São Paulo, domingo, 06 de janeiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cultura

Companheiro das letras

O polemista britânico Christopher Hitchens diz que seleção de artigos de Edmund Wilson recém-lançada nos EUA revela, além de escritor minucioso, um crítico generoso

Associated Press - 15.jun.2004
Escultura do escritor irlandês James Joyce ao lado de sua sepultura em cemitério de Zurique, na Suíça


CHRISTOPHER HITCHENS

N um belo ensaio em memória de Alexander Woollcott [1887-1943], publicado em 1943 e originalmente concebido como um encômio do grande crítico em resposta a um obituarista pouco generoso, Edmund Wilson conseguiu converter uma relação declaradamente tênue numa imagem cativante de um homem e de um momento -a época em que os pais de ambos estiveram ligados a uma colônia fourierista em Red Bank, Nova Jersey.
As recordações de Woollcott como homem de teatro, entremeadas a reflexões sobre os meandros da esquerda americana, combinam-se num belo perfil e num belo retrato de época: o jornalismo da melhor espécie. O que me capturou a atenção, porém, foi um episódio dos anos 30, quando Wilson, logo depois de suas reportagens sobre o movimento operário para a revista "The New Republic", foi convidado a visitar Woollcott em Sutton Place: "Assim que entrei no quarto, ele gritou, sem mais cerimônias, "Como você engordou!".
Pensei que devia ser o seu jeito de desarmar qualquer horror diante da sua própria rotundidade flácida, que triplicara desde nosso último encontro." Esse e outros aspectos daquela noite mostram claramente que Wilson entendia por que a personalidade de Woollcott não parecia agradável a todos. Mas a tirada defensiva sobre a questão do diâmetro corporal me fez perceber que deve ter havido um momento em que Edmund Wilson foi magro -o que negava a idéia que eu me acostumara a evocar mentalmente.
A prosa de Wilson, se não é exatamente rotunda, é espantosamente sólida. Não há como virar as páginas desses dois belos e pesados volumes produzidos pela Library of America ["Literary Essays and Reviews of the 1920s and 30s", Ensaios Literários e Resenhas dos anos 1920 e 30", 958 págs., US$ 40, R$ 70, e "Literary Essays and Reviews of the 1930s and 40s", 980 págs., US$ 40, R$ 70] sem experimentar uma sensação de massa, peso e "gravitas".
Ele era o tipo de pessoa que, como se diz, "levantava" os assuntos. Para um olhar moderno e vulgar, isso significa um fulano que lê livros e, com isso, nos exime da tarefa. Mas Wilson supunha algum conhecimento da parte do leitor, fornecia-lhe boa dose de alusões e referências e tratava de preencher as lacunas da educação geral. Autodidata, ele parece ter nutrido a esperança de estimular o autodidatismo alheio.
Um bom exemplo da atuação de Wilson como co-leitor, tutor e conselheiro literário são suas sucessivas discussões de "Finnegans Wake" [de James Joyce, ed. Ateliê]. Num ensaio incluído em "The Wound and the Bow" [A Ferida e o Arco] sob o título de "O sonho de H.C. Earwicker", ele conduz o público pela extraordinária densidade e complexidade da vida onírica do herói de Joyce, um dono de bar que dorme e ronca.

