São Paulo, domingo, 06 de março de 2005

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Diante da jihad global

Trechos de obra escrita por Al Zawahiri, braço-direito de Bin Laden, publicados por um jornal árabe de Londres sugerem a incapacidade do Ocidente em entender o fundamentalismo islâmico

DEMÉTRIO MAGNOLI
COLUNISTA DA FOLHA

Uma cópia de "Cavaleiros Sob a Bandeira do Profeta", o novo livro de Ayman al Zawahiri, escrito nas cavernas da região de Kandahar, no Afeganistão, e provavelmente contrabandeado por um militante jihadista para a cidade paquistanesa de Peshawar, chegou ao diário árabe "Al Sharq al Awsat", publicado em Londres. Al Zawahiri é considerado o lugar-tenente de Osama bin Laden. Os trechos já traduzidos para o inglês evidenciam que se trata da mais completa exposição política do movimento jihadista.
Eles também revelam o fracasso da perspectiva teórica dominante no Ocidente em compreender a natureza do desafio posto pelo que se convencionou denominar "fundamentalismo islâmico".
Nascido no Cairo, em 1951, Al Zawahiri aderiu à Irmandade Muçulmana [grupo islâmico de oposição ao governo do Egito] com 14 anos.
Em 1979, quando o Egito firmava com Israel os acordos de Camp David [nos EUA, no qual os egípcios reconheceram o Estado de Israel em troca da retirada israelense do Sinai], integrou-se à Jihad Islâmica egípcia, uma corrente ainda mais radical que, sob a sua liderança, viria a se unificar com o grupo de Osama bin Laden na Frente Islâmica Mundial pela Jihad contra os Judeus e Cruzados.
Seu livro sustenta a tese de que o alvo da jihad deve se transferir do "inimigo próximo" para o "inimigo distante", pois a conflagração adquiriu caráter global. Nessa etapa, a jihad necessitaria de uma liderança "científica, confrontacional e racional", capaz de aproximar-se das massas, extirpar a religião "das complexidades da terminologia", elaborar slogans populares e "romper o cerco da mídia imposto ao movimento da jihad". As ferramentas conceituais do culturalismo, que controlam a percepção ocidental do movimento jihadista, são incapazes de apreender essa linguagem.

Dogmas dos orientalistas
A visão predominante no Ocidente continua presa aos dogmas dos orientalistas, que interpretam o islã como uma síntese cultural e o abordam como um universo à parte da economia, da sociologia e da política dos povos muçulmanos. Essa imagem de um "islã essencial" sustenta uma narrativa que, mesmo recheada de "fatos históricos", descreve o desenvolvimento das sociedades muçulmanas como um desdobramento infinito de suas origens religiosas. O impacto da era industrial, da expansão imperial das potências européias, das circunstâncias da Guerra Fria: nada disso interessa efetivamente aos orientalistas.
[O inglês] Bernard Lewis, o príncipe dos orientalistas contemporâneos, escreveu que os povos árabes "podem tentar voltar as costas ao Ocidente e às suas realizações, perseguindo a miragem de um regresso ao ideal teocrático perdido". A passagem, velha de mais de duas décadas, sintetiza o diagnóstico culturalista. Tudo se passa como se o jihadismo contemporâneo estivesse contido na essência do islã e seus líderes figurassem numa linha de descendência direta do puritanismo Wahabi [seita do islamismo puritano saudita fundada por Muhammad ibn Abd al Wahab (1703-92), que vê todas as outras seitas como hereges].
A abordagem não é apenas preconceituosa mas está contaminada de interesse político: se o fanatismo do inimigo é imanente à sua cultura, como atribuir qualquer responsabilidade à violência política do Ocidente?
Muhammad ibn Abd al Wahab, um jurista de Najd [região central da Arábia Saudita], fundou a seita puritana Wahabi que, em nome do retorno a um "primitivo islã", denunciou o islã histórico praticado pelos povos muçulmanos e embebido de variadas influências étnicas e culturais. A aliança entre a seita Wahabi e o clã guerreiro dos Saud gerou uma prolongada jihad, cujo resultado foi a criação do reino da Arábia Saudita, no início do século 20. Essa é a origem do primeiro Estado islâmico contemporâneo, que, subordinando a política ao Livro, encarnou o ideal fundamentalista.
O movimento jihadista de Bin Laden e Al Zawahiri está conectado a essa tradição, mas não do modo linear como sugere a leitura culturalista. O fundamentalismo Wahabi, depois de chegar ao poder, acomodou-se como doutrina quietista e adaptou-se à cooperação estratégica entre a casa de Saud e Washington.
O jihadismo global é um herdeiro legítimo da ruptura Wahabi com o islã histórico mas é também uma ruptura com o próprio fundamentalismo, em vários níveis. Os neofundamentalistas islâmicos rejeitam o monopólio dos ulemás (sábios corânicos) sobre o debate religioso e incorporam a linguagem antiimperialista à sua jihad. Eles não são pré-modernos, mas pós-modernos.

