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O historiador inquieto
Coletânea introduz obra do britânico Trevor-Roper, que analisou transformações da Europa entre os séculos 16 e 18
JEAN MARCEL CARVALHO
FRANÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA
P
oucos historiadores
contemporâneos devotaram tanto gosto
pela polêmica quanto
o inglês Hugh Trevor-Roper (1914-2003).
Inúmeros são os livros e ensaios que deixou -a maioria
sobre o nascimento da Europa
moderna (séculos 16 e 17) e a
Segunda Guerra- construídos
a partir da problematização de
teses alheias, teses que o catedrático de Oxford "testa", desmonta e critica com uma acuidade pouco usual no meio
-que o digam Max Weber, Eric
Hobsbawm, M. Dobb, A.J.P.
Taylor, E. Carr, Cristopher Hill
e tantos outros.
A comentada obra de Trevor-Roper, no entanto, ainda
que conhecida dos historiadores locais, é pouquíssimo divulgada e acessível no Brasil. Para
se ter uma idéia da sua "impopularidade", basta mencionar
que nenhum de seus livros,
nem mesmo o mais popular deles, "Os Últimos Dias de Hitler"
(1947), conheceu uma tradução
brasileira.
Graças, porém, à editora
Topbooks, que tem se notabilizado pela publicação entre nós
de importantes estudos historiográficos estrangeiros, o leitor brasileiro já pode ter acesso, em português do Brasil
-havia já uma tradução portuguesa da obra-, a um dos pontos altos da carreira deste inquieto historiador: "A Crise do
Século 17 - Religião, a Reforma
e Mudança Social", uma coletânea de ensaios publicada originalmente em 1967.
Formado por dez extensos e
densos estudos, o livro, segundo as palavras do próprio Hugh
Trevor-Roper, é todo voltado
para o mapeamento da "crise
geral no período "moderno inicial" da história; crise que não
foi apenas política ou econômica, mas também social e intelectual, e que não se limitou a
um país, mas foi sentida por toda a Europa".
Dos ensaios interessados em
analisar tal crise, seis deles dedicados direta ou indiretamente à Guerra Civil inglesa -das
suas influências intelectuais às
relações de Oliver Cromwell
com o Parlamento-, quatro
são especialmente recomendados para aqueles que querem
conhecer melhor algumas das
teses centrais, dos temas recorrentes e mesmo dos deslocamentos conceituais presentes
nos estudos de Trevor-Roper
sobre os séculos 16, 17 e 18.
O primeiro deles, por certo o
mais célebre, intitula-se "Religião, a Reforma e Mudança Social" e dedica-se a "testar" a famosa tese de Weber segundo a
qual a ética calvinista teria sido
o motor moral e intelectual do
capitalismo nascente dos séculos 16 e 17. O inglês não refuta
propriamente a tese de Weber,
como o leitor verá, mas complementa-a, precisa-a, dá-lhe,
enfim, sustância histórica
-"Weber baseou-se em exemplos históricos limitados e limitadores", como explica-, a
sustância que supostamente
faltara ao sociólogo alemão.
Intimamente articulado a esse primeiro estudo, o segundo
ensaio da coletânea, "A Crise
Geral do Século 17", também
tem um alvo preciso, o dito
marxismo inglês e sua leitura
do conturbado período que viveu a Europa seiscentista. O
que está em causa aqui é o tamanho da crise -várias crises
locais ou uma grande crise com
diversas "atualizações"?- e sobretudo a sua natureza: o historiador está diante de uma crise
econômica, com desdobramentos políticos, ou de uma
"crise ampla nas relações entre
Estado e sociedade"?
Os dois ensaios subseqüentes, "A Mania Européia de Bruxas" e "As Origens Religiosas
do Iluminismo", trazem um
Trevor-Roper sensível aos apelos de uma "história intelectual". O primeiro busca determinar as condições sociais para
a emergência e proliferação,
entre os séculos 16 e 17, em diversas regiões da Europa, de
uma persistente "ideologia
persecutória" em relação às
bruxas.
O outro trata das origens do
iluminismo, não propriamente
das origens protestantes do
movimento, mas, como o historiador procura demonstrar
com sólida argumentação, da
sua origem "erasmiana".
"A Crise do Século 17", em
resumo, é uma excelente
amostra da história legada por
Trevor-Roper. Trata-se de um
livro erudito, articulado e dotado de uma linguagem tão clara
e atraente que o leitor acaba
por não perceber, por exemplo,
o uso que faz o autor de algumas analogias um tanto anacrônicas, a certeza subjacente à
sua exposição de que o acúmulo de exemplos empíricos garante a verdade da tese a ser
demonstrada, a sua crença em
"fatos históricos" extensivos à
Europa como um todo e, sobretudo, o seu modo pouco sutil de
abordar os temas culturais, tomados quase como um reflexo
dos processos políticos e econômicos.
Trevor-Roper, afinal, é daqueles historiadores cujo talento argumentativo tem o poder de dissolver os pressupostos de seu discurso numa narrativa que soa aos ouvidos do
leitor como algo muito próximo de uma suposta "verdade os
fatos".
JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA é professor de história na Universidade Estadual Paulista, em Franca (SP), e autor de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional/Casa da Moeda).
A CRISE DO SÉCULO 17:
RELIGIÃO, A REFORMA E MUDANÇA SOCIAL
Autor: Hugh Trevor-Roper
Tradução: Julio Castañon Guimarães
Editora: Topbooks (tel. 0/xx/21/
2233-8718)
Quanto: R$ 78,90 (700 págs.)
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