São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2002

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ponto de fuga

A loira na burga

Jorge Coli
especial para a Folha

O filme de Mohsen Makhmalbaf, "O Caminho para Kandahar", se passa no Afeganistão. Numa cena, as mulheres, recobertas por tecidos, espicham as mãos para pintar as unhas com esmalte. Fazem circular batom, maquiando-se debaixo daqueles panos. Um pai de família, com várias mulheres, repete, irritado, que "a burga não é um enfeite". É inegável, contudo, que tais roupas, destinadas a ocultar o corpo, traem a beleza inesperada das cores e se completam por bordados.
Há uma transgressão deliciosa nessas cenas, em que a opressão cede o passo a uma vaidade furtiva. Futilidade se junta, portanto, à liberdade. Ela surge também celebrada num outro filme, de carreira discreta, "Legalmente Loira", dirigido por Robert Luketic, estrelado pela inenarrável Reese Witherspoon. Penteados, cosméticos, roupas de grife, ursinhos de pelúcia, gritinhos: tudo isso adentra na mais solene das universidades de direito, para maior felicidade do espectador. Seria o salão de beleza um foco de feminismo? A loira pode ter unhas postiças e não ser burra? Hitchcock havia dado o mote: Grace Kelly, em "Janela Indiscreta", imersa no mundo da moda, é quem descobre, raciocinando por meio da frivolidade feminina, que o crime fora cometido.
Isso ocorre também em "Legalmente Loira", com seu final à la Perry Mason. Não tem o chique de Hitchcock. Mas conservou uma elegância no tratamento: tudo é muito engraçado, embora nada seja ridículo ou sarcástico. "Legalmente Loira" paira sempre num equilíbrio que termina por respeitar o direito à vaidade.
Acupuntura - Luc Besson sonha, na Europa, com a magnitude de Hollywood. Seu padrão é o americano. "O Beijo do Dragão", por ele produzido, é falado em inglês e se quer um kung fu em grande estilo. Porém, como que de modo involuntário, o filme não se interessa tanto pela coreografia das lutas, que os diretores vindos da Ásia têm levado a extremos.
É a presença visual de Jet Li, muito poderosa, sua silhueta escura e apurada, seu olhar desamparado, seu personagem solitário, que se impõe plenamente. O diretor estreante Chris Nahon capta o lutador correndo por uma Paris labiríntica, escondendo-se sob pontes, engolfando-se em esgotos, mais na tradição da literatura romântica do que das lutas marciais: Jet Li se transforma numa espécie de Jean Valjean oriental dos nossos dias. Os momentos mais densos são íntimos: eles transcorrem num pequeno restaurante chinês.
Há ainda um certo tipo de humor que ironiza sobre os próprios excessos inverossímeis das cenas, e há um curioso ódio à polícia francesa. Resulta um híbrido cultural, impondo-se, no entanto, com classe e segurança. E com muito menos kitsch, também, do que os filmes que são dirigidos pelo próprio Besson.
Glam rock - "Hedwig and the Angry Inch" ("Hedwig - Rock, Amor e Traição") transpõe para o cinema um espetáculo do Meatpacking District, em Nova York, de grande sucesso. Conta a história maluca de um transexual alemão roqueiro, morando nos EUA, cuja operação imperfeita deixou-o com uma polegada sobrando. Falso mambembe, falsa drag queen e falso roqueiro, degustado no teatro por um público que se iludia, gulosamente, com falsos bas-fonds. O filme, dirigido pelo ator-autor-cantor John Cameron Mitchell, é mais engraçado e esperto do que o show original.
Pandeiro - Por vezes, um diretor se esforça, se aplica, traça estratégias, pensa profundo, arranja estrelas nacionais e internacionais, convoca fotógrafo sofisticado, e o filme não decola de jeito nenhum. "Aviso aos Navegantes" não tem ambições elevadas. É chanchada da Atlântida, de 1950, dirigida por Watson Macedo, agora restaurada e editada em DVD pela Versátil.
Mas o talento está lá, implícito nos atores prodigiosos, em cada número musical, em cada gesto, em cada paródia. Cinema de fato, que brota espontâneo e não perde a energia feliz nas suas quase duas horas. Oscarito e Grande Otelo emergem num mar de risos, tão geniais e imensos quanto os maiores cômicos do cinema norte-americano.


Jorge Coli é historiador da arte.

E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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