São Paulo, domingo, 06 de abril de 2008

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Ponto de Fuga

Paixões sonoras


Muita gente se irrita com ópera; as vozes lhes parecem poderosas demais e os sentimentos, excessivos; é que, nesse universo de grandes anseios, as palavras se incham, graças à música, com intensidade emotiva

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Como é possível alguém não se apaixonar por ópera? Esse é um mistério para todos os que descobriram o prazer que ela provoca. A ópera forma um mundo único, feito de formas ao mesmo tempo sutis e veementes, dirigidas às emoções e ao pensamento. Age sobre o ouvinte de maneira avassaladora.
Muita gente, no entanto, se irrita com ópera. As vozes lhes parecem poderosas demais e os sentimentos, excessivos. É que, nesse universo de grandes anseios, as palavras se incham, graças à música, com intensidade emotiva. Embebem-se de expressividade, crescem com a melodia, espalham suas significações pela orquestra. Ressoam para além daquilo que devem dizer, carregam-se de sentidos que, sozinhas, são incapazes de definir ou sequer de sugerir.
As convenções da ópera privilegiam as vozes e ignoram o físico ingrato de certos cantores, obrigados a representar no palco galãs sedutores ou donzelas anêmicas. Esse é um aspecto intolerável para alguns.
Os que a amam sabem que a música transfigura e que o aspecto grotesco de alguns artistas desaparece sob a beleza dos sons.
É verdade que hoje se busca, com freqüência, o "physique du rôle", e as montagens renovaram-se, atraindo novos espectadores e oferecendo outros critérios para o gosto. Este ponto é importante: a ópera é um gênero impuro, que mescla música, teatro, fascínio de cenários e de guarda-roupa suntuoso.

Pétala
Quem se apaixona por ópera tenta sempre o proselitismo. Não se conforma que outros sejam hostis ou indiferentes a essa forma de arte tão poderosa. Busca compartilhar em todas as ocasiões.
Aqui vai uma indicação, que é um teste. Quem resistir a ela não tem salvação, nunca irá para o céu da ópera. Trata-se de "La Traviata", em DVD (Deutsche Grammophon), captada no Festival de Salzburgo de 2005. Tornou-se, imediatamente, versão de referência. A protagonista é vivida por Anna Netrebko, para quem a natureza nada poupou quando nasceu, em 1971.
É linda, com um rosto distante e perdido, com pernas sublimes, que a montagem se encarrega de sublinhar. Sua voz é estupenda de timbre, de força, de matizes. Seu modo de representar é intenso e verdadeiro. Compartilha a produção com Rolando Villazón e Thomas Hampson, formidáveis ambos, dirigidos por um Carlo Rizzi que eletriza orquestra e elenco.

Criação
Enquanto as óperas contavam histórias nobres do passado, "La Traviata", em 1853, falava de uma prostituta contemporânea, que morrera tuberculosa. Willy Decker, o diretor que a pôs em cena no Festival de Salzburgo, inventou soluções magníficas e atualizou a situação.

Cisnes
No teatro São Pedro, em São Paulo, no dia 15 de março, cantaram Niza Tank e Fiorenza Cossotto o "Stabat Mater" de Pergolesi. Duas artistas que tiveram belas e longas carreiras.
Niza Tank, como sempre, interpretou com musicalidade nuançada. Fiorenza Cossotto teve um nome muito célebre há três ou quatro décadas. Os admiradores de Maria Callas a odeiam. Callas estava frágil e insegura na última ópera em que atuou, uma "Norma", em Paris. Cossotto, sua parceira cheia de saúde, em forma atlética, aproveitou-se da fraqueza da colega para soltar o vozeirão e suplantá-la.
Quarenta anos depois, no "Stabat Mater" de São Paulo, foi comovente ouvir essas grandes damas do canto. Mostraram a arte que possuem e a voz que o tempo lhes deixou: a primeira é muita, a segunda bem mais do que se poderia esperar.


jorgecoli@uol.com.br


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