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São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

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+ literatura

Trajano Vieira traduz trecho de "As Bacantes" e comenta as mutações que o protagonista sofre ao longo da peça

DIONISO MÁSCARA E SARCASMO

Lenise Pinheiro - 29.set.2001/Folha Imagem
Cena de "Bacantes", montagem de José Celso Martinez Corrêa


Trajano Vieira
especial para a Folha

Não sabemos o que levou Eurípides (485-406 a.C.) a se transferir, em 408 a.C., de Atenas para a Macedônia, onde morreu antes de ver a representação de sua peça mais famosa: "As Bacantes" (405 a.C.).
Uma explicação para seu exílio voluntário na corte do rei Arquelau seria a recepção negativa de sua obra em Atenas. Eurípides estreou em 455 a.C., ano da morte de Ésquilo, num concurso de tragédia em que não passou do terceiro lugar. Das quatro vitórias que obteve em vida num universo de 92 peças escritas, contra 18 de Sófocles, autor de 123 obras, a primeira só ocorreu em 441 a.C., o que nos leva a pensar que pelo menos os juízes tinham, a seu respeito, opinião diferente da de Sócrates que, embora não fosse frequentador assíduo de teatro, não perdia suas montagens (cf. Aelian, "Varia Historia" 2, 13).
Entre os contemporâneos de Eurípides, as únicas referências (pseudo) biográficas de que dispomos são as comédias de Aristófanes, onde ele figura como misógino, sofista e filho de verdureira. A biografia, um gênero tardio na Grécia, não fazia distinção entre anedotário e fato histórico. Mesmo considerando com reserva, portanto, as informações de Filocoro (séc. 4º a.C.) e de Sátiro (séc. 3º a.C.), podemos supor que um dos motivos para a divulgação, na Antiguidade, da história segundo a qual Eurípides teria vivido numa caverna em Salamina foi a necessidade de justificar seu insucesso profissional.
Um dos aspectos mais notáveis das "Bacantes" diz respeito à manifestação mutante de Dioniso. Já na abertura da tragédia, ele fala duas vezes de sua metamorfose (4-5: "Deus em mortal transfigurado, achego-me/ ao rio Ismeno"; v. 54). No verso 1.020, o coro retoma o tema, invocando o deus em sua forma plural. O mesmo ocorrerá num dos versos finais da peça (1385: "Muitas formas revestem deuses-demos"). Se, no verso 439, ficamos sabendo da expressão sorridente de Dioniso ("Não descorou-lhe o vinho das maçãs/ do rosto ao se entregar, rindo, à prisão"), nos versos 1.020-1.023, Eurípides cita a máscara com a qual o deus é representado ("prósopon"). Procurei marcar essa identidade entre expressão (riso) e elemento teatral (máscara), traduzindo "gelonti" por "sarcasmo", em lugar de "sorridente" (máscara/sarcasmo):
"Aparece
touro,
dragão-serpente multicrâneo,
leão piroflâmeo!
Deixa te verem!
Ó Baco, máscara-sarcasmo,
em corda mortífera circumprende
o caça-fera!
Que tombe à horda mênade!".
Dioniso não só se manifesta de diferentes formas, mas em diferentes naturezas, sendo a principal delas a humana, conforme ele registra no prólogo (54-5: "Por isso, num mortal me transfiguro,/ a forma antiga em natureza humana", "eis andrós physin"). O antropomorfismo dionisíaco se distingue do olímpico, que é sobretudo estratégico: mesmo quando atuam entre os homens, os deuses mantêm o distanciamento que os singulariza.
A cosmologia olímpica, embora exiba aspectos da sociedade humana, caracteriza-se pela natureza imperecível de seus membros, e é com base em sua condição eterna que eles evidenciam a insignificância dos conflitos humanos.
No final da peça, Cadmo, aniquilado, observa a Dioniso que sua ação, embora justa, é tão rancorosa quanto a de um homem, com o que o deus concorda (1.348). Os outros deuses gregos, quando se "humanizam", mudam de forma; Dioniso altera a própria natureza ("physin"). A incorporação do humano por Dioniso o distingue dos outros imortais. O sorriso de sua máscara exprime a tensão de um deus que, transubstanciado em homem, conhece por dentro sua epopéia trágica sem nela se reconhecer.
A referência à máscara põe à luz outro aspecto importante do drama, o metateatral. Eurípides refere-se, em diversas passagens, à situação de alguém que vê outrem. Em alguns momentos, esse personagem é definido pelo mesmo termo com que se aludia ao público do teatro, como, por exemplo, no verso 1.047, no qual o mensageiro diz que Dioniso era o guia de Penteu para o "espetáculo" ("theoría", "ação de ver um espetáculo"). No verso 829, Dioniso pergunta se Penteu não mais deseja ser "theatés" ("espectador") das mênades.
Nos versos 621-2, Dioniso relata que, enquanto Penteu aprisionava um touro, imaginando ser Dioniso, ele o observava em silêncio, sentado nas cercanias. Com esse recurso, Eurípides indica ao público a natureza artificial da linguagem do teatro e a função performática da platéia, co-participante da encenação. Dioniso abandona momentaneamente a função de protagonista para adotar a de observador, e a cena a que ele assiste é ilusória (alucinação de Penteu).
Nos versos 810-16, Penteu afirma que empenharia seu tesouro para ver, sentado e em silêncio, as bacantes, um espetáculo que, embora doloroso, produziria prazer. O autor representa um tópico da filosofia de seu tempo, concernente ao caráter ilusório do mundo sensível. O teatro configura essa ilusão que, se por um lado, envolve a platéia, por outro, a distancia, ao se manifestar como linguagem. No final da peça, é a mudança de enfoque que permite à Agave reconhecer que a cabeça que transporta não é de um leão, mas de seu próprio filho. Aos olhos da platéia, contudo, ela carrega uma máscara (1.264-1.284).
Com base em cenas desse tipo, somos levados a pensar que Eurípides, no final da vida, reflete sobre noções fundamentais do teatro grego. Um dos verbos que Homero utiliza para "responder" é "hypokrínasthai" ("Ilíada", 7, 407; "Odisséia", 2, 111). Todavia, em outras passagens do poeta épico, esse termo ganha sentido mais específico, "interpretar" a mensagem enigmática do sonho ou do prodígio divino ("Ilíada", 12, 228; "Odisséia", 19, 535, 555). A partir do século 5º a.C., "hypokrínasthai" passa a significar também "desempenhar um papel" no âmbito do teatro e, com base nele, cria-se o substantivo "hypokrités": ator. Sem entrar na discussão sobre a etimologia de "hypokrités", que tanto poderia derivar da noção de "interpretação" (de um mito, de um texto) quanto de "resposta" (considerando a introdução do segundo ator por Ésquilo, responsável pelo traço dialógico da tragédia), pode-se afirmar que, nas "Bacantes", a função de intérprete cabe ao espectador. Mas, ao mesmo tempo, ao apresentar Dioniso desempenhando o papel de espectador, Eurípides, de certo modo, transfere ao público a função de "hypokrités", "ator". Pela representação do espectador como ator do espetáculo dionisíaco, o dramaturgo sugere que os critérios de avaliação sejam buscados no âmbito da própria representação.

