notável por seu pioneirismo. A "ilha" é Cuba, assunto tabu à época, mas que despertava curiosidade e simpatia entre nós.
Em 1981, viria à luz "Morte no Paraíso" [Rocco], do jornalista Alberto Dines, sobre a vida e o suicídio de Stephan Zweig. Depois publicaria "O Baú de Abravanel" (1990), inesperada biografia de Sílvio Santos. Ainda escreveria "Vínculos do Fogo" (1992) [ambos pela Cia. das Letras], sobre Antonio José, o Judeu.
De certo modo, ao privilegiar protagonistas judeus, Dines vai tratando de sua aclimatação entre nós. Uma peça a mais nesse xadrez seria "Iara" (1991, Rosa dos Tempos), da jornalista Judith Lieblich Patarra, focalizando a bela e fervorosa guerrilheira Iara Iavelberg, que se tornaria a companheira de Lamarca e perderia a vida antes dos 30 anos.
Logo depois do Zweig de Dines, temos o modelar "Olga" (1985), de Fernando Morais, que narra a tragédia de Olga Benário, a judia alemã emissária do Komintern que foi mulher de Luís Carlos Prestes. Numa peripécia sempre sussurrada, mas pouco elucidada, foi entregue, depois de presa pela polícia política do ditador Vargas, e grávida, aos nazistas, em 1936. Daria à luz uma filha na prisão e pereceria na câmara de gás, em 1942. "Olga" atingiu tiragens de cerca de 140 mil exemplares.
Dois traços definem os inícios do novo biografismo: em primeiro lugar, versaria a vida ou de brasileiros ou de pessoas de interesse vital para a história do Brasil; em segundo, defenderia causas libertárias. Teria muito a ver com a necessidade de urdir a crônica dos tempos próximos, enquanto o recuo azado à historiografia demorasse a se instalar. O fato de vários deles tornarem-se best-sellers foi uma benesse a mais.
Dois outros exemplos procedem da pena do jornalista Zuenir Ventura. Um é "1968 - O Ano Que Não Terminou" (1998, Nova Fronteira), dedicado a nosso Maio de 68, de que o autor foi participante, tendo acabado preso. O outro é "Chico Mendes -Crime e Castigo" (2004, Cia. das Letras), reportagens realizadas nos anos 80 e completadas 15 anos após o assassinato do líder.
A crônica da resistência à ditadura militar de 1964 ainda obceca os brasileiros. E certamente muito anos se passarão antes que seu processo possa ser encerrado. A abertura, há poucos anos, dos arquivos do Dops já viabilizou novas pesquisas, enquanto outros arquivos permanecem trancados. Ao jornalista investigativo Percival de Souza devemos um olhar original, que perquiriu o lado de lá, ao focalizar, entre seus muitos livros, o cabo Anselmo e o delegado Fleury.
Trabalhos, depoimentos, testemunhos, ensaios críticos, teses, tratados, biografias, ainda virão a público. Marighella e Lamarca, bem como Luís Carlos Prestes, já foram biografados, a exemplo de vários outros militantes e guerrilheiros. Mas ainda falta muita gente.
Aquilatando sua importância, o jornalista Elio Gaspari, que passou 30 anos coletando documentos e fazendo entrevistas, está pondo o ponto final numa monumental história do período, em cinco volumes. Já saíram "A Ditadura Envergonhada" (2002), "A Ditadura Escancarada" (2002), "A Ditadura Derrotada" (2003) e "A Ditadura Encurralada" (2004), enquanto aguardamos o quinto e último.

Jornalismo e futebol
Depois de "Olga", Fernando Morais se dedicaria a radiografar a complexa personalidade daquele que foi um reputado empresário da imprensa, em "Chatô - O Rei do Brasil" (1994), apelido de Assis Chateaubriand, sempre às voltas com negociações escusas e um dos mais poderosos homens de seu tempo, a quem todos, até presidentes da República, temiam. Ainda outro, "Corações Sujos" (2000), investiga um intrigante episódio de nossa história, só agora esclarecido, em que imigrantes japoneses organizaram uma sociedade secreta, a famigerada Shindo-Remei, que justiçava os "traidores", ou seja, os que acatavam a derrota e não acreditavam na vitória do Japão na Segunda Guerra.