Incentivo à leitura
Wilson mostra onde o leitor pode se apoiar, enquanto o adverte: haverá passagens complicadas, às vezes prolixas, mas o esforço será recompensado. Há notas de rodapé, com remissões, por exemplo, a ensaios publicados pela revista "Transition", de Paris, que talvez possam fornecer uma "chave".
Há uma alusão erudita à parte 3 de "The Literary Mind" [A Mente Literária], de Max Eastman, que, uma vez consultada, revela a grandiosa ambição de Joyce: o desejo de que os leitores dedicassem suas vidas inteiras à decifração da obra. Como quem se prepara para o desafio, Wilson escreve: "Em "Ulisses", Joyce lançou mão da Odisséia para dar estrutura a seu material -material que, tão logo começou a jorrar da rocha da personalidade de Joyce como se tocada pelo cajado da livre associação de Aarão, ameaçou subir e submergir o artista, à maneira do que acontece com o aprendiz de feiticeiro e sua vassoura endemoniada; agora, diante de um perigo ainda mais formidável, Joyce recorreu à teoria da história de Giambattista Vico, o filósofo do século 17, para ajudá-lo a organizar "Finnegans Wake"." Somos tentados a pensar que Wilson deixou-se infectar pela bela prolixidade de seu tema; temos o impulso de evocar o velho mote da "New Yorker" ("Parem essa metáfora!"); e só então suspeitamos que ele esteja fazendo tudo de caso pensado. Note-se a alusão a Vico, cuja obra servia como uma espécie de modelo para "Rumo à Estação Finlândia" [Companhia das Letras], o grande estudo wilsoniano sobre a teleologia e o messianismo.
Num ensaio subseqüente, "A Guide to "Finnegans Wake'" [Um guia para "Finnegans Wake'], publicado em agosto de 1944, Wilson torna a convocar seus leitores à empreitada joyciana. Desta feita, uma nova "chave", escrita por Joseph Campbell e Henry Morton Robinson, serviu de fagulha para o entusiasmo. Depois de nos aconselhar a abordar o material via Virgílio, Dante e Milton, o crítico acrescenta que a melhor estratégia talvez consista em comprar o original, mais a "chave de Campbell-Robinson", e preparar-se para andar com os dois por alguns anos.
Joyce gastou dezessete anos no livro, que equivale a bons dezessete livros de um bom autor mais costumeiro. Tendo desafiado seu público nesse tom tão proibitivo e estimulante (e recomendo vivamente que o leitor ainda em dúvida siga o conselho de Wilson), ele declara que os autores do guia mereciam "uma condecoração da República das Letras".
Ora, quando foi que o leitor encontrou essa expressão pela última vez? Ou encontrou um crítico disposto a tornar sua vida de leitor mais e não menos exigente? Não é fácil imaginar o sr. Wilson (ele quase invariavelmente se referia a outros autores como "sr.", "sra." ou "srta.") dando dicas de "livros para a praia".

