São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2002

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Casa sobre o mar

por Eugenio Montale

Leia abaixo poema do livro "Ossos de Sépia", do ganhador do Nobel de Literatura de 1975, que será lançado neste mês pela Companhia das Letras


A viagem termina aqui:
em cuidados mesquinhos que dividem
a alma que não mais sabe dar um grito.
Já os minutos são iguais e fixos
como os giros de rotação da bomba.
Um giro: um subir de água que ribomba.
Outro, outra água, por vez um rangido.

A viagem termina nesta praia
que tocam lentos e assíduos fluxos.
Nada revela fora tênue bruma
a orla marinha que tecem de conchas
suaves aragens: e raro aparecem
numa bonança muda
entre as ilhas de ar migratórias
cristas da Córsega ou da Capraia.

Tu perguntas se assim tudo se esvai
nessa escassa névoa de memórias;
se à hora que entorpece ou no suspiro
da rebentação cumpre-se cada destino.
Dizer que não eu gostaria, que urge
a hora de passares além do tempo;
talvez só quem quiser se infinite
e tu hás de poder; quem sabe, não eu.
Para os demais não vejo salvação,
mas que alguém subverta todo desígnio,
cruze o passo, como quis se encontrasse.
Quisera antes de me render mostrar-te
essa via de escape
tão lábil como nos revoltos campos
do mar a espuma e o refego.
Dou-te ainda a minha ávida esperança.
Cansei de alentá-la para novos dias:
é um penhor a teu fado, que te salve.

O caminho termina nestas margens
que corrói a maré com moto alterno.
Teu coração próximo não me ouve
e zarpa já talvez para o eterno.



Tradução de Renato Xavier



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