São Paulo, Domingo, 06 de Fevereiro de 2000


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"No palco, as distâncias têm um valor hierárquico; tem gente que eu vejo hoje, que faz teatro, sem o menor sentido da tipografia do palco; é uma barbaridade"


O que você prioriza nas suas encenações?
Tem que ter sempre uma vertigem. Eu, quando coloco uma marca, tem que ter um sentido para mim. Eu aprendi com o (Adolfo) Celi. Ele dividia o palco de tal maneira... Ele colocava uma figura em cena, e era o lugar certo. Era ali, não podia ser em outro lugar. Os diretores hoje não sabem. O ator pode entrar de qualquer lugar, sair por qualquer lugar. Não pode. O meio é o meio, tem uma razão. Aí entram as artes plásticas. O Celi foi o cara que eu conheci que sabia mais da tipografia do palco. Para você colocar uma pessoa à direita ou à esquerda, no proscênio, você tem que ter um sentido. Se eu coloco duas pessoas aqui na frente, tem um sentido. Não é em qualquer lugar. Se eu me aproximo de você, tem um sentido. As distâncias têm um valor hierárquico. Aproximar, afastar. Eu cuido muito disso. Não é que eu cuido. É inerente, é orgânico. E tem gente que eu vejo hoje, que faz teatro, que não tem o menor sentido. Que faz uma diagonal quando não podia fazer. É uma barbaridade. Depois eu chego: "Está errado tudo". E falam: "Ah, ele está com dor de cotovelo". Ficar com dor de cotovelo, na minha idade?
Com quem você aprendeu?
Eu peguei todos os diretores estrangeiros, trabalhei com eles todos. Eu era assistente do TBC e saí para fazer "Weekend", com a Nicette Bruno, Paulo Goulart. A minha peça fez mais sucesso do que a peça do TBC. No dia seguinte à estréia, voltei para o TBC com as minhas coisinhas e ia buscar café para todos os atores, como assistente de direção. Eu queria aprender. Eu quero aprender. Hoje em dia, sabe qual é o erro de vocês? Vocês elogiam as pessoas, e elas não querem mais aprender. Quando eu fiz sucesso com "Plantão 21", eu pedi uma bolsa para a Europa e fiquei lá vendo os ensaios do (Giorgio) Strehler e conhecendo todos os museus. Eu falei: "Não é hora ainda de fazer". Eu sabia que não estava preparado. O que aconteceu com os diretores novos todos? Vocês incensaram demais e tiraram a volúpia de aprender. Você elogia o cara e ele: "Ah, eu sou o tal". Pronto, acabou. Eu nunca vejo um ator crescer, fazer alguma coisa a mais. Ele vai continuar fazendo aquilo lá, um pouco melhor, por causa dos macetes, mas não através do conhecimento.
Você falou de passagem de Adolfo Celi.
Adorava o Celi. Ele era meio comercial, mas sabia. Eu olhava as marcações que ele fazia, a chamada "mise-en-place", e ficava: "Esse cara sabe". Nem o Ziembinski tinha essa capacidade. O Ziembinski era outra coisa, mais musical. Eu adorava o Ziembinski como ator. Ninguém entendia o que ele falava, mas eu entendia. Ele era ótimo. Falava meio enrolado, mas era excelente ator. Mesmo em "Pega Fogo", em que a Cacilda estava muito bem, eu achei ele melhor. Embora ele falasse um brasileiro polaco (ri), era muito musical. Ele era no som. O Celi era nos volumes, na distribuição dos volumes.
E Ruggero Jacobbi?
Ruggero Jacobbi era a cabeça, o intelectual. Ninguém sabia de Brecht na Europa, e ele estava falando de Brecht aqui.
Você chegou a ser assistente de Ruggero?
De todos eles, menos do belga, (Maurice) Vaneau. Do resto eu fui. Fui do Ziembinski, do (Flamínio) Bollini, fui do Celi, do Ruggero.
Em que Ruggero influenciou você?
Na pesquisa, na inteligência, que eu sempre admirei. E foi ele quem deu chance aos diretores brasileiros. Nós conseguíamos dirigir porque ele dava força aos diretores brasileiros. Eu sou da primeira leva.
Flávio Rangel veio depois?
Flávio já é cria minha.
Como foi a sua relação com a crítica, nesse início?
Do Decio (de Almeida Prado) eu não abro mão. Tenho respeito profundo por ele. Pelo Sábato (Magaldi), também.
