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Em "Marxismo sem Utopia", Jacob Gorender revisa as teses do pensador alemão à luz de questões atuais
O reformismo ontológico do proletariado
Ricardo Musse
especial para a Folha
Sob muitos aspectos, "Marxismo sem
Utopia" é um livro notável. Diferentemente da tradição do marxismo local,
não busca adaptar as teorias de Marx e
de seus seguidores à especificidade brasileira nem destacar as singularidades de
nossa formação social (assunto abordado por Gorender em "O Escravismo Colonial"). Propõe-se a atualizar nada mais
nada menos que o próprio marxismo.
Sintoma de maturidade intelectual (do
autor e do marxismo brasileiro), mas
também de lucidez diante dos impasses
da prática e da teoria neste fim de século.
A flexibilidade, implícita no projeto de
revisar as teses marxistas levando em
conta a atual situação do mundo, destoa
do disseminado dogmatismo de teóricos
e militantes de esquerda e não deixa de
ser inesperada (apesar de sua trajetória
heterodoxa) em um antigo membro do
Comitê Central do PCB. Tampouco é comum -numa época de renegações feitas em função de expectativas de curto
prazo- a atitude de elaborar propostas
que assumidamente só poderão ser vingadas pelas gerações futuras.
Por fim, o leitor haverá de se surpreender com a riqueza enciclopédica do livro.
Encontram-se lá sumariados, com clareza, didatismo e uma espantosa capacidade de destacar o essencial, as discussões
contemporâneas sobre temas como a
história do capitalismo no século 20, da
tradição marxista e do "socialismo real";
a dita globalização e tudo o que afeta a
atualidade e o futuro do mundo do trabalho; a situação presente das classes,
dos partidos e do Estado, bem como suas
mútuas relações; as pertinências das teorias de Marx sobre a extração da mais-valia, da queda tendencial da taxa média
de lucro e das crises de superprodução; a
questão da transição e das características
da sociedade socialista etc.
Ciência e utopia
A construção enciclopédica do livro nos esclarece sobre a
variante do marxismo retomada por Gorender. A organização do legado de
Marx como um sistema aberto, atento às
discussões internas nos diversos campos
do saber, foi a estratégia utilizada por
Friedrich Engels para atualizar o materialismo histórico após a morte de Marx.
Nessa versão, denominada "socialismo
científico", ascendeu ao primeiro plano a
dicotomia ciência/utopia presente já no
título e retomada ao longo do livro.
No que tange ao método, Gorender está mais
próximo de Eduard
Bernstein, um discípulo
de Engels que, levando ao
pé da letra a associação
entre marxismo e ciência,
não hesitou em adotar como fio a tese de que "Marx desviou-se da
disciplina científica e cedeu a propensões
utópicas". A proximidade entre Bernstein e Gorender, no entanto, é puramente formal. Uma vez que a
convergência entre teoria
e prática, método e política é ainda apenas um
ideal, Gorender pôde retomar o mote a partir do
qual Bernstein procedeu à
revisão do marxismo e, ao
mesmo tempo, rejeitar peremptoriamente o reformismo social-democrata
preconizado por ele.
Mas nem por isso está imune, por
exemplo, às críticas metodológicas que
Lukács endereçou a Eduard Bernstein no
livro "História e Consciência de Classe",
particularmente à ilusão de que a simples seleção dos fatos relevantes já não
contenha uma interpretação.
Para Jacob Gorender, a fonte dos equívocos de Marx e do marxismo, dado fundamental que o impele a revisar essa tradição, seria a constatação de que, ao contrário do que sempre se supôs, "o proletariado é ontologicamente reformista".
Para corroborar o que considera uma
evidência, recorre ao artigo "Século Marxista, Século Americano", do italiano
Giovanni Arrighi (em "A Ilusão do Desenvolvimento", ed. Vozes), que destaca
a cisão do marxismo em movimentos reformistas no centro e revolucionários na
periferia do capitalismo.
Imitação do privilégio
Entretanto
o que preocupa Arrighi não é uma definição sobre o caráter ontológico da classe operária, mas sobretudo o fato de que
a desigualdade do sistema interestatal
(entre os países do núcleo orgânico e os
demais) parece ter determinado a ação
do proletariado mais fortemente que o
objetivo socialista. Isto é, a classe operária das nações do centro esforça-se por
manter a posição privilegiada de seu
país, enquanto os trabalhadores da periferia anteviram (equivocadamente) na
revolução um meio de alcançar o padrão
dos países centrais.
Diante desse dilema não basta propor a
substituição da força social preponderante no processo revolucionário, como
fez Gorender ao apostar suas fichas nos
assalariados intelectuais. A existência de
um sistema interestatal hierarquicamente estruturado e imune a alterações tornou-se uma questão incontornável para
quem quiser propor modificações no
modo de organizar o mundo, sejam
marxistas ou não.
Marxismo sem Utopia
288 págs., R$ 29,90
de Jacob Gorender. Ed. Ática (r.
Barão de Iguape, 110, CEP
01507-900, SP, tel. 0/xx/11/
3346-3318).
Ricardo Musse é doutor em filosofia pela USP e membro da comissão executiva da revista "praga" (Hucitec).
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