|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Civilidade política
Diretor de "Cinturão Vemelho", que estréia no Brasil
em junho, David Mamet passa em revisão
suas convicções, influenciadas pelas ideologias dos
anos 60, e critica o papel do governo nas sociedades
[George
W. Bush] roubou a eleição na Flórida; Kennedy
roubou a dele em Chicago
|
Mario Anzuoni - 9.nov.05/Reuters
| David Mamet encontra o escritor Gore Vidal em Los Angeles |
DAVID MAMET
John Maynard Keynes foi
ironizado por mudar de
idéia. Ele respondeu:
"Quando os fatos mudam, eu mudo minha
opinião. E o senhor, o que
faz?". Meu exemplo favorito de
mudança de opinião aconteceu
com [o escritor] Norman Mailer no "Village Voice".
Norman assumiu o papel de
crítico de teatro e deu sua opinião sobre a estréia nova-iorquina de "Esperando Godot". A
maior peça do século 20. Sem
dar-se ao trabalho de ir vê-la,
Mailer a qualificou de lixo.
Quando, mais tarde, ele assistiu à peça, deu-se conta do
erro que cometera. Mas não
era mais colunista do "Voice",
então comprou uma página no
jornal e publicou um artigo em
que se retratou, saudando a peça como a obra-prima que ela é.
O sonho de todo dramaturgo.
Certa vez, venci uma das
"Competitions" de Mary Ann
Madden, na revista "New
York". A tarefa proposta era
nomear ou criar um "10" de
qualquer coisa, e a minha foi a
"Resenha Teatral Mais Perfeita
do Mundo".
Ela dizia o seguinte: "Nunca
entendi o teatro até a noite de
ontem. Por favor, perdoe tudo
o que já escrevi. Quando o sr.
ler isto, eu já estarei morto".
Essa, é claro, é a única resenha
que alguém que trabalha com
teatro deseja receber.
Meu prêmio -uma ironia espantosa- foi uma assinatura
de um ano da "New York", pasquim que (com a exceção da
"Competition", de Mary Ann)
considero uma ferida purulenta no corpo das letras mundiais
-isso devido à presença em
suas páginas de John Simon,
cujo amálgama estarrecedor de
arrogância e selvageria, ao longo dos anos, foi apreciado pela
parcela dos leitores que vive
em busca de um endosso da
mediocridade pró-ativa.
Mas estou divagando.
Escrevi uma peça sobre política ("November", em cartaz
no teatro Barrymore, na
Broadway; alguns lugares ainda disponíveis). E, como parte
do "processo de criação"
-creio que é assim que é descrito-, comecei a refletir sobre
política. Esse comentário não é
realmente tão inepto quanto
pode parecer.
"Porgy and Bess" é uma coletânea de ótimas canções, mas
não tem nada a ver com relações raciais, a bandeira de conveniência sob a qual navegou.
Pontos de vista opostos
Mas minha peça, conforme
ficou claro, era de fato sobre
política, ou seja, sobre a polêmica entre pessoas que defendem pontos de vista opostos. O
argumento de minha peça se dá
entre um presidente que defende interesses próprios, é
corrupto, aliciado e realista, e a
redatora de seus discursos, esquerdista, lésbica e socialista
utópica.
Ao mesmo tempo em que garante uma gargalhada por minuto, a peça é uma disputa entre a razão e a fé ou, possivelmente, entre a visão conservadora (e trágica) e a esquerdista
(ou perfeccionista).
O presidente conservador,
na peça, defende que as pessoas
querem sobretudo ganhar a vida individualmente e que a melhor maneira de o governo facilitar o trabalho delas é ficar fora
de seu caminho, já que os inevitáveis abusos e deficiências
desse sistema (o da economia
de livre mercado) são menores
que os que decorrem da intervenção governamental.
Durante muitas décadas eu
aderi à visão esquerdista, mas
creio que mudei de idéia. Como
filho dos anos 1960, aceitei como artigo de fé que o governo é
corrupto, que as grandes empresas nos exploram e que a
maioria das pessoas, no fundo,
tem coração bom.
Com o passar dos anos, esses
preceitos tão valorizados foram
se entranhando em mim como
preconceitos cada vez mais impraticáveis. Por que digo "impraticáveis"? Porque, embora
eu ainda aderisse a essas idéias,
já não as aplicava em minha vida. Como sei disso? Minha mulher me informou do fato. Estávamos andando de carro, ouvindo a NPR [Rádio Pública
Nacional, rede provedora de
conteúdo para emissoras não
comerciais].