Você acha que o crítico aponta as suas fraquezas?
O Decio conseguia me dizer... Sabe o que é? Havia humanidade no que ele escrevia. Mesmo metendo o pau, havia humanidade. Havia: "Vai por aqui, garoto. Vai por ali". A função do crítico é da maior importância. A função social, de ter um crítico para a comunidade, é da maior importância.
Recebi uma carta de um homem que participou dos seus primeiros espetáculos nos anos 50, que você já descreveu, brincando, como os seus primeiros "Prêt-à-Porter". Eram espetáculos curtos, despretensiosos.
Aquilo foi uma introdução ao teatro. Eu não poderia chegar aonde cheguei se não tivesse passado por aquilo. Mas não tinha nada do que tem agora, do método.
Sebastião Milaré descreve em "Antunes Filho e a Dimensão Utópica" uma das primeiras encenações, talvez até a sua primeira encenação, como "expressionista".
Ah, porque na época eu era garotão e eu fui muito influenciado pelo expressionismo. Mesmo nas coisas que escrevia na época, numa revista literária do nosso colega.
Eu tenho um exemplar. O segundo número.
Você está brincando! Qual era o nome da revista?
"Ponto II".
Desenho meu na capa?
Exatamente.
(ri) Como é que você conseguiu isso?
O seu colega mandou. Ele ficou emocionado de ter visto você falando sobre o seu passado, no jornal.
Era muito louco aquilo (ri). Você vai perceber lá que o Gerald Thomas é fichinha perto da minha loucura. Essa loucura toda em que ele está eu já passei aos 17, 18 anos. Como você vê, havia mesmo uma forte influência da escola expressionista nos meus primeiros trabalhos.
Qual foi o papel de Reynaldo Jardim, nessa época?
Ah, ele é um poeta magnífico. Ele, o Nelson Coelho, aquele pessoal todo. Ele era ator também!
Ele participou das suas primeiras peças.
Era tão engraçado. Todo mundo era ator. Nós brincávamos. Você vê que era uma turma da pesada. Eu me orgulho dessa turma da pesada. Esse contato foi vital, na cinemateca, no Museu de Arte Moderna. O (Sérgio) Milliet também, da biblioteca. Falta esse contato, hoje, da molecada com essa "intelligentsia" paulista.
Na carta, o homem, um senhor agora, descreve como você era na época, como encenador.
Como é que ele descreve? Quero saber.
Ele fala várias coisas, mas o que ele diz insistentemente é que você era muito jovem, mas a intensidade, o fervor do diretor já estava presente. Já estava evidente. Antunes Filho já era Antunes Filho.
Está me comovendo, isso que você está me dizendo agora. Na vida, né, sempre... (pausa). É uma força muito grande, essa coisa espiritual. Sempre acreditei nisso. É por isso que não há dinheiro que me compre, que me seduza. Não me seduz. Foram outras coisas que sempre me seduziram. Você pode mandar fazer uma proposta de trilhões. Manda fazer uma proposta de uma televisão ou de outra coisa. Eu agradeço, obrigado. Não é isso. O Sesc me paga razoavelmente, dá para viver, dá para comer. Não preciso de mais nada. Não quero mais nada.
Por que teatro? Você teve e tem uma paixão também pelo cinema.
Ah, as duas coisas, teatro e cinema. A expressão dramática sempre me pegou. A aventura humana sempre me tocou fundo.
Você falou da "intelligentsia" paulista, de Sérgio Milliet. Havia uma escola...
É, o Decio é que comandava.
Como é que você via o combate de Decio de Almeida Prado e outros, na época, contra o teatro dos velhos comediantes, como Procópio Ferreira, Jaime Costa?
Não estava legal mesmo essa comédia que os velhos atores faziam. Eu cheguei a desistir de ver teatro, depois que eu assisti "Deus Lhe Pague" com o Procópio. Independente de ele ser um grande ator, era um comércio, uma coisa que não tinha nem pé nem cabeça, com ponto. Eu vi muito teatro de ponto. Eu era um garoto ainda sonhando e de repente via aquelas coisas. Eu via com horror aquilo. Então, desisti de teatro. Desisti mesmo. Não fosse um amigo meu, Moacir Rocha, que me levou para o Centro de Estudos Cinematográficos... Pouco a pouco fui vendo TBC, Osmar Rodrigues Cruz, a quem devo muito, e aí voltei a gostar de teatro. Mas eu achei aquilo uma casa dos horrores.
