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O santo laico dos quadrinhos
A partir de artigos e entrevistas, italiano recria em história em quadrinhos a vida do cineasta
MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO
Pier Paolo Pasolini "assombra" a cultura italiana desde a
sua morte, em 1975. As gerações que lhe sucederam não
se esquecem de sua figura rebelde de
cineasta, político, escritor e poeta.
Nada mais natural, portanto, que
um jovem quadrinista e roqueiro,
Davide Toffolo -um dos principais
da Itália-, interpretasse literalmente a idéia da assombração e revivesse
o espectro de Pasolini em histórias
em quadrinhos.
Curiosamente sério e reflexivo,
"Pasolini - Une Rencontre" (Pasolini - Um Encontro, lançado na França pela Ed. Casterman, 160 págs.,
12,75 euros -R$ 44) revive o cineasta e prova que sua visão provocativa
da sociedade e da arte continua dialogando com seu país, com o cinema
e a literatura. Em entrevista à Folha,
o quadrinista fala sobre o "santo leigo" e diz o que "PPP" significa hoje
para os italianos.
Folha - Em sua HQ, você cita o interesse por futebol em Pasolini. Qual
era o interesse dele pelo esporte?
Davide Toffolo - O estádio de futebol é um imenso teatro, os jogadores
são atores e o público, o coro. Como
na representação do teatro grego.
Para falar a verdade, acho que Pasolini gostava de falar de sua grande
paixão, o futebol, com as palavras
que usava no seu cotidiano: as da
crítica literária. Ele era torcedor do
Bolonha. Seu quarto de infância na
casa da mãe, em Casarsa, era decorado com as listras azuis e vermelhas,
as cores do time.
Folha - Qual é a diferença entre a
Itália dos anos 70, em que Pasolini viveu, e a Itália atual, do premiê Silvio
Berlusconi?
Toffolo - A Itália de hoje está mais à
deriva do que Pasolini previa. É um
país que perde sua identidade cultural, devorado por uma assimilação
crescente. Creio que a Itália atual é
uma anomalia. A ditadura do consumo que Pasolini previa para o futuro próximo foi encarnada por
uma figura anômala, Berlusconi, um
homem que concentra em torno de
si todo o poder possível. Talvez seja
o primeiro ditador midiático. Mas
os italianos parecem não se dar conta disso. Talvez seja mais fácil compreender isso dentro de alguns anos.
Folha - Como foi a pesquisa para seu
livro? Todo o material foi baseado em
entrevistas, livros e artigos de Pasolini? Até que ponto você tomou a liberdade de "personificar" as idéias dele?
Toffolo - Este livro é baseado na palavra de Pasolini. Tem os pontos
principais de uma hagiografia (é
praticamente a biografia de um santo laico), mas o principal é a reconstrução da palavra. Inclusive do som
da palavra. Se meu livro recriar por
apenas um momento a voz angelical
do poeta, já basta. E faz isso por meio
do encontro com um "mitômano"
ou "artista" -você escolhe. O
"meu" Pasolini fala diretamente
com as palavras do poeta. Tiradas de
seus textos e, sobretudo, de entrevistas que deu para a TV.
Folha - Por que você utiliza câmera
digital quando o "entrevista" no livro. Por que "ele insiste" em que você
registre os encontros?
Toffolo - O "meu" Pasolini é exibicionista, um artista que reproduz a
vida e as atitudes do cineasta. É a
"sua" obra de arte. Essa é a razão de
desejar ser filmado.
Folha - Como seu livro foi recebido
na Itália? Sofreu crítica ou resistência
por parte daqueles que criticavam Pasolini?
Toffolo - O livro teve dois tipos de
recepção. Os novos estudiosos de
Pasolini o receberam muito bem. E
os jovens o acharam formidável como ponto de partida para a leitura
direta de Pasolini, que continua um
poeta de leitura complexa, com uma
estética absoluta. Os estudiosos mais
antigos acharam difícil imaginar um
Pasolini por meio da HQ, considerada na Itália como uma linguagem indigna de figurar ao lado da literatura
e do cinema. Essa é uma briga que
me atrai.
Folha - Você viajou para Bolonha,
Casarsa, Roma, Ostia e para o vulcão
Etna para realizar suas pesquisas.
Qual foi sua sensação?
Toffolo - Foram emoções fortes. A
projeção do pensamento do poeta
nos lugares em que viveu, ainda preservados, foi uma emoção contínua.
Viajei sozinho pela Itália durante
dois meses encontrando pessoas, filmando com uma câmera, lendo e
desenhando. Foi minha maneira de
criar.
Casarsa ainda é pequena e familiar. Ostia é "o fim". Perto da imensidão de Roma, aquele pequeno vilarejo é o local em que o poeta foi assassinado. O vulcão siciliano Etna
não permite nenhuma história nos
seus aclives. As erupções contínuas
anulam a obra do homem. É uma
paisagem absoluta. Poética. É o fim
da civilização.
Folha - A morte de Pasolini ainda
não foi assimilada pela sociedade italiana? Você considera que a imagem
dele ainda é aquela de uma pessoa
provocadora e polemista?
Toffolo - Na França, onde meu livro foi publicado, acho que há uma
curiosidade maior sobre ele. Pasolini permanece um elemento incômodo da cultura italiana. Já se discutiu
muito sobre as motivações políticas
da sua morte, mas o que realmente
causa medo às pessoas é sua absoluta liberdade e sua intolerância com
os poderosos. Essa é uma lição que
não se pode ensinar nas escolas. A
sua recusa em aceitar o estado das
coisas, sua religiosidade laica, seu
desprezo pelo poder estão além do
que se pode discutir. Mesmo 30 anos
após sua morte, ele continua a representar uma lição de grande liberdade e moralidade.
Folha - Você tem uma banda de
rock, "Tre Allegri Ragazzi Morti" (Três
Alegres Jovens Mortos) e dirigiu as revistas "Dynamite", "Mondo Naif" e
"Fandango". Qual foi a inspiração para fazer uma HQ sobre Pasolini?
Toffolo - Pasolini e eu somos da
mesma região, o Friuli (nordeste da
Itália). Um ano antes eu tinha me
dedicado à biografia de um pugilista
dos anos 30, Primo Carnera, um
imigrante como tantos da minha região. Era um gigante do esporte. Mas
o desejo de escrever sobre Pasolini
veio da afinidade com algumas sensações. Sempre tentei expressar com
a música e com as HQs valores como
diversidade, rejeição ao poder... Tomo Pasolini como exemplo.
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