São Paulo, Domingo, 06 de Fevereiro de 2000


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Em "Marxismo sem Utopia", Jacob Gorender revisa as teses do pensador alemão à luz de questões atuais
O reformismo ontológico do proletariado

Ricardo Musse
especial para a Folha

Sob muitos aspectos, "Marxismo sem Utopia" é um livro notável. Diferentemente da tradição do marxismo local, não busca adaptar as teorias de Marx e de seus seguidores à especificidade brasileira nem destacar as singularidades de nossa formação social (assunto abordado por Gorender em "O Escravismo Colonial"). Propõe-se a atualizar nada mais nada menos que o próprio marxismo. Sintoma de maturidade intelectual (do autor e do marxismo brasileiro), mas também de lucidez diante dos impasses da prática e da teoria neste fim de século. A flexibilidade, implícita no projeto de revisar as teses marxistas levando em conta a atual situação do mundo, destoa do disseminado dogmatismo de teóricos e militantes de esquerda e não deixa de ser inesperada (apesar de sua trajetória heterodoxa) em um antigo membro do Comitê Central do PCB. Tampouco é comum -numa época de renegações feitas em função de expectativas de curto prazo- a atitude de elaborar propostas que assumidamente só poderão ser vingadas pelas gerações futuras. Por fim, o leitor haverá de se surpreender com a riqueza enciclopédica do livro. Encontram-se lá sumariados, com clareza, didatismo e uma espantosa capacidade de destacar o essencial, as discussões contemporâneas sobre temas como a história do capitalismo no século 20, da tradição marxista e do "socialismo real"; a dita globalização e tudo o que afeta a atualidade e o futuro do mundo do trabalho; a situação presente das classes, dos partidos e do Estado, bem como suas mútuas relações; as pertinências das teorias de Marx sobre a extração da mais-valia, da queda tendencial da taxa média de lucro e das crises de superprodução; a questão da transição e das características da sociedade socialista etc.

Ciência e utopia
A construção enciclopédica do livro nos esclarece sobre a variante do marxismo retomada por Gorender. A organização do legado de Marx como um sistema aberto, atento às discussões internas nos diversos campos do saber, foi a estratégia utilizada por Friedrich Engels para atualizar o materialismo histórico após a morte de Marx. Nessa versão, denominada "socialismo científico", ascendeu ao primeiro plano a dicotomia ciência/utopia presente já no título e retomada ao longo do livro. No que tange ao método, Gorender está mais próximo de Eduard Bernstein, um discípulo de Engels que, levando ao pé da letra a associação entre marxismo e ciência, não hesitou em adotar como fio a tese de que "Marx desviou-se da disciplina científica e cedeu a propensões utópicas". A proximidade entre Bernstein e Gorender, no entanto, é puramente formal. Uma vez que a convergência entre teoria e prática, método e política é ainda apenas um ideal, Gorender pôde retomar o mote a partir do qual Bernstein procedeu à revisão do marxismo e, ao mesmo tempo, rejeitar peremptoriamente o reformismo social-democrata preconizado por ele. Mas nem por isso está imune, por exemplo, às críticas metodológicas que Lukács endereçou a Eduard Bernstein no livro "História e Consciência de Classe", particularmente à ilusão de que a simples seleção dos fatos relevantes já não contenha uma interpretação. Para Jacob Gorender, a fonte dos equívocos de Marx e do marxismo, dado fundamental que o impele a revisar essa tradição, seria a constatação de que, ao contrário do que sempre se supôs, "o proletariado é ontologicamente reformista". Para corroborar o que considera uma evidência, recorre ao artigo "Século Marxista, Século Americano", do italiano Giovanni Arrighi (em "A Ilusão do Desenvolvimento", ed. Vozes), que destaca a cisão do marxismo em movimentos reformistas no centro e revolucionários na periferia do capitalismo.

Imitação do privilégio
Entretanto o que preocupa Arrighi não é uma definição sobre o caráter ontológico da classe operária, mas sobretudo o fato de que a desigualdade do sistema interestatal (entre os países do núcleo orgânico e os demais) parece ter determinado a ação do proletariado mais fortemente que o objetivo socialista. Isto é, a classe operária das nações do centro esforça-se por manter a posição privilegiada de seu país, enquanto os trabalhadores da periferia anteviram (equivocadamente) na revolução um meio de alcançar o padrão dos países centrais.
Diante desse dilema não basta propor a substituição da força social preponderante no processo revolucionário, como fez Gorender ao apostar suas fichas nos assalariados intelectuais. A existência de um sistema interestatal hierarquicamente estruturado e imune a alterações tornou-se uma questão incontornável para quem quiser propor modificações no modo de organizar o mundo, sejam marxistas ou não.



Marxismo sem Utopia
288 págs., R$ 29,90 de Jacob Gorender. Ed. Ática (r. Barão de Iguape, 110, CEP 01507-900, SP, tel. 0/xx/11/ 3346-3318).



Ricardo Musse é doutor em filosofia pela USP e membro da comissão executiva da revista "praga" (Hucitec).


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