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Diante da jihad global
Trechos de obra escrita por Al Zawahiri, braço-direito de Bin Laden, publicados por um jornal
árabe de Londres sugerem a incapacidade do Ocidente em entender o fundamentalismo islâmico
DEMÉTRIO MAGNOLI
COLUNISTA DA FOLHA
Uma cópia de "Cavaleiros
Sob a Bandeira do Profeta", o novo livro de Ayman
al Zawahiri, escrito nas cavernas da região de Kandahar, no
Afeganistão, e provavelmente contrabandeado por um militante jihadista para a cidade paquistanesa de
Peshawar, chegou ao diário árabe
"Al Sharq al Awsat", publicado em
Londres. Al Zawahiri é considerado
o lugar-tenente de Osama bin Laden. Os trechos já traduzidos para o
inglês evidenciam que se trata da
mais completa exposição política do
movimento jihadista.
Eles também revelam o fracasso da
perspectiva teórica dominante no
Ocidente em compreender a natureza do desafio posto pelo que se convencionou denominar "fundamentalismo islâmico".
Nascido no Cairo, em 1951, Al Zawahiri aderiu à Irmandade Muçulmana [grupo islâmico de oposição
ao governo do Egito] com 14 anos.
Em 1979, quando o Egito firmava
com Israel os acordos de Camp David [nos EUA, no qual os egípcios reconheceram o Estado de Israel em
troca da retirada israelense do Sinai], integrou-se à Jihad Islâmica
egípcia, uma corrente ainda mais radical que, sob a sua liderança, viria a
se unificar com o grupo de Osama
bin Laden na Frente Islâmica Mundial pela Jihad contra os Judeus e
Cruzados.
Seu livro sustenta a tese de que o
alvo da jihad deve se transferir do
"inimigo próximo" para o "inimigo
distante", pois a conflagração adquiriu caráter global. Nessa etapa, a jihad necessitaria de uma liderança
"científica, confrontacional e racional", capaz de aproximar-se das
massas, extirpar a religião "das complexidades da terminologia", elaborar slogans populares e "romper o
cerco da mídia imposto ao movimento da jihad". As ferramentas
conceituais do culturalismo, que
controlam a percepção ocidental do
movimento jihadista, são incapazes
de apreender essa linguagem.
Dogmas dos orientalistas
A visão predominante no Ocidente continua presa aos dogmas dos
orientalistas, que interpretam o islã
como uma síntese cultural e o abordam como um universo à parte da
economia, da sociologia e da política
dos povos muçulmanos. Essa imagem de um "islã essencial" sustenta
uma narrativa que, mesmo recheada
de "fatos históricos", descreve o desenvolvimento das sociedades muçulmanas como um desdobramento
infinito de suas origens religiosas. O
impacto da era industrial, da expansão imperial das potências européias, das circunstâncias da Guerra
Fria: nada disso interessa efetivamente aos orientalistas.
[O inglês] Bernard Lewis, o príncipe dos orientalistas contemporâneos, escreveu que os povos árabes
"podem tentar voltar as costas ao
Ocidente e às suas realizações, perseguindo a miragem de um regresso
ao ideal teocrático perdido". A passagem, velha de mais de duas décadas, sintetiza o diagnóstico culturalista. Tudo se passa como se o jihadismo contemporâneo estivesse
contido na essência do islã e seus líderes figurassem numa linha de descendência direta do puritanismo
Wahabi [seita do islamismo puritano saudita fundada por Muhammad
ibn Abd al Wahab (1703-92), que vê
todas as outras seitas como hereges].
A abordagem não é apenas preconceituosa mas está contaminada
de interesse político: se o fanatismo
do inimigo é imanente à sua cultura,
como atribuir qualquer responsabilidade à violência política do Ocidente?
Muhammad ibn Abd al Wahab,
um jurista de Najd [região central da
Arábia Saudita], fundou a seita puritana Wahabi que, em nome do retorno a um "primitivo islã", denunciou o islã histórico praticado pelos
povos muçulmanos e embebido de
variadas influências étnicas e culturais. A aliança entre a seita Wahabi e
o clã guerreiro dos Saud gerou uma
prolongada jihad, cujo resultado foi
a criação do reino da Arábia Saudita,
no início do século 20. Essa é a origem do primeiro Estado islâmico
contemporâneo, que, subordinando
a política ao Livro, encarnou o ideal
fundamentalista.
O movimento jihadista de Bin Laden e Al Zawahiri está conectado a
essa tradição, mas não do modo linear como sugere a leitura culturalista. O fundamentalismo Wahabi,
depois de chegar ao poder, acomodou-se como doutrina quietista e
adaptou-se à cooperação estratégica
entre a casa de Saud e Washington.
O jihadismo global é um herdeiro
legítimo da ruptura Wahabi com o
islã histórico mas é também uma
ruptura com o próprio fundamentalismo, em vários níveis. Os neofundamentalistas islâmicos rejeitam o
monopólio dos ulemás (sábios corânicos) sobre o debate religioso e incorporam a linguagem antiimperialista à sua jihad. Eles não são pré-modernos, mas pós-modernos.
Projeto ético
"Cavaleiros sob a Bandeira do Profeta" pode ser lido como clássica
arenga anti-semita, inspirada no mito da conspiração mundial que enxerga a mão do Judeu atrás da campanha de Napoleão no Egito [1798-99], da Declaração Balfour [1917, em
que os ingleses apoiavam o assentamento de judeus na Palestina] e da
Guerra do Golfo [1990-91].