Decio, em particular, mas também grande parte da escola do TBC, tinha um projeto ligado ao Cartel francês.
A nossa cultura era toda européia, na época. Era a vanguarda, o Alfredo Mesquita trazendo as primeiras coisas, na Escola de Arte Dramática. Nós íamos e nos deliciávamos com aquilo. Mesmo na minha influência expressionista, sartriana, prevalecia a cultura francesa. Isso já vinha do modernismo. Isso foi muito forte em São Paulo.
E quanto aos preceitos específicos do Cartel?
Do Cartel do (Charles) Dullin, aquele pessoal todinho? Nós adorávamos. Quando eles vinham para cá, (Louis) Jouvet, tudo isso. A influência era grande, de ver o Jouvet em cena, o Barrault. Aliás, sabe por que o Decio me convidou para o TBC? Porque ele viu o espetáculo que eu fiz, "Os Outros", e gostou da minha direção, embora muito expressionista. Foi aí que ele fez o convite para ir de assistente. Para aprender. Isso foi legal. Isso também me comove. Eu não era ninguém, e o Decio vai lá no camarim, me convidar. "Claro, claro." Quero realçar isso: eu fiquei um ano no TBC como assistente, depois fiz sucesso com o "Weekend" no teatro da rua Aurora, mas nem por isso deixei de, no dia seguinte, ir ao TBC continuar como assistente de direção, buscando café. E buscar café para a Cacilda (Becker), o Ziembinski é magnífico (ri). Agora, buscar café para certas pessoas era muito chato. Mas eu ia. Eu tinha que aprender. Tinha que pagar o preço pelo aprendizado. Porque eu queria chegar, um dia, a um lugar em que pudesse fazer uma coisa significativa.
Voltando um pouco mais no tempo, que influência os seus pais, que vieram de Portugal, tiveram sobre o artista Antunes Filho?
Meu pai e minha mãe vieram com uma mão atrás e outra na frente. Era terrível aquela realidade, mesmo tendo terras, mesmo fazendo as próprias uvas, tudo isso. Ele veio para o Brasil e aqui comeu o pão que o diabo amassou. Só depois de dez anos é que veio a minha mãe. (ri) Eu sou o fruto do reencontro. Meus dois irmãos eram portugueses, eu sou o único brasileiro. Eu sempre quis saber essas histórias. Minha mãe me contava, meu pai nunca. Sabe essas pessoas fechadas, do campo? Mas aqui o meu pai, para me ensinar a ser adulto, me colocou como entregador de laboratório. "Tem que aprender a vida." Depois eu fui funcionário da prefeitura, office boy (ri). E andava em tudo o que era prostíbulo e casa de jogo. Fiz de tudo. Não era o (Antônio) Abujamra, fanático, mas jogava tudo o que era jogo. Quanto salário eu recebia na prefeitura que depois deixava todo ele no Jóquei Clube e voltava a pé, eu e os meus amigos! E vivia nos lugares mais terríveis. Ao mesmo tempo em que vivia no meio daquela malandragem toda, no meio de prostitutas, de gays, que na época não eram bem-vistos, eu comecei a frequentar o Museu de Arte Moderna, o Centro de Estudos Cinematográficos do Cavalcanti. Não me arrependo. Essa experiência é que me propiciou dirigir teatro. Foi fundamental a malandragem. Fui muito malandro. Era amigo de ladrão. Mas isso me ajudou, hoje em dia, a me aproximar dos atores e falar da aventura humana, falar dos caracteres, falar como é que é a reação humana.

"Não há possibilidade de surgir um novo autor brasileiro, enquanto você não tiver o ator novo; hoje o texto só serve de pretexto para acrobacias"


Depois de "Macunaíma", você ancorou numa dramaturgia mais tradicional. O alvo já estava estudado, era Shakespeare, Nelson Rodrigues. Por que você não continuou na sua reinvenção de uma dramaturgia?
Sabe por quê? Porque todo mundo começou a fazer "Macunaíma" aí fora. Eu saí dessa. Além do mais, uma coisa que eu sempre quis fazer foi Nelson Rodrigues. Sempre quis fazer Nelson Rodrigues no seu valor real, o grande poeta dramático que ele foi. Ninguém reconhecia. Reduziam o Nelson Rodrigues a autor de costumes. E eu vi tudo, no Rio e em São Paulo. Só não vi o "Vestido de Noiva" do Ziembinski, lá nos Comediantes.
