|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
contraponto
"Má Educação", de Almodóvar, e "O Que Restou do Sagrado", de Mário Bortolotto, tematizam o vazio da fé na sociedade contemporânea
Autobiografias da destruição
SCARLETT MARTON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em que medida somos determinados pela educação que
recebemos? Qual o peso da religião que assimilamos? Qual
a importância da formação que tivemos? Qual o papel do meio que freqüentamos? Existe lugar para Deus
hoje em nossas vidas? Até que ponto
a culpa promovida pela Igreja Católica não acabou por se tornar constitutiva do nosso ser? Essas são algumas questões que "O Que Restou do
Sagrado", peça de Mário Bortolotto
em cartaz no Espaço dos Satyros (tel.
0/xx/11/ 3258-6345), em São Paulo, e
"Má Educação", filme recém-lançado de Pedro Almodóvar, suscitam
no espectador.
Uma atriz de filmes pornográficos
assassina três homens no momento
em que por eles se deixa fornicar.
Um homem se deleita com as carnes
macias e rosadas de crianças. Outro
ateia fogo num homossexual depois
de presenciar um intercurso sexual.
Uma secretária, moça bem-comportada, mata a avó e, logo em seguida, o avô e parte da família. Uma jovem envenena o pai, escritor renomado; ao vê-lo agonizante, com ele
faz sexo e, depois, publica como se
fora da própria autoria o último livro por ele concebido. Um empresário bem-sucedido promove assassinatos em massa, distribuindo a
crianças desnutridas leite em pó
contaminado. O que poderiam ter
em comum essas personagens? Reunidas numa igreja, um padre as incita a se confessarem.
Do arrependimento delas depende
a salvação do mundo. Em vão. Pois é
com o homicídio, a pedofilia, a homofobia, o assassinato, a necrofilia e
o genocídio que dizem sentir prazer.
Ignácio Rodriguez, ator pouco conhecido em busca de trabalho, procura Enrique Goded, diretor de cinema em crise de criatividade. Ao velho amigo de escola, que não via havia 16 anos, ele entrega um relato de
sua autoria. Nele narra vivências que
então tiveram no colégio dos padres.
Fala do amor que sentia pelo amigo e dos abusos sexuais que sofreu
por parte do diretor da instituição. O
conto intitulado "A Visita" acaba
por converter-se em roteiro de filme,
protagonizado por Ignácio e dirigido por Enrique. No colégio, os dois
alunos descobrem a sexualidade e a
vivem enquanto transgressão. De
um lado, o espontâneo e o lúdico; de
outro, a violência e o poder.
Na peça de Bortolotto, o padre que
instiga aquelas seis pessoas a se arrependerem se acha desorientado e
perdido. No filme de Almodóvar, o
padre que abusa do menino de dez
anos aparece tomado por paixões
devastadoras. Tanto num caso
quanto no outro, desmonta-se a
imagem de ministro de Deus. Bem
mais. As seis pessoas reunidas na
igreja não se importam com a salvação do mundo, porque não acreditam nela. O menino de dez anos no
colégio se dá conta de que perdeu a
fé e, com ela, perdeu o medo; por isso mesmo, torna-se capaz de tudo.
Eliminar para construir
No contexto da Igreja Católica, já
não há mais lugar para o sagrado; no
quadro dessa instituição milenar,
dele nada restou.
Se Deus morreu, tudo é permitido.
A velha frase indica que o ser humano perdeu os referenciais que por
tanto tempo orientaram as suas
ações. Sem parâmetros para nortear
a própria conduta, ele tudo pode.
Mas será que ele pode inclusive viver
sem culpa? Em "O Que Restou do
Sagrado", até que ponto as seis personagens que afirmam se deleitar
com os seus atos se sentem inocentadas? Por que razão elas precisam
se confessar?
Em "Má Educação", o abuso sofrido por Ignácio não teria sido determinante para que ele mergulhasse
no mundo das drogas? A culpa por
ele interiorizada não o teria levado a
promover a própria destruição?
E aqui se abre outro leque de questões. Os acontecimentos vividos na
infância são decisivos em nossa existência? Chegamos a nos tornar responsáveis por nossas ações? Quanto
de nossas vidas está sob nosso controle? Qual a extensão de nosso livre-arbítrio, se é que ele existe? O fato é
que, no mundo dessacralizado em
que vivemos, o ser humano se vê
abandonado à sua própria condição.
Na peça de Bortolotto, cada personagem é, à sua maneira, preconceituosa. E o preconceito consiste em
não querer ver-se espelhado no outro. Em que medida o indivíduo que
incendeia o homossexual não quer
eliminar a parte homossexual que
nele mesmo existe? Ou em que medida a atriz de filmes pornográficos
não quer eliminar em seus parceiros
o gozo desmedido que ela mesma
sente? É graças à supressão do outro
que se constroem essas identidades.
E, de igual modo, no filme de Almodóvar. O jovem, que se apresenta
como Ignácio Rodriguez, mudou de
nome; agora ele quer que o chamem
Angel Andrade. À primeira vista,
quer tornar-se um outro; na verdade, ele já é um outro. Pois não é de
Ignácio que se trata, e sim de Juan,
um Juan que precisou suprimir Ignácio para existir.
Central na obra do cineasta, a
questão da identidade se põe ainda
com maior ênfase na sua relação
com uma das personagens deste seu
trabalho. O diretor de "Má Educação" parece espelhar-se no diretor
de "A Visita". Ambos os filmes são,
em parte, relatos autobiográficos.
Num deles, com frieza e precisão
matemáticas, Almodóvar transmuta
momentos de sua vida; no outro,
Enrique Goded se lança numa filmagem a ponto de ser por ela devorado
e, entregando-se por inteiro à experiência, dela sair transformado. Afinal, neste mundo dessacralizado, cabe a cada um tornar-se o que é.
Scarlett Marton é professora titular de filosofia contemporânea na USP e autora de "A
Irrecusável Busca de Sentido - Autobiografia
Intelectual" (ed. Ateliê), entre outros.
Texto Anterior: Notas Próximo Texto: + sociedade: Balzac encontra Beckham Índice
|