Senti meus músculos faciais
enrijecendo, e as palavras "cale
a boca!" se formando em minha
mente. "?", ela me espicaçou.
E, como sempre, seu resumo
enxuto e elegante me despertou para uma verdade mais
profunda: eu vinha ouvindo a
NPR e lendo diversos órgãos de
opinião nacional havia anos,
maravilhamento e raiva disputando espaço a tapas em minha
cabeça. E mais: constatei que
vinha me referindo a mim mesmo, havia anos -de maneira
bastante charmosa, pensava-
como "esquerdista tapado" e, à
NPR, como "Rádio Nacional
Palestina".
Isso, para mim, sintetiza a visão de mundo com a qual me
descobri desencantado: a idéia
de que tudo está sempre errado. Em minha própria vida,
contudo, como revelou uma
breve revisão, nem tudo estava
sempre errado, e nem tudo estava errado sempre, tampouco,
na comunidade em que vivo ou
em meu país.
Ademais, tudo não tinha estado sempre errado nas comunidades em que eu vivera anteriormente e entre as diversas e
móveis classes das quais, em
momentos distintos, fui parte.
E me perguntei como eu pude ter passado décadas achando que eu pensava que tudo estava sempre errado, ao mesmo
tempo em que achava que eu
pensava que as pessoas eram
basicamente boas.
A Constituição
Qual era a resposta? Comecei
a questionar o que eu realmente pensava e descobri que não
penso que as pessoas sejam
fundamentalmente boas; de fato, essa visão da natureza humana tanto motivou quanto esteve na base de meus escritos
nos últimos 40 anos.
Acho que, em circunstâncias
de tensão, as pessoas podem
comportar-se como porcos, e
que esse, de fato, não apenas é
um tema apropriado para obras
de teatro, mas, de fato, é o único
apropriado.
Eu observara que a luxúria, a
cobiça, a inveja, o ócio e seus
colegas vêm dando muito trabalho ao mundo, mas que, não
obstante, as pessoas, de um
modo geral, parecem conseguir
levar suas vidas adiante; e que
nós, nos EUA, levamos nossas
vidas adiante sob condições
bastante privilegiadas e ótimas
-que não somos e nunca fomos
os vilões que parte do mundo e
alguns de nossos cidadãos querem nos fazer parecer, mas que
somos um misto de cidadãos
normais (cobiçosos, desejosos,
enganosos, corruptos, inspirados -em suma, humanos) que
vivem sob um acordo espetacularmente eficaz chamado
Constituição e que temos sorte
de contar com ele.
Pois a Constituição, em lugar
de sugerir que nos comportemos todos de maneira semelhante à dos deuses, reconhece
que, pelo contrário, as pessoas
são porcos e aproveitarão qualquer oportunidade que lhes
aparecer para subverter qualquer pacto, visando a defender
o que consideram ser seus interesses próprios.
Com essa finalidade em vista,
a Constituição divide o poder
do Estado naqueles três ramos
que são, para a maioria de nós
(eu me incluo nela), a única coisa da qual nos recordamos de
12 anos de ensino fundamental
e médio.
Redigida por homens dotados de alguma experiência prática de governo, a Constituição
parte da premissa de que o chefe do Executivo trabalhará para
tornar-se rei, que o Parlamento
vai conspirar para vender a
prataria da casa e que o Judiciário vai considerar-se olímpico e
fazer tudo o que puder para
melhorar em muito (destruir) o
trabalho dos dois outros ramos.
Por essa razão, a Constituição os opõe uns aos outros, não
numa tentativa de alcançar a
estase, mas de possibilitar as
correções constantes necessárias para impedir que um ramo
conquiste poder demais por
tempo excessivo.
Muito brilhante. Pois, abstratamente, podemos idealizar
uma perfeição olímpica de seres perfeitos em Washington
trabalhando pelo bem de seus
empregadores, o povo, mas
qualquer um de nós que já esteve presente a uma reunião de
discussão sobre zoneamento
em que nosso imóvel estivesse
em questão tem consciência do
desejo premente de passar por
cima de toda a baboseira e partir diretamente para as armas
de fogo.
Constatei não apenas que
não confio no governo atual (isso não foi surpresa para mim),
mas que uma revisão imparcial
revelava que as falhas deste
presidente -a quem eu, bom
esquerdista, via como monstro- diferiam em pouco daquelas de um presidente a
quem eu reverenciava.