Na sua viagem plástica, com a direção, você se manteve preso a uma dramaturgia mais ortodoxa, Shakespeare, Nelson Rodrigues. Isso era para poder começar a plantar o seu método?
Eu não pensava nisso, então. Mas eu fiz muito Shakespeare. Em que momento?
"Romeu e Julieta."
Não, ainda tinha o espírito moleque do "Macunaíma". Era adaptada por mim, era muito livre, muito solta. Tinha asinhas, voava, não era uma coisa rígida, presa. Eu adapto tudo. A única peça que não adaptei muito foi o "Gilgamesh", em que foram as 12 tábuas quase na íntegra. Eu queria fazer um ritual num convento fechado, com cheiro de batina, de vela, de mofo. Não era para palco. Era quase um mistério, dentro de um convento, mas aí tive que fazer no palco.
Para definir sua visão da dramaturgia, gostaria de perguntar sobre "Xica da Silva".
Ah, não deu certo o meu papo com o (Luís Alberto de) Abreu. Eu queria fazer uma comédia rasgada, da boba da Xica da Silva, que pensava que iria tirar proveito. Eu pensava numa comédia, o Abreu pensou numa tragédia, e não deu certo. Saiu uma coisa que não é nada. O híbrido quase sempre é legal, mas não deu liga. A gente brigou feio, na época.
Na época, o seu método estava quase lapidado, ou não?
Eu estava caminhando, numa etapa. Não era o método. Tinha mais uma ideologia, alguns passos. Mas não tinha alcançado as estações. Não, não.
A impressão era que você estava procurando desenvolver uma relação com uma nova dramaturgia.
Eu sempre quis, mas não podia fazer. Depois entendi que não era possível fazer uma nova dramaturgia. Não dava certo. Não vai surgir uma nova dramaturgia enquanto não houver o ator novo. É como em pintura, em poesia também. Você lê um Fernando Pessoa, você vê um Cézanne, um Leonardo da Vinci, eles nunca estão na superfície. Você vai afundando, lá embaixo é que vai ver o artista. Eu sou muito maluco. Quando vejo Leonardo da Vinci, começo a olhar e, através do esfumaçado dele, vou passando por ele e, no fim, vejo a cara dele, sempre. Ele me olhando (ri). Nos grandes artistas, eu consigo ver o olho do artista. Uma obra de arte nunca está na superfície. É aquilo que o Eco diz: uma obra é mais artística quanto mais conotativa ela for. É óbvio.
E a dramaturgia?
Eu acho que, se você escrever um texto para valer, você dá para essa molecada fazer, para esses diretores, e eles vão fazer uma gritaria. Não vai sobrar nada. Eu vou fazer um Shakespeare, posso até entender, mas não consigo falar aquilo de maneira correta, no palco. E o que acontece com o diretor? Você coloca um penico na cabeça do ator e dá uma vassoura. Porque a peça tem que ser levada. Foi aí que o Shakespeare começou a ser "clownerie". Porque não se conseguia resolver dramaticamente o jogo. Faltava a técnica. Não a técnica no sentido que a minha geração tem, "ah, a técnica empobrece, é uma camisa-de-força". Não, eu vi que sem técnica você não consegue desenvolver sua sensibilidade. Sensibilidade é cultura. Todos nós temos sensibilidade, mas para desenvolvê-la precisa de cultura.
O autor novo depende de um ator com técnica?
Não há possibilidade de surgir um novo autor brasileiro, além do Nelson Rodrigues, enquanto você não tiver o ator novo. O ator vai dar segurança ao autor. Ele precisa de ator. Se você pegar um texto e der para a molecada fazer, vão ficar fazendo palhaçada, fazendo bobagem. É chato, e não vai sobrar nada do texto. O texto só serve de pretexto. É um pretexto para que façam lá umas acrobacias, umas formas bonitinhas, teatrais, umas estéticas consumistas.
Desde 90 a sua dramaturgia tem sido heterodoxa. Você até chegou a transformar a língua, criar uma língua nova. A palavra, para você, não fazia mais sentido. Só o som. Por quê? Como você chegou à conclusão de que o foco é o ator, não o texto?