Mas isso é não querer encarar o
principal. As passagens relevantes
do livro evidenciam realismo político e consciência estratégica: "O fato
que deve ser reconhecido é que o tema da Palestina é a causa que inflama os sentimentos da nação muçulmana, do Marrocos à Indonésia, nos
últimos 50 anos. Além disso, é um
foco de unidade para todos os árabes, sejam eles crentes ou não-crentes, bons ou maus". Al Zawahiri lamenta que os jihadistas cedam o palco do discurso sobre a Palestina aos
secularistas e conclama seus seguidores a assumirem a liderança na luta por Jerusalém.
No plano estrito da história das
idéias, o movimento jihadista nasceu como fruto da fusão do fundamentalismo religioso Wahabi com a
doutrina política da Irmandade Muçulmana. A repressão de Gamal Abdel Nasser [1918-70, coronel egípcio
que foi primeiro-ministro e presidente do país entre 1954 e 70] contra
a irmandade atingiu o ápice com a
execução de Sayd Qutub, autor de
"Sinalizações na Estrada", o manifesto da nova jihad, em 1966.
Os líderes egípcios remanescentes
seguiram para o exílio saudita,
criando o caldo de idéias e organizações do qual emanou o neofundamentalismo. Em novembro de 1979,
o ataque à Grande Mesquita de Meca por rebeldes jihadistas evidenciava o aprofundamento das fissuras na
velha aliança entre a seita Wahabi e a
casa de Saud.
No Afeganistão ocupado pela
União Soviética, a nova jihad tornou-se global. Al Zawahiri, mais que
Bin Laden, esculpiu o "exército dos
fiéis", articulando as forças dos
guerrilheiros mujahidins afegãos às
milícias de combatentes jihadistas
transferidos de diversos outros países muçulmanos.
Os campos de batalha do Afeganistão, onde a segunda potência militar do mundo conheceu o seu Vietnã, ramificavam-se por todo o Grande Oriente Médio. Depois da retirada soviética, em 1989, os "árabes
mujahidin", ou seja, os combatentes
jihadistas curtidos nas montanhas
afegãs, voltariam a guerrear contra
os infiéis nos teatros da Tchetchênia,
da Bósnia e de Kosovo. Hoje, eles desempenham um papel secundário,
mas não negligenciável, no teatro do
Iraque ocupado.
O islã histórico é uma vivência coletiva, inseparável das experiências
singulares das sociedades muçulmanas. O neofundamentalismo jihadista, em contraste, apresenta-se a seus
militantes como projeto ético e escatológico individual. O terror de Bin
Laden e Al Zawahiri, um fenômeno
pós-moderno associado à globalização e à diáspora muçulmana, deve
ser interpretado como ruptura radical com o islã histórico.
Os terroristas do 11 de Março, em
Madri [que atacaram um trem, deixando pelo menos 191 mortos], viveram na Europa, em meio a comunidades muçulmanas estigmatizadas
social e culturalmente. Depois da
etapa afegã, o "exército dos fiéis"
dispersou-se pelo mundo e passou a
se articular exclusivamente em torno da mensagem ideológica da jihad. As atuais organizações jihadistas configuram redes horizontais
amorfas, recrutam militantes por
meio da internet, utilizam as tecnologias da informação e participam,
clandestinamente, da ciranda financeira globalizada.
Salvar as mentes
"A doutrina ocidental do direito de
resistir a um mau governo é estranha ao pensamento islâmico." A fórmula de Bernard Lewis, cuja carga
de estupidez expressa-se no mito de
que há um "pensamento islâmico",
parece de pouca utilidade para entender a revolta palestina contra a
ocupação israelense. Mas ela orienta
os discursos dos neoconservadores
norte-americanos e a estratégia da
"guerra ao terror" de George W.
Bush. O corolário é que cabe ao Ocidente introduzir a doutrina da liberdade entre os primitivos muçulmanos, bombardeando suas cidades
para salvar suas mentes.
Eis o terreno ideal para a difusão
da mensagem da jihad. Al Zawahiri
dedica parte de sua exposição a criticar a decisão da Irmandade Muçulmana de renunciar à luta armada,
em 1987, e à estratégia eleitoral da
FIS (Frente Islâmica de Salvação), da
Argélia, em 1991.
O argumento é que "o Ocidente
não é apenas infiel mas também hipócrita e mentiroso". E, de fato, o regime egípcio de Hosni Mubarak,
aliado de Washington, continuou a
prender e torturar os militantes islâmicos enquanto, na Argélia, a vitória
eleitoral da FIS deflagrou um golpe
militar e a instalação de uma ditadura apoiada pela França.
A meta última do movimento jihadista é a restauração do califado
mundial. Mas o livro de Al Zawahiri
está consagrado à estratégia definida
pelo "objetivo de estabelecer o Estado muçulmano no coração do mundo islâmico", ou seja, na Arábia Saudita, no Iraque, na Palestina, na Síria
ou no Egito. A violência da "guerra
ao terror", amparada nas concepções históricas orientalistas, serve
apenas para abortar o debate político nas sociedades e comunidades
muçulmanas.
No fundo, o rufar dos tambores do
Ocidente equivale a um convite para
que os muçulmanos se perfilem
"sob a bandeira do Profeta".
Demétrio Magnoli é doutor em geografia
humana pela USP, editor do boletim "Mundo - Geografia e Política Internacional". É
autor de "Relações Internacionais" (Saraiva).
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