São Paulo, domingo, 06 de março de 2005

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O santo laico dos quadrinhos

A partir de artigos e entrevistas, italiano recria em história em quadrinhos a vida do cineasta

MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

Pier Paolo Pasolini "assombra" a cultura italiana desde a sua morte, em 1975. As gerações que lhe sucederam não se esquecem de sua figura rebelde de cineasta, político, escritor e poeta.
Nada mais natural, portanto, que um jovem quadrinista e roqueiro, Davide Toffolo -um dos principais da Itália-, interpretasse literalmente a idéia da assombração e revivesse o espectro de Pasolini em histórias em quadrinhos.
Curiosamente sério e reflexivo, "Pasolini - Une Rencontre" (Pasolini - Um Encontro, lançado na França pela Ed. Casterman, 160 págs., 12,75 euros -R$ 44) revive o cineasta e prova que sua visão provocativa da sociedade e da arte continua dialogando com seu país, com o cinema e a literatura. Em entrevista à Folha, o quadrinista fala sobre o "santo leigo" e diz o que "PPP" significa hoje para os italianos.

 

Folha - Em sua HQ, você cita o interesse por futebol em Pasolini. Qual era o interesse dele pelo esporte?
Davide Toffolo -
O estádio de futebol é um imenso teatro, os jogadores são atores e o público, o coro. Como na representação do teatro grego. Para falar a verdade, acho que Pasolini gostava de falar de sua grande paixão, o futebol, com as palavras que usava no seu cotidiano: as da crítica literária. Ele era torcedor do Bolonha. Seu quarto de infância na casa da mãe, em Casarsa, era decorado com as listras azuis e vermelhas, as cores do time.

Folha - Qual é a diferença entre a Itália dos anos 70, em que Pasolini viveu, e a Itália atual, do premiê Silvio Berlusconi?
Toffolo -
A Itália de hoje está mais à deriva do que Pasolini previa. É um país que perde sua identidade cultural, devorado por uma assimilação crescente. Creio que a Itália atual é uma anomalia. A ditadura do consumo que Pasolini previa para o futuro próximo foi encarnada por uma figura anômala, Berlusconi, um homem que concentra em torno de si todo o poder possível. Talvez seja o primeiro ditador midiático. Mas os italianos parecem não se dar conta disso. Talvez seja mais fácil compreender isso dentro de alguns anos.

Folha - Como foi a pesquisa para seu livro? Todo o material foi baseado em entrevistas, livros e artigos de Pasolini? Até que ponto você tomou a liberdade de "personificar" as idéias dele?
Toffolo -
Este livro é baseado na palavra de Pasolini. Tem os pontos principais de uma hagiografia (é praticamente a biografia de um santo laico), mas o principal é a reconstrução da palavra. Inclusive do som da palavra. Se meu livro recriar por apenas um momento a voz angelical do poeta, já basta. E faz isso por meio do encontro com um "mitômano" ou "artista" -você escolhe. O "meu" Pasolini fala diretamente com as palavras do poeta. Tiradas de seus textos e, sobretudo, de entrevistas que deu para a TV.

Folha - Por que você utiliza câmera digital quando o "entrevista" no livro. Por que "ele insiste" em que você registre os encontros?
Toffolo -
O "meu" Pasolini é exibicionista, um artista que reproduz a vida e as atitudes do cineasta. É a "sua" obra de arte. Essa é a razão de desejar ser filmado.

Folha - Como seu livro foi recebido na Itália? Sofreu crítica ou resistência por parte daqueles que criticavam Pasolini?
Toffolo -
O livro teve dois tipos de recepção. Os novos estudiosos de Pasolini o receberam muito bem. E os jovens o acharam formidável como ponto de partida para a leitura direta de Pasolini, que continua um poeta de leitura complexa, com uma estética absoluta. Os estudiosos mais antigos acharam difícil imaginar um Pasolini por meio da HQ, considerada na Itália como uma linguagem indigna de figurar ao lado da literatura e do cinema. Essa é uma briga que me atrai.

Folha - Você viajou para Bolonha, Casarsa, Roma, Ostia e para o vulcão Etna para realizar suas pesquisas. Qual foi sua sensação?
Toffolo -
Foram emoções fortes. A projeção do pensamento do poeta nos lugares em que viveu, ainda preservados, foi uma emoção contínua. Viajei sozinho pela Itália durante dois meses encontrando pessoas, filmando com uma câmera, lendo e desenhando. Foi minha maneira de criar.
Casarsa ainda é pequena e familiar. Ostia é "o fim". Perto da imensidão de Roma, aquele pequeno vilarejo é o local em que o poeta foi assassinado. O vulcão siciliano Etna não permite nenhuma história nos seus aclives. As erupções contínuas anulam a obra do homem. É uma paisagem absoluta. Poética. É o fim da civilização.

Folha - A morte de Pasolini ainda não foi assimilada pela sociedade italiana? Você considera que a imagem dele ainda é aquela de uma pessoa provocadora e polemista?
Toffolo -
Na França, onde meu livro foi publicado, acho que há uma curiosidade maior sobre ele. Pasolini permanece um elemento incômodo da cultura italiana. Já se discutiu muito sobre as motivações políticas da sua morte, mas o que realmente causa medo às pessoas é sua absoluta liberdade e sua intolerância com os poderosos. Essa é uma lição que não se pode ensinar nas escolas. A sua recusa em aceitar o estado das coisas, sua religiosidade laica, seu desprezo pelo poder estão além do que se pode discutir. Mesmo 30 anos após sua morte, ele continua a representar uma lição de grande liberdade e moralidade.

Folha - Você tem uma banda de rock, "Tre Allegri Ragazzi Morti" (Três Alegres Jovens Mortos) e dirigiu as revistas "Dynamite", "Mondo Naif" e "Fandango". Qual foi a inspiração para fazer uma HQ sobre Pasolini?
Toffolo -
Pasolini e eu somos da mesma região, o Friuli (nordeste da Itália). Um ano antes eu tinha me dedicado à biografia de um pugilista dos anos 30, Primo Carnera, um imigrante como tantos da minha região. Era um gigante do esporte. Mas o desejo de escrever sobre Pasolini veio da afinidade com algumas sensações. Sempre tentei expressar com a música e com as HQs valores como diversidade, rejeição ao poder... Tomo Pasolini como exemplo.


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