Dentre os vários do jornalista Ruy Castro, ressalta a biografia do jogador de futebol Garrincha, intitulada "Estrela Solitária" (1995): um gênio do esporte, cuja conduta ingênua, isenta de uso do mundo, deu origem a toda uma saga de anedotas. A suas pernas de subnutrido, tortas e defeituosas graças à fome que passou na infância, atribuíam-se os milagres que operava em campo.
Contrastando, "Chega de Saudade" (1990) volta-se para o perfil coletivo do grupo de compositores e cantores que criou a bossa nova, centrado na figura de João Gilberto; teria continuação em "A Onda Que Se Ergueu no Mar" (2001). Nesse mesmo ano sairia "Ela É Carioca -Biografia de um Bairro": uma enciclopédia em verbetes sobre Ipanema, suas garotas, suas músicas, seu folclore, suas celebridades e excentricidades, suas personalidades típicas, seus bares, seus artistas, sua fauna bizarra, sua vida boêmia.
Outro é "O Anjo Pornográfico" (1992), focalizando o dramaturgo Nelson Rodrigues, pessoalmente desbocado e sempre citado pelas fórmulas de impacto que divulgava em suas matérias jornalísticas, pelas posições direitistas e pela vida cheia de peripécias.
Ao jornalista Humberto Werneck devemos um trabalho na área mais propriamente das letras, "O Desatino da Rapaziada" (1992, Cia. das Letras), biografia grupal, uma reconstituição do ambiente entre literário e jornalístico de Minas Gerais nas décadas que se seguiram ao modernismo, com ênfase na trajetória pessoal dos protagonistas, alguns dos quais, a exemplo de Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa, se contam entre os mais importantes de nossos escritores, nenhum deles ainda biografado. Para obter material, o autor entrevistou a maioria deles.
Inaugurando uma ramificação do gênero de muito futuro, o projeto editorial Camisa 13 [da Ediouro] propõe biografias dos 13 principais clubes de futebol.
Ruy Castro, o campeão do biografismo, responsabilizou-se pelo Flamengo; o crítico de cinema Sérgio Augusto, pelo Botafogo; Sérgio Motta, pelo Fluminense. Esses três foram publicados em 2004, mas o projeto vai a todo vapor, já tendo anunciado todos os autores e clubes. Cada um deles foi entregue a um torcedor, e todos escrevem com a paixão que é seu apanágio.
Essas narrativas não se transformam propriamente em ficção, mantendo antes uma voz objetiva, mais próxima do jornalismo. Entretanto tais livros são bem menos sisudos que as biografias oficiais, em geral panegíricas, ou as teses. Descartam uma certa solenidade, típica do gênero; em contrapartida, por vezes acolhem versões fantasiosas, pouco comprováveis. Mas o fato de seus autores serem jornalistas, mestres de uma escrita fluente e vivaz sem dificuldades de leitura, incorporando técnicas ficcionais como o monólogo interior e o retrocesso, ou ainda a reconstituição puramente imaginária de diálogos, torna indistintas as fronteiras entre os dois domínios.
Ao que tudo indica, a evolução do jornalismo está expulsando profissionais, especialmente aqueles mais ligados ao campo cultural ou intelectual, que então empregam seus talentos no biografismo. A isso associa-se a expansão do mercado editorial nos anos 90, quando se multiplicou o número de editoras pequenas e médias.
O êxito de mercado e as altas tiragens que alcançam obrigam à cogitação de que seu condão possa se beneficiar de ainda outro ingrediente ficcional. De fato, parece ter migrado para o biografismo aquilo que tornava atraente o romance do século 19, ao privilegiar um herói e os anos de sua formação, e que acabou por desaparecer no século seguinte, quando as vanguardas tenderam a eliminar o enredo.
