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Naufrágio
da tradição
Em "Órfãos do Eldorado", Milton Hatoum se afasta da tradição novelesca européia e despreza a abordagem regionalista
LUIZ COSTA LIMA
COLUNISTA DA FOLHA
Por sua configuração
mais curta, a novela
exige um relato sintético. Como, entretanto, fazer com que o
menor espaço narrativo não
prejudique a complexidade do
relato? Nenhuma resposta abstrata é cabível. Só podemos
apontar para casos modelares.
Por exemplo, para o "Órfãos do
Eldorado", o novo livro de Milton Hatoum.
Para o leitor que conheça
seus três romances anteriores
e que ainda não haja lido a recente novela essa poderia parecer a retomada de uma temática de perda e dissipação, tendo
como espaço Manaus e o Amazonas.
A impressão estará correta
desde que o leitor não confunda retomada com repetição. É a
síntese própria da novela que
impõe a diferença. A diferença
será melhor compreendida se
antes formularmos o horizonte
que envolve essa novela e as
obras anteriores.
Em comum, Hatoum despreza a abordagem de tanto prestígio entre nós, fixada entre as
décadas finais do século 19 e as
primeiras do 20: a abordagem
regionalista -uma espécie de
realismo de costumes. Despreza-o para que estabeleça uma
outra deriva entre a narrativa
mítica e a novelesca (abrangendo romance e novela), distinta
daquela que se disseminaria a
partir da Europa sobretudo do
século 18.
Metamorfoses do mito
A tradição novelesca então
constituída tivera como matéria-prima situações do cotidiano, que se impunham sobre o
fantástico e o maravilhoso derivados dos mitos antigos. O regionalismo era uma deriva daquela tradição novelesca por
diferençar o cotidiano de uma
certa área geográfico-cultural.
É bem outro o caminho assumido por Hatoum. Ele se dá de
maneira comparável ao que se
cumpriu tanto no chamado
"realismo mágico" latino-americano como no relato curto
faulkneriano. Daquele se diferencia por ser antes surpreendente do que mágico, deste por
não recorrer a situações escabrosas ou espantosas.
Tais diferenças, contudo, não
impedem que os vejamos como
integrantes de uma família da
qual estão excluídos, por exemplo, Balzac e Flaubert e que exprimem outro modo de transformação da massa mítica.
No caso específico da novela
de Hatoum, as metamorfoses
do mito se cumprem pelas alterações pelas quais passa a lenda
do Eldorado. Miticamente, o
Eldorado de que a novela de
Hatoum se afasta se confunde
com uma cidade submersa e
encantada.
Ele deixa de tematizá-la para
que identifique o Eldorado com
um naufrágio. É certo que, nos
dois casos, o Eldorado é o invisível, o que está fora do alcance
do olhar cotidiano. Mas essa
comunidade de sentido importa apenas para que se confirme
o afastamento quanto à tradição novelesca européia.
Na novelística de Hatoum, o
naufrágio tem uma tríplice dimensão. É do cargueiro assim
chamado, em que se concentrava a riqueza paterna do narrador; nominalmente, é da ilha
para onde foge a órfã amada, de
quem tampouco se sabe se fora
filha ou amante de seu pai; e,
sobretudo, do poder e da riqueza que haviam sido de seu avô e
de seu pai.
A passagem do tempo, concentrando-se o relato na geração do neto, apresenta pois
uma derrocada progressiva. Ela
se consuma com a venda da residência em Vila Bela e a extensa propriedade em área vizinha. O narrador é portanto o
estróina do que fora acumulado
por duas gerações?
Sim, mas não só. Enriquecer
ali significa, como sucedera
com o avô, usufruir do massacre de nativos e caboclos, apossando-se então da área que os
mortos ocupavam e, como o
pai, auferir os ganhos de contrabandista e as vantagens propiciadas por seu relacionamento com os políticos.
Múltipla orfandade
O Eldorado mítico é algo,
portanto, que se destrói com a
passagem para o relato novelístico. Esse não prolonga o mito
pelo que então seria sua... mitificação, senão que, ao contrário, demonstra como à mudança no regime narrativo correspondeu uma múltipla orfandade. Essa só é nomeada pela
combinação entre o narrador,
que, estróina, não tem a energia
acumulativa do avô e do pai, e o
conhecimento das transações
destes pelo amigo, advogado e
amante da poesia, que funciona
como o mediador entre o pai e o
filho, convertido em quase
mendigo.
Relações eróticas
Tal combinação, ademais,
sucede entre alguém que se
mantém solteiro, o advogado e
leitor dos poetas, e o estróina,
sufocado por um erotismo que,
duas vezes, o põe numa contigüidade extrema quanto ao pai:
ainda em criança, ao ser sexualmente iniciado pela índia que
presta "serviços" ao patriarca,
depois, ao se apaixonar por
aquela que, depois de entregar-se a ele, desaparece, refugia-se
numa ilha (chamada Eldorado)
e de quem o amigo advogado
declara não saber se era sua irmã ou amante de seu pai.
Em suma, a destruição do Eldorado mítico interfere diretamente no campo das relações
eróticas.
Nada estranha, por isso, que,
na procura da mulher amada, o
narrador, ao chegar ao local em
que provavelmente está ela refugiada, nele encontre, além do
"cheiro e o asco dos insetos",
apenas a solidão: "Aquele lugar
tão bonito, o Eldorado, era habitado pela solidão".
LUIZ COSTA LIMA é crítico e professor da Universidade do Estado do RJ e da Pontifícia Universidade Católica (RJ). Escreve regularmente
na seção "Autores", do Mais!.
ÓRFÃOS DO ELDORADO
Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (112 págs.)
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