São Paulo, domingo, 06 de abril de 2008

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Naufrágio da tradição

Em "Órfãos do Eldorado", Milton Hatoum se afasta da tradição novelesca européia e despreza a abordagem regionalista

LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA

Por sua configuração mais curta, a novela exige um relato sintético. Como, entretanto, fazer com que o menor espaço narrativo não prejudique a complexidade do relato? Nenhuma resposta abstrata é cabível. Só podemos apontar para casos modelares. Por exemplo, para o "Órfãos do Eldorado", o novo livro de Milton Hatoum.
Para o leitor que conheça seus três romances anteriores e que ainda não haja lido a recente novela essa poderia parecer a retomada de uma temática de perda e dissipação, tendo como espaço Manaus e o Amazonas.
A impressão estará correta desde que o leitor não confunda retomada com repetição. É a síntese própria da novela que impõe a diferença. A diferença será melhor compreendida se antes formularmos o horizonte que envolve essa novela e as obras anteriores.
Em comum, Hatoum despreza a abordagem de tanto prestígio entre nós, fixada entre as décadas finais do século 19 e as primeiras do 20: a abordagem regionalista -uma espécie de realismo de costumes. Despreza-o para que estabeleça uma outra deriva entre a narrativa mítica e a novelesca (abrangendo romance e novela), distinta daquela que se disseminaria a partir da Europa sobretudo do século 18.

Metamorfoses do mito
A tradição novelesca então constituída tivera como matéria-prima situações do cotidiano, que se impunham sobre o fantástico e o maravilhoso derivados dos mitos antigos. O regionalismo era uma deriva daquela tradição novelesca por diferençar o cotidiano de uma certa área geográfico-cultural.
É bem outro o caminho assumido por Hatoum. Ele se dá de maneira comparável ao que se cumpriu tanto no chamado "realismo mágico" latino-americano como no relato curto faulkneriano. Daquele se diferencia por ser antes surpreendente do que mágico, deste por não recorrer a situações escabrosas ou espantosas.
Tais diferenças, contudo, não impedem que os vejamos como integrantes de uma família da qual estão excluídos, por exemplo, Balzac e Flaubert e que exprimem outro modo de transformação da massa mítica.
No caso específico da novela de Hatoum, as metamorfoses do mito se cumprem pelas alterações pelas quais passa a lenda do Eldorado. Miticamente, o Eldorado de que a novela de Hatoum se afasta se confunde com uma cidade submersa e encantada.
Ele deixa de tematizá-la para que identifique o Eldorado com um naufrágio. É certo que, nos dois casos, o Eldorado é o invisível, o que está fora do alcance do olhar cotidiano. Mas essa comunidade de sentido importa apenas para que se confirme o afastamento quanto à tradição novelesca européia.
Na novelística de Hatoum, o naufrágio tem uma tríplice dimensão. É do cargueiro assim chamado, em que se concentrava a riqueza paterna do narrador; nominalmente, é da ilha para onde foge a órfã amada, de quem tampouco se sabe se fora filha ou amante de seu pai; e, sobretudo, do poder e da riqueza que haviam sido de seu avô e de seu pai.
A passagem do tempo, concentrando-se o relato na geração do neto, apresenta pois uma derrocada progressiva. Ela se consuma com a venda da residência em Vila Bela e a extensa propriedade em área vizinha. O narrador é portanto o estróina do que fora acumulado por duas gerações?
Sim, mas não só. Enriquecer ali significa, como sucedera com o avô, usufruir do massacre de nativos e caboclos, apossando-se então da área que os mortos ocupavam e, como o pai, auferir os ganhos de contrabandista e as vantagens propiciadas por seu relacionamento com os políticos.

Múltipla orfandade
O Eldorado mítico é algo, portanto, que se destrói com a passagem para o relato novelístico. Esse não prolonga o mito pelo que então seria sua... mitificação, senão que, ao contrário, demonstra como à mudança no regime narrativo correspondeu uma múltipla orfandade. Essa só é nomeada pela combinação entre o narrador, que, estróina, não tem a energia acumulativa do avô e do pai, e o conhecimento das transações destes pelo amigo, advogado e amante da poesia, que funciona como o mediador entre o pai e o filho, convertido em quase mendigo.

Relações eróticas
Tal combinação, ademais, sucede entre alguém que se mantém solteiro, o advogado e leitor dos poetas, e o estróina, sufocado por um erotismo que, duas vezes, o põe numa contigüidade extrema quanto ao pai: ainda em criança, ao ser sexualmente iniciado pela índia que presta "serviços" ao patriarca, depois, ao se apaixonar por aquela que, depois de entregar-se a ele, desaparece, refugia-se numa ilha (chamada Eldorado) e de quem o amigo advogado declara não saber se era sua irmã ou amante de seu pai.
Em suma, a destruição do Eldorado mítico interfere diretamente no campo das relações eróticas.
Nada estranha, por isso, que, na procura da mulher amada, o narrador, ao chegar ao local em que provavelmente está ela refugiada, nele encontre, além do "cheiro e o asco dos insetos", apenas a solidão: "Aquele lugar tão bonito, o Eldorado, era habitado pela solidão".


LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor da Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.

ÓRFÃOS DO ELDORADO
Autor:
Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (112 págs.)


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