Dessa maneira, a ficção oitocentista abria as comportas à vivência vicariante, preenchendo funções psicológicas e sociais de relevância, cujas virtualidades poderiam ter-se refugiado hoje, no que concerne à leitura, nas modalidades biográficas. Enquanto isso, nos lançamentos das editoras diminui o número de romances e aumenta o de biografias.
Neste rápido levantamento do novo biografismo divisam-se certas constantes, como, por exemplo, as já mencionadas de que seus autores são jornalistas profissionais e a de que se tratou inicialmente de um resgate da saga da esquerda, recalcada pela ditadura. O sucesso do gênero já deu origem a uma linha de subprodutos, menos interessantes, privilegiando empresários, políticos, esportistas ou temas pitorescos, amiúde feitos apressadamente e sem a verve que caracteriza o novo biografismo. Mas ao longo do percurso muita coisa foi mudando, e outras constantes há, sobretudo no que concerne à escolha dos objetos.
Em primeiro lugar, e disparado, confirma-se a posição fora do comum que a música popular ocupa na vida dos brasileiros: a maior freqüência é de figuras ligadas a essa área. Já ganharam livros Carmen Miranda, Pixinguinha, Noel Rosa, Ary Barroso, Lamartine Babo, Baden Powell, Mário Lago, Luiz Gonzaga, Cazuza, Cauby Peixoto, João Gilberto, Adoniran Barbosa, Aracy de Almeida, João do Vale, Orlando Silva, Elis Regina, o Clube da Esquina e a bossa nova; dentre os eruditos, Villa-Lobos. Os mais populares e pitorescos, até mais de um, como é o caso de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes.

Adaptações
Em segundo lugar, vêm os políticos, como Ulysses Guimarães ou Carlos Lacerda e, dentre eles, os presidentes da República. E o imperador d. Pedro 2º. Já ganharam biografias Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva. Estes dois últimos foram até agraciados com um mesmo livro, que coteja as vidas de ambos.
Em terceiro lugar, estão os próprios jornalistas (Chateaubriand, Davi Nasser, Samuel Wainer, Paulo Francis, Nelson Rodrigues, Roberto Marinho, por enquanto só os mais poderosos ou polêmicos) e personalidades do teatro ou do cinema (Glauber Rocha, Dercy Gonçalves, Cacilda Becker, Cleide Yaconis, Lelia Abramo, Procópio Ferreira, Humberto Mauro, Anselmo Duarte, Mazzaropi, Ruth de Souza, o crítico Paulo Emílio Salles Gomes).
Constituem exceção as biografias dedicadas a alguém fora desses três grupos, como as de Portinari e de Tarsila do Amaral. Infelizmente, as biografias literárias estão nesse caso. Afora nomes que monopolizam os trabalhos, como Machado de Assis e Euclides da Cunha, poucas há, e não seduzem as teses universitárias, embora ultimamente surjam indícios de reversão dessa tendência.
Cecília Meireles e Mário Faustino foram há pouco contemplados, e, Clarice Lispector, com várias; mas também constituem exceção, e alguns dos mais importantes escritores do século passado ainda aguardam o privilégio.
É de notar que o novo biografismo, ao contrário das obras propriamente literárias, constitui uma fonte para o cinema e a televisão que ainda está longe de se esgotar, em adaptações para filmes de ficção destinados ao cinema, documentários e docudramas para TV bem como séries televisivas, alimentando outros circuitos da indústria cultural.
Nisso, suplantam a literatura propriamente dita. Por isso mesmo, seus autores não são basicamente escritores de literatura do tipo tradicional, mas antes jornalistas desdobrados em roteiristas de cinema e televisão, bem como autores de telenovela, o que certamente pesa sobre a maneira de escrever.

Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP e autora de, entre outros livros, "No Calor da Hora" e "Guimarães Rosa" (Publifolha).


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