Anticelebridade
O famoso cartão impresso, que ele enviava a suplicantes de toda espécie, mostra-o indiferente às seduções mais mesquinhas da celebridade literária: "O sr. Edmund Wilson lamenta não ter como: ler manuscritos, escrever artigos ou livros por encomenda, redigir prefácios ou posfácios, dar declarações de natureza publicitária, fazer qualquer tipo de trabalho editorial, arbitrar concursos literários, dar entrevistas, participar de conferências, responder questionários, contribuir para ou participar de simpósios ou "painéis" de toda espécie, leiloar originais, doar exemplares de seus livros para bibliotecas, dar autógrafos para desconhecidos, permitir que seu nome conste em manchetes, fornecer informações pessoais sobre si mesmo ou dar opiniões, literárias ou não."
Mas se isso sugere alguma espécie de altanaria jamesiana, há, por outro lado, o empenho de Wilson em discutir a ficção popular. Seu desprezo pelo hábito desmazelado e degradante de "ler" histórias policiais é contrabalançado pela admiração por sir Arthur Conan Doyle e por sua prontidão a responder aos muitos leitores que lhe escreviam para discordar. Quem quer que já tenha tentado digerir "O Código Da Vinci" ou a série "Deixados para Trás" [suspenses com ambiente religioso] sabe que um livro mal escrito, dirigido a um público subletrado, é mais difícil de ler do que qualquer coisa de Borges ou Kundera. Mas um certo populismo impede que os críticos o digam.
Faço minha a maravilhosa frase de Jacobo Timerman sobre o diário cubano "Granma" ("uma degradação do ato de ler") e aposto que os "Deixados para Trás" estão repousando na estante, tão pouco lidos quanto a sempre fechada Bíblia familiar. E me inspiro no estilo aguerrido de Wilson em "Who Cares Who Killed Roger Ackroyd?" [Quem Quer Saber Quem Matou Roger Ackroyd?].
Discutindo um dos contos de Margery Allingham [1904-66, autora de histórias de detetive], ele diz sem rodeios: "a história e o estilo são de uma superfície tão ingrata e morta que eu não conseguia pôr atenção na página que lia". Desafiava seus correspondentes a discordar -e muitos admitiam que também achavam o gênero quase insuportável de tão ruim, ao mesmo tempo em que se aferravam a ele como a um vício.
Generoso como (quase) sempre -certa vez, deu uma bela vergastada num crítico quase esquecido hoje, Bernard DeVoto ("Por mais que tivesse notado seu estilo confuso, ainda não tinha percebido a que ponto ele é insensível à literatura")-, Wilson mostrou que sabia separar o ouro da escória quando elogiou Raymond Chandler logo antes de concluir o ensaio nestes termos: "Amigos, somos uma minoria, mas a Literatura está do nosso lado. Com tantos livros bons a serem lidos, tanta coisa a ser aprendida e sabida, não há razão para nos entediarmos com esse lixo."
Como no caso de "República das Letras", Wilson não tinha pejo em grafar com maiúsculas o que lhe parecia digno de apoio e defesa. Os cidadãos dessa república hipotética, aqueles que confiavam nele e lhe escreviam, sabiam que tinham em Wilson um amigo severo, mas firme, bem capaz de repreender e recompensar ao longo de uma mesma conversa. E esse companheiro acreditava na existência de um gosto literário que não era inteiramente relativo.
Uma das marcas do "homme sérieux" é a possibilidade de se aprender com ele mesmo quando se discorda radicalmente. Wilson me parece subestimar a importância de Kafka de modo preocupante (preocupante pela falta de simpatia por aqueles que sabiam da iminência do totalitarismo), mas confesso que jamais pensara na influência profunda de Flaubert sobre Kafka. Quando escreveu sobre Ronald Firbank [1886-1926, romancista britânico], Wilson chegou a proporções elefantinas. Por simpatia pela escola inglesa (e às vezes por razões políticas), Wilson percebeu de modo muito precoce e penetrante o que estava em jogo em Evelyn Waugh [1903-1966]. Foi crítico de "Memórias de Brideshead" [Cia. das Letras], com razão; fico espantado ao ver a minúcia com que leu o livro e a frieza com que isolou frases imperdoáveis, como "Ainda as nuvens se avolumavam e não rompiam em trovões".
Mesmo assim, profetizou o sucesso do livro e, a propósito desse e do romance seguinte, "O Ente Querido" [ed. Globo], conseguiu ser friamente secular e ao mesmo tempo simpático, indicando como o próprio Waugh parecia temer as conseqüências de seu catolicismo. Um crítico americano poderia mostrar-se ressentido com as tiradas fáceis de Waugh sobre Los Angeles e a Whispering Glades [empresa funerária do livro]; Wilson contentou-se em mostrar, com indulgência, que a igreja de Waugh praticava uma negação da morte bem mais fantástica e apartosa que a de qualquer agente funerário californiano.
Como é natural, boa parte dos artigos políticos de Wilson parece datada hoje em dia (ele era um dos que combinavam socialismo e esnobismo, declarando que "a indústria do rádio e do carro" prosperava vendendo seus artigos "a quem não precisa deles"; sabe-se lá em quem estava pensando).
E a polêmica sobre, digamos, "The Promise of American Life" [A Promessa da Vida Americana], de Herbert Croly, esfriou há tempos. Mas quem quiser revisitar as paixões intelectuais e literárias da época fará bem em fazê-lo na companhia de quem tanto sabia ser um Virgílio como recomendar a leitura deste último. Edmund Wilson chegou tão perto quanto possível de converter o trabalho da crítica em forma de arte.


CHRISTOPHER HITCHENS é jornalista e escritor, autor de "Deus Não É Grande" (Ediouro). Este texto foi publicado na "Atlantic Monthly". Tradução de Samuel Titan Jr.


Texto Anterior: + Livros: Psicologia colonial
Próximo Texto: Crítico foi influente na mídia dos EUA
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.