[George W.] Bush nos mergulhou no Iraque; JFK, no Vietnã. Bush roubou a eleição na
Flórida; Kennedy roubou a dele
em Chicago. Bush divulgou a
identidade de uma agente da
CIA; Kennedy deixou centenas
deles morrerem na praia da
baía dos Porcos [em Cuba].
Bush mentiu sobre seu serviço
militar; Kennedy aceitou um
Prêmio Pulitzer por um livro
escrito por Ted Sorensen. Bush
dividiu uma cama com os sauditas; Kennedy, com a máfia.
Oh!
E comecei a questionar o
ódio que eu nutria pelas "grandes corporações" -ódio esse
que, descobri, não passava do
revés da fome que eu sentia pelos bens e serviços que elas fornecem e sem os quais não conseguimos viver.
E comecei a questionar a desconfiança que eu nutria pelos
"militares malignos" de minha
juventude, que, percebi, estava
no passado, sendo que as Forças Armadas hoje são compostas por homens e mulheres que
arriscam suas vidas para proteger o resto de nós de um mundo
muito hostil.
As Forças Armadas sempre
estão com a razão? Não. Tampouco o estão o governo ou as
grandes empresas -eles são
apenas sinais distintos do particular amálgama de nosso país
em grupos de trabalho distintos, por assim dizer.
Esses grupos são infalíveis,
livres da possibilidade de serem mal administrados, corrompidos ou criminalizados?
Não -e tampouco você ou eu
somos. Assim, adotando a perspectiva trágica, a pergunta não
será "será que tudo é perfeito?", mas "como as coisas poderiam ser melhores, a que custo
e segundo a definição de
quem?".
Apresentadas dessa forma, as
coisas me pareciam estar se desenrolando bastante bem.
Será que falo como membro
da "classe privilegiada"? É possível -mas as classes, nos EUA,
são móveis, e não estáticas, como reza a visão marxista. Ou
seja: os imigrantes vinham e
continuam a vir para cá sem
um centavo no bolso e podem
enriquecer (e enriquecem); o
"nerd" ganha US$ 1 trilhão; a
mãe solteira, pobre e sem falar
inglês, consegue que seus dois
filhos cursem a faculdade (foi o
caso de minha avó).
Por outro lado, os ricos e seus
filhos podem perder tudo; a hegemonia das ferrovias dá lugar
à das companhias aéreas, a das
redes de TV dá lugar à da internet, e o indivíduo pode, e provavelmente irá, mudar de situação mais de uma vez no decorrer de sua vida.
O que dizer sobre o papel do
governo? Bem, falando em termos abstratos, a partir de meu
tempo e meu passado, achei
que fosse uma coisa bastante
boa, mas, contabilizando as coisas que me afetam e as que observo, sinto dificuldade em
identificar uma instância em
que a intervenção do governo
tenha levado a muita coisa senão sofrimento.
Mas, se o governo não deve
intervir, como é que nós, meros
humanos, vamos encontrar as
soluções?
Eu me questionei, li, e me
ocorreu que eu sabia a resposta.
É esta: parece que simplesmente encontramos jeitos. Como
sei disso? Pela experiência.
Pensei em minha própria experiência. Tire o diretor da peça
encenada, e o que resulta?
Normalmente, em uma redução nos conflitos, ensaios
feitos em menos tempo e uma
produção melhor. O diretor geralmente não causa conflitos,
ele próprio, mas sua presença
leva os atores a dirigir (e inventar) reivindicações que visam a
apelar para a "autoridade"
-em outras palavras, deixar de
lado o objetivo original (encenar uma peça para a platéia) e
fazer política, cujo objetivo pode ser ganhar status e influência fora do objetivo ostensível
do empreendimento todo.
Sistema de júri
Deixe passageiros que não se
conhecem sozinhos num ônibus no meio da noite, sem a
possibilidade de sair dele, e o
que você terá? Muito drama de
baixa qualidade e uma versão
rudimentar do Acordo do Mayflower [entre colonos que chegavam à América do Norte,
considerado o primeiro contrato social dos EUA, em 1620].
Cada passageiro vai imediatamente acrescentar o que puder à solução do problema. Por
quê? Porque cada um quer (na
realidade, necessita) contribuir
-jogar no caldeirão os presentes que tem em mãos para ajudar o grupo a alcançar a meta
comum, sem falar em conquistar status na comunidade recém-formada. E, assim, eles encontram uma solução.
