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São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

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+ sociedade

Uma charada explosiva

Esta é uma charada com um núcleo explosivo: existe um povo empedernido, de maioria islâmica, que há muito tempo é oprimido por um grupo étnico diferente que governa um Estado repressor. Eles foram torturados, bombardeados, expulsos de suas casas; alguns atos desse Estado opressor se caracterizam como tentativa de genocídio. Esse povo lutador, com uma longa tradição de banditismo nas montanhas, reagiu com levantes armados e guerra de guerrilha; alguns dos meios que eles empregaram poderiam ser classificados como terrorismo. Quem são, e o que estamos fazendo a respeito deles? Resposta 1: são os albaneses de Kosovo. Nós interviemos militarmente contra seu opressor. Forças especiais americanas trabalham primeiro secretamente e depois abertamente com o Exército de Libertação de Kosovo. Nós garantimos sua independência efetiva da Sérvia, sob um protetorado internacional. Em consequência, um dia existirá um pequeno país chamado Kosova (a grafia albanesa) ou uma grande Albânia. Resposta 2: são os curdos da Turquia. Nós nos damos as mãos, acenamos com nossos dólares ou euros e dizemos à Turquia que, como ela é membro da Otan e quer muito ser membro da União Européia, deveria, em nome de Deus, de Alá e do Banco Mundial, tratar um pouco melhor sua grande minoria curda. Afinal, a Turquia pensa que faz parte da Europa, não pensa? Resposta 3: são os curdos do Iraque. Nós interviemos militarmente contra seu opressor. Forças especiais americanas trabalham primeiro secretamente e agora abertamente com os exércitos de libertação curdos, que na última década se reforçaram sob a proteção aérea dos aviões britânicos e americanos que patrulham a "zona de exclusão aérea". Como a Turquia se recusou a permitir que tropas americanas se deslocassem por seu território para abrir uma frente norte contra Saddam no Curdistão iraquiano, a coalizão anglo-americana talvez precise contar mais com essas forças curdas. Mas a Turquia está ameaçando enviar (ou talvez já tenha enviado) suas próprias forças especiais para o Curdistão iraquiano. Isso é impedir ostensivamente uma potencial inundação de refugiados na Turquia, mas é principalmente desencorajar os curdos da Turquia de imaginar que podem seguir o exemplo de seus irmãos e irmãs do outro lado da fronteira.


O problema curdo no Iraque levanta um dilema central para o imperialismo liberal anglo-saxão em que curiosamente reembarcamos no início do século 21


As três respostas estão corretas. Então o que se deve fazer pelos curdos? Bush e Blair, a Europa dividida, a ONU, o "Ocidente" (se ainda existe) e a "comunidade internacional" (seja o que for isso hoje), todos vão fingir que temos uma resposta. Qualquer leitor poderia escrever o discurso do porta-voz: "Direitos das minorias", "autonomia interna, mas integridade territorial do Iraque", "estruturas federais" etc. Mas vou sussurrar a verdade em seu ouvido: não temos uma resposta. Estamos perplexos e vacilantes, como de costume quando enfrentamos a questão da autodeterminação. O problema curdo levanta um dilema central para o imperialismo liberal anglo-saxão em que curiosamente reembarcamos no início do século 21. Quando Londres e Washington brevemente defenderam a tese da guerra no Iraque como uma "intervenção humanitária", sempre citaram o ataque com gás aos curdos de Halabja e a morte de estimados 100 mil curdos pelos homens de Saddam. Embora essas comparações sejam sempre odiosas, os curdos sofreram ainda mais terrivelmente que os kosovares.