Contradição aparente
No século 20, a peça foi lida como obra de um racionalista contrário a correntes religiosas de seu tempo, cujo protagonista não seria um deus, mas um impostor. Contra essa interpretação, [E.R.] Dodds [autor de "Os Gregos e O Irracional], ed. Escuta" viu nas "Bacantes" a representação da irracionalidade. Embora contextualize sua análise com dados culturais gregos, Dodds valoriza o caráter transistórico do que chamamos irracional. Recentemente se tem afirmado que o culto de mistério seria a fonte do drama, uma cerimônia à qual Dioniso esteve ligado pelo menos desde o século 6º a.C..
A leitura da tragédia com base no que ela é -criação verbal voltada para a encenação- traz algumas vantagens. Em primeiro lugar, nos libera da necessidade de buscar uma intenção secreta do autor em transmitir alguma mensagem oculta, como se ele estivesse defendendo, no fundo, uma tese versificada.
Por outro lado, nos permite observar que a coerência do personagem-símbolo do teatro reside na diversidade e na contradição aparente. A exclusão do contraditório nada tem a ver com a linguagem teatral, segundo Eurípides, antes o inverso. O que o público presencia é uma epifania, cuja tensão nasce do fato de Dioniso conter em si o seu contrário. O teatro é a epifania do encontro e sobreposição dos opostos. Note-se que, no epílogo, registram-se dois aspectos fundamentais da manifestação divina, multiplicidade e imprevisibilidade:
"Muitas formas revestem deuses-demos.
Muito cumprem à contra-espera os numes.
Não vigora o previsto.
O poro do imprevisto o deus o encontra.
Este ato assim conclui".


Trajano Vieira é professor de literatura grega da Universidade Estadual de Campinas e tradutor de "Ájax" e "Édipo Rei", de Sófocles, e "Prometeu Prisioneiro", de Ésquilo (ed. Perspectiva).


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