Veja também o caso dessa
mais magnífica das escolas, o
sistema de júri, no qual, novamente, cada participante não
traz nada para a mesa salvo
seus próprios preconceitos, e,
ao fio das deliberações, o grupo
chega não a uma solução perfeita, mas a uma solução aceitável para a comunidade -uma
solução com a qual a comunidade consegue conviver.
Antes das eleições parlamentares, meu rabino estava sendo
alvo de muitas críticas. A congregação é exclusivamente esquerdista, ele se descreve como
independente (leia-se "conservador") e estava deixando o rebanho maluco. Por quê?
Porque a) ele nunca falava de
política e b) ensinava que a qualidade do discurso político precisa ser tratada primeiro -que
as leis judaicas ensinam que cabe a cada pessoa ouvir tudo o
que a outra tem a dizer.
Então eu, assim como uma
parte tão grande da congregação esquerdista, comecei
-com os dentes rangendo- a
tentar fazê-lo. E, ao fazê-lo, reconheci que eu tinha duas visões dos EUA (política, governo, grandes empresas, o setor
militar).
Uma delas era a de um Estado em que tudo estava magicamente errado e deveria ser corrigido imediatamente, a qualquer custo; e a outra -a do
mundo na qual eu de fato vivia
cotidianamente- era feita de
pessoas, a maioria das quais
procurava, de maneira razoável, maximizar seu próprio
conforto, convivendo pacificamente com as outras (no trabalho, no mercado, na sala do júri,
na rodovia, até mesmo nas reuniões dos conselhos escolares).
E compreendi que era chegado o momento de eu declarar
minha participação nos EUA
em que eu optava por viver e
que o país não era uma sala de
aula ensinando valores, mas
um mercado.
Será que falo como membro da "classe privilegiada"? É possível, mas as classes são móveis, e não estáticas
|
"Ahá!", você dirá, e com razão. Comecei a ler não apenas
os tratados econômicos de
Thomas Sowell (nosso maior
filósofo contemporâneo), mas
também Milton Friedman,
Paul Johnson e Shelby Steele,
além de uma gama de escritores conservadores, e descobri
que eu concordava com eles:
uma visão de mundo pautada
pelo livre mercado condiz mais
perfeitamente com minha experiência do que a visão idealista à qual chamo de visão esquerdista.
Ao mesmo tempo, eu estava
escrevendo minha peça sobre
um presidente corrupto, astuto
e vingativo (como presumo que
sejam todos os presidentes) e
dois perus.
E dei a esse presidente fictício uma redatora de discursos
que, na opinião dele, é uma "esquerdista tapada", muito semelhante a meu eu anterior.
No decorrer da peça, eles são
obrigados a encontrar uma saída. De fato, acabam chegando a
uma compreensão humana do
processo político. Coisa que
creio que eu mesmo estou tentando fazer e na qual acredito
que possa ter êxito. Tentarei
resumi-la nas palavras de William Allen White [1868-1944].
Progredir e conviver
White foi durante 40 anos
editor da "Emporia Gazette",
da zona rural do Arkansas, e comentarista político poderoso e
destacado. Foi grande amigo de
Theodore Roosevelt e escreveu
o melhor livro que já li sobre a
Presidência. O livro se intitula
"Masks in a Pageant" (Máscaras em uma Encenação Histórica). Traça o perfil de presidentes americanos de McKinley a Wilson, e eu o recomendo sem reservas.
White era um sujeito muito
lúcido e já testemunhara a natureza humana de maneira que
poucas pessoas têm a oportunidade de fazer (como escreveu
Mark Twain, se você quiser
compreender os homens, dirija
um jornal rural).
Sabia que as pessoas precisam tanto progredir quanto
conviver umas com as outras,
que estão sempre trabalhando
para um ou outro desses objetivos, e que o governo, na maior
parte do tempo, provavelmente
fará melhor em ficar fora de seu
caminho e deixar que elas sigam seu próprio rumo. Mas,
acrescentou, existe algo chamado liberalismo -a postura
esquerdista-, e ela pode ser reduzida a essa mais triste das
frases: "... E, no entanto...".
A direita faz pregações tediosas sobre a fé, a esquerda faz
pregações tediosas sobre mudanças, e muitos ficam indignados com os tolos que vêem do
outro lado. Em última análise,
porém, esses tolos são as mesmas pessoas com as quais vamos nos encontrar na cantina
da empresa.
Feliz temporada eleitoral!
Este texto foi publicado no "Village Voice".
Tradução de Clara Allain .
Texto Anterior: Discoteca: Você Ainda Não Ouviu Nada Próximo Texto: Várias acepções de "liberal" convivem nos Estados Unidos Índice
|