Projeto ético
"Cavaleiros sob a Bandeira do Profeta" pode ser lido como clássica arenga anti-semita, inspirada no mito da conspiração mundial que enxerga a mão do Judeu atrás da campanha de Napoleão no Egito [1798-99], da Declaração Balfour [1917, em que os ingleses apoiavam o assentamento de judeus na Palestina] e da Guerra do Golfo [1990-91].
Mas isso é não querer encarar o principal. As passagens relevantes do livro evidenciam realismo político e consciência estratégica: "O fato que deve ser reconhecido é que o tema da Palestina é a causa que inflama os sentimentos da nação muçulmana, do Marrocos à Indonésia, nos últimos 50 anos. Além disso, é um foco de unidade para todos os árabes, sejam eles crentes ou não-crentes, bons ou maus". Al Zawahiri lamenta que os jihadistas cedam o palco do discurso sobre a Palestina aos secularistas e conclama seus seguidores a assumirem a liderança na luta por Jerusalém.
No plano estrito da história das idéias, o movimento jihadista nasceu como fruto da fusão do fundamentalismo religioso Wahabi com a doutrina política da Irmandade Muçulmana. A repressão de Gamal Abdel Nasser [1918-70, coronel egípcio que foi primeiro-ministro e presidente do país entre 1954 e 70] contra a irmandade atingiu o ápice com a execução de Sayd Qutub, autor de "Sinalizações na Estrada", o manifesto da nova jihad, em 1966.
Os líderes egípcios remanescentes seguiram para o exílio saudita, criando o caldo de idéias e organizações do qual emanou o neofundamentalismo. Em novembro de 1979, o ataque à Grande Mesquita de Meca por rebeldes jihadistas evidenciava o aprofundamento das fissuras na velha aliança entre a seita Wahabi e a casa de Saud.
No Afeganistão ocupado pela União Soviética, a nova jihad tornou-se global. Al Zawahiri, mais que Bin Laden, esculpiu o "exército dos fiéis", articulando as forças dos guerrilheiros mujahidins afegãos às milícias de combatentes jihadistas transferidos de diversos outros países muçulmanos.
Os campos de batalha do Afeganistão, onde a segunda potência militar do mundo conheceu o seu Vietnã, ramificavam-se por todo o Grande Oriente Médio. Depois da retirada soviética, em 1989, os "árabes mujahidin", ou seja, os combatentes jihadistas curtidos nas montanhas afegãs, voltariam a guerrear contra os infiéis nos teatros da Tchetchênia, da Bósnia e de Kosovo. Hoje, eles desempenham um papel secundário, mas não negligenciável, no teatro do Iraque ocupado.
O islã histórico é uma vivência coletiva, inseparável das experiências singulares das sociedades muçulmanas. O neofundamentalismo jihadista, em contraste, apresenta-se a seus militantes como projeto ético e escatológico individual. O terror de Bin Laden e Al Zawahiri, um fenômeno pós-moderno associado à globalização e à diáspora muçulmana, deve ser interpretado como ruptura radical com o islã histórico.
Os terroristas do 11 de Março, em Madri [que atacaram um trem, deixando pelo menos 191 mortos], viveram na Europa, em meio a comunidades muçulmanas estigmatizadas social e culturalmente. Depois da etapa afegã, o "exército dos fiéis" dispersou-se pelo mundo e passou a se articular exclusivamente em torno da mensagem ideológica da jihad. As atuais organizações jihadistas configuram redes horizontais amorfas, recrutam militantes por meio da internet, utilizam as tecnologias da informação e participam, clandestinamente, da ciranda financeira globalizada.

Salvar as mentes
"A doutrina ocidental do direito de resistir a um mau governo é estranha ao pensamento islâmico." A fórmula de Bernard Lewis, cuja carga de estupidez expressa-se no mito de que há um "pensamento islâmico", parece de pouca utilidade para entender a revolta palestina contra a ocupação israelense. Mas ela orienta os discursos dos neoconservadores norte-americanos e a estratégia da "guerra ao terror" de George W. Bush. O corolário é que cabe ao Ocidente introduzir a doutrina da liberdade entre os primitivos muçulmanos, bombardeando suas cidades para salvar suas mentes.
Eis o terreno ideal para a difusão da mensagem da jihad. Al Zawahiri dedica parte de sua exposição a criticar a decisão da Irmandade Muçulmana de renunciar à luta armada, em 1987, e à estratégia eleitoral da FIS (Frente Islâmica de Salvação), da Argélia, em 1991.
O argumento é que "o Ocidente não é apenas infiel mas também hipócrita e mentiroso". E, de fato, o regime egípcio de Hosni Mubarak, aliado de Washington, continuou a prender e torturar os militantes islâmicos enquanto, na Argélia, a vitória eleitoral da FIS deflagrou um golpe militar e a instalação de uma ditadura apoiada pela França.
A meta última do movimento jihadista é a restauração do califado mundial. Mas o livro de Al Zawahiri está consagrado à estratégia definida pelo "objetivo de estabelecer o Estado muçulmano no coração do mundo islâmico", ou seja, na Arábia Saudita, no Iraque, na Palestina, na Síria ou no Egito. A violência da "guerra ao terror", amparada nas concepções históricas orientalistas, serve apenas para abortar o debate político nas sociedades e comunidades muçulmanas.
No fundo, o rufar dos tambores do Ocidente equivale a um convite para que os muçulmanos se perfilem "sob a bandeira do Profeta".


Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana pela USP, editor do boletim "Mundo - Geografia e Política Internacional". É autor de "Relações Internacionais" (Saraiva).


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