A força da tese moral
A tese moral também é forte por dois outros motivos. O primeiro governo Bush encorajou os curdos a se rebelarem contra Saddam em 1991 e depois permitiu que ele os massacrasse com os helicópteros canhoneiros que Washington deixou que ele mantivesse. O Reino Unido tem uma responsabilidade especial, já que as primeiras pessoas a bombardear os curdos fomos nós, quando eles se revoltaram contra o Iraque que criamos depois da Primeira Guerra Mundial. Assistindo às gravações da televisão no Curdistão iraquiano, lembro-me irresistivelmente de Kosovo -uma população montanhesa rija e calejada, estradas empoeiradas, minaretes de aldeia, camponesas usando lenços muçulmanos, uma sociedade rural ainda muito tradicional, com grandes famílias e líderes de clãs. Afinal, os curdos não são muito diferentes dos kosovares nem tão distantes. Quem ousaria afirmar que eles devem ser tratados de maneira diferente porque um grupo está na Europa e o outro, não? Em ambos os casos continuamos nos debatendo, quase um século depois, com o legado do Império Otomano. As reservas morais também são semelhantes às de Kosovo: entre nossos novos "combatentes da liberdade" existem bandidos inescrupulosos, fortemente envolvidos no crime organizado e familiarizados com o uso do terror -aliados incômodos em uma "guerra ao terrorismo". As reservas políticas também são conhecidas: como essas pessoas vivem em vários países vizinhos, dar-lhes autonomia em um lugar seria desestabilizar outro. O que já aconteceu e acontecerá. Nosso apoio ao Exército de Libertação de Kosovo encorajou poderosamente a rebelião albanesa na vizinha Macedônia. Em consequência disso, continuamos lá para manter uma paz frágil.

Nação sem país
Os temores da Turquia não são infundados. Se eu fosse um separatista curdo no sudeste da Turquia, ficaria muito animado ao ver o general dos fuzileiros navais americanos Henry Osman coligado a meus irmãos de armas do outro lado da fronteira, no Iraque. Essa não é a única potencial consequência indireta. A Turquia é uma grande dor de cabeça, mas os curdos também vivem no Irã, na Síria e na Armênia. Contando cerca de 20 milhões a 25 milhões, afirma-se que eles são a maior nação sem país do planeta.
Se você acha um pouco acadêmico avaliar o destino das nações sem Estado enquanto a guerra continua arrasando Bagdá, pense novamente. A questão curda é a maior bomba sem explodir em todo o Iraque. E seu futuro também será determinado no calor da batalha nos próximos dias e semanas. Se as forças curdas contribuírem significativamente para a vitória americana na frente norte, enquanto a Turquia, tradicional aliada americana, se recusa a ajudar e até prejudica ativamente com uma incursão através da fronteira, o equilíbrio da opinião pública americana tenderá a seu favor, como aconteceu em Kosovo. De qualquer forma, em uma das mais estranhas aberrações dos assuntos internacionais, os curdos do norte do Iraque vêm desfrutando de ampla autonomia há uma década sob nossa "zona de exclusão aérea". É difícil imaginar que agora os abandonaremos a seu destino.
Por isso especialistas inteligentes já estão esboçando esquemas para uma "federação" envolvendo autonomia para o Curdistão iraquiano e direitos individuais para os curdos em todo o Iraque. Mas Curdistão iraquiano em que fronteiras? Com ou sem os campos petrolíferos de Kirkuk? Como se podem garantir esses direitos individuais para os curdos nas outras partes de um país ocupado e caótico? Ou para os árabes iraquianos no Curdistão? (lembrem-se de que os soldados britânicos acabaram protegendo indivíduos sérvios idosos em Kosovo).
Se esses delicados arranjos constitucionais ainda não evitam conflitos interétnicos em países europeus desenvolvidos como a Espanha (onde a Catalunha está pressionando por uma autonomia ampliada que se aproxima notavelmente da independência), que chance têm eles aqui? O que significaria para a autodeterminação democrática de todo o Iraque se essa radical transferência de poder fosse ditada imediatamente pela potência ocupante? E se a maioria dos eleitores iraquianos não aceitar o que a maioria dos curdos iraquianos obviamente quer?
Sejamos francos: quando essa sangrenta guerra terminar, estaremos de volta a 1918, enfrentando muitas das mesmas questões nos mesmos lugares que nossos avós enfrentaram, dos Bálcãs ao Oriente Médio. E ainda não temos as respostas. Às vezes penso que deveríamos reinventar o Império Otomano.

Timothy Garton Ash é historiador inglês e diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Oxford, autor de "Nós, o Povo".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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