Eu tentei fazer duas tragédias, "Medéia" e "Antígone". As pessoas iam falar, e não dava samba. A não ser que eu colocasse a vassoura na mão e o penico, para ver se a coisa funcionava. Eu sempre achei o português uma língua eufônica. Mas no palco eu acho uma porcaria. Pedras, pedras, pedras. Dói, dói. A projeção da voz é feia. Eu gosto de música, gosto de coisa eufônica. Não aguentava mais. Eu falava: "Tenho que me retirar da língua portuguesa, para voltar depois. Tenho que começar tudo do zero". Daí o fonemol. Além do mais, teve o Muro de Berlim. Eu tinha que recontar a história da humanidade, ação e reação não dava mais certo. Isso só provocava um dominó que deu no que deu este século.
Então, o mito do Chapeuzinho Vermelho era para que as pessoas... Todos nós temos todas as personagens dentro da gente. Temos todos os seres humanos, todos os arquétipos. A gente tem o Hitler, tem o Stálin. O importante é você, pela civilidade, conseguir colocar o mal no lugar. Foi aí que comecei. Eu falava: "Não vamos matar o bandido, vamos colocá-lo no lugar certo". Tudo isso aí vem de lendas, do Oriente, de colocar o bandido no lugar certo, sem matar. E qual era a história mais popular do mundo? "Chapeuzinho Vermelho." Eu ia começar ali a ética: "Esse lobo fez isso, então vamos matar? Não. Vamos colocá-lo de castigo, no fundo do mar". Nas fábulas orientais, o mal você coloca no fundo do mar. Eu falei: "Vamos colocar no céu, em vez de matar. Não adianta fazer ação e reação que vai voltar tudo aos crimes, aos genocídios que aconteceram no século".
E o fonemol?
Eu queria usar uma linguagem pré-mítica, uma pré-linguagem, e dar autoria a cada espectador. Com o fonemol, você pode imaginar o diálogo que quiser. Foi isso que tentei. Ao mesmo tempo, tentei me afastar um pouco da língua portuguesa, para depois me reaproximar de outra maneira.
Não é assustador fazer um espetáculo em uma língua inexistente e as pessoas entenderem? Você conseguiu provar a sua dúvida de que o texto é desnecessário.
Não, mas tinha o texto de cada espectador. Você lia com a sua sintaxe, eu lia com a minha sintaxe. Eu criava a situação, mas o texto quem criava era o espectador. Aí também entra o Bob Wilson. É trabalhar com o subconsciente e o inconsciente de cada um. Isso eu aprendi muito bem foi com o Kazuo Ohno. Cada vez que eu o vejo, a minha alma emigra. Eu saio do lugar e vou não sei para onde. Depois, no fim, eu volto. É meio xamânico o troço dele. Ele me leva para viagens estranhas. É xamanismo puro.
Para onde você está indo, na dramaturgia? Você largou os romances, teve uma época em que você queria fazer "Os Sertões" e também falava muito em Guimarães Rosa.
Eu fiz o Guimarães, que não foi entendido. Fiquei fulo da vida. Até eu fazer o "Augusto Matraga", a crítica não conhecia Guimarães Rosa. Quando se fazia, era um bangue-bangue. E, na verdade, o Guimarães é uma viagem ao fundo da alma. É uma viagem interna. Eu acho que a sintaxe todinha do "Grande Sertão: Veredas" é um monólogo dele com ele mesmo. A sintaxe fica torta, porque ele está perturbado, porque está querendo se saber. É um processo de autoconhecimento. Mas estavam acostumados a ver Guimarães no lado externo. Foi por isso que inventei a expressão "ser tao". Não é sertão, é "ser tao". E você sabe que ele era um homem que tinha uma certa tendência, muito cuidado com essa palavra, esotérica? Todo mundo sabe, menos a nossa crítica, que acha que ele é bangue-bangue.
E Nelson Rodrigues?
Posso falar a verdade? Adeus, Nelson Rodrigues, estou em outra. Agora eu quero do círculo de dramaturgia do CPT (Centro de Pesquisa Teatral) para frente. É a nova dramaturgia. Daqui a pouco eu vou ajudar os textos já escritos lá, de peça de um ato, pequenas ainda. Devagar, com pouca gente, duas, três personagens, depois vai aumentando. É assim que se chega lá. Se eu quiser chegar no fim, já, não vai sair nada. Então, eu estou brigando para o pessoal de dramaturgia ir devagar, lento.


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