São Paulo, domingo, 05 de dezembro de 2004

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contraponto

"Má Educação", de Almodóvar, e "O Que Restou do Sagrado", de Mário Bortolotto, tematizam o vazio da fé na sociedade contemporânea

Autobiografias da destruição

SCARLETT MARTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em que medida somos determinados pela educação que recebemos? Qual o peso da religião que assimilamos? Qual a importância da formação que tivemos? Qual o papel do meio que freqüentamos? Existe lugar para Deus hoje em nossas vidas? Até que ponto a culpa promovida pela Igreja Católica não acabou por se tornar constitutiva do nosso ser? Essas são algumas questões que "O Que Restou do Sagrado", peça de Mário Bortolotto em cartaz no Espaço dos Satyros (tel. 0/xx/11/ 3258-6345), em São Paulo, e "Má Educação", filme recém-lançado de Pedro Almodóvar, suscitam no espectador.
Uma atriz de filmes pornográficos assassina três homens no momento em que por eles se deixa fornicar. Um homem se deleita com as carnes macias e rosadas de crianças. Outro ateia fogo num homossexual depois de presenciar um intercurso sexual.
Uma secretária, moça bem-comportada, mata a avó e, logo em seguida, o avô e parte da família. Uma jovem envenena o pai, escritor renomado; ao vê-lo agonizante, com ele faz sexo e, depois, publica como se fora da própria autoria o último livro por ele concebido. Um empresário bem-sucedido promove assassinatos em massa, distribuindo a crianças desnutridas leite em pó contaminado. O que poderiam ter em comum essas personagens? Reunidas numa igreja, um padre as incita a se confessarem.
Do arrependimento delas depende a salvação do mundo. Em vão. Pois é com o homicídio, a pedofilia, a homofobia, o assassinato, a necrofilia e o genocídio que dizem sentir prazer.
Ignácio Rodriguez, ator pouco conhecido em busca de trabalho, procura Enrique Goded, diretor de cinema em crise de criatividade. Ao velho amigo de escola, que não via havia 16 anos, ele entrega um relato de sua autoria. Nele narra vivências que então tiveram no colégio dos padres.
Fala do amor que sentia pelo amigo e dos abusos sexuais que sofreu por parte do diretor da instituição. O conto intitulado "A Visita" acaba por converter-se em roteiro de filme, protagonizado por Ignácio e dirigido por Enrique. No colégio, os dois alunos descobrem a sexualidade e a vivem enquanto transgressão. De um lado, o espontâneo e o lúdico; de outro, a violência e o poder.
Na peça de Bortolotto, o padre que instiga aquelas seis pessoas a se arrependerem se acha desorientado e perdido. No filme de Almodóvar, o padre que abusa do menino de dez anos aparece tomado por paixões devastadoras. Tanto num caso quanto no outro, desmonta-se a imagem de ministro de Deus. Bem mais. As seis pessoas reunidas na igreja não se importam com a salvação do mundo, porque não acreditam nela. O menino de dez anos no colégio se dá conta de que perdeu a fé e, com ela, perdeu o medo; por isso mesmo, torna-se capaz de tudo.

Eliminar para construir
No contexto da Igreja Católica, já não há mais lugar para o sagrado; no quadro dessa instituição milenar, dele nada restou.
Se Deus morreu, tudo é permitido. A velha frase indica que o ser humano perdeu os referenciais que por tanto tempo orientaram as suas ações. Sem parâmetros para nortear a própria conduta, ele tudo pode. Mas será que ele pode inclusive viver sem culpa? Em "O Que Restou do Sagrado", até que ponto as seis personagens que afirmam se deleitar com os seus atos se sentem inocentadas? Por que razão elas precisam se confessar?
Em "Má Educação", o abuso sofrido por Ignácio não teria sido determinante para que ele mergulhasse no mundo das drogas? A culpa por ele interiorizada não o teria levado a promover a própria destruição?
E aqui se abre outro leque de questões. Os acontecimentos vividos na infância são decisivos em nossa existência? Chegamos a nos tornar responsáveis por nossas ações? Quanto de nossas vidas está sob nosso controle? Qual a extensão de nosso livre-arbítrio, se é que ele existe? O fato é que, no mundo dessacralizado em que vivemos, o ser humano se vê abandonado à sua própria condição.
Na peça de Bortolotto, cada personagem é, à sua maneira, preconceituosa. E o preconceito consiste em não querer ver-se espelhado no outro. Em que medida o indivíduo que incendeia o homossexual não quer eliminar a parte homossexual que nele mesmo existe? Ou em que medida a atriz de filmes pornográficos não quer eliminar em seus parceiros o gozo desmedido que ela mesma sente? É graças à supressão do outro que se constroem essas identidades.
E, de igual modo, no filme de Almodóvar. O jovem, que se apresenta como Ignácio Rodriguez, mudou de nome; agora ele quer que o chamem Angel Andrade. À primeira vista, quer tornar-se um outro; na verdade, ele já é um outro. Pois não é de Ignácio que se trata, e sim de Juan, um Juan que precisou suprimir Ignácio para existir.
Central na obra do cineasta, a questão da identidade se põe ainda com maior ênfase na sua relação com uma das personagens deste seu trabalho. O diretor de "Má Educação" parece espelhar-se no diretor de "A Visita". Ambos os filmes são, em parte, relatos autobiográficos.
Num deles, com frieza e precisão matemáticas, Almodóvar transmuta momentos de sua vida; no outro, Enrique Goded se lança numa filmagem a ponto de ser por ela devorado e, entregando-se por inteiro à experiência, dela sair transformado. Afinal, neste mundo dessacralizado, cabe a cada um tornar-se o que é.


Scarlett Marton é professora titular de filosofia contemporânea na USP e autora de "A Irrecusável Busca de Sentido - Autobiografia Intelectual" (ed. Ateliê), entre outros.


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