São Paulo, domingo, 06 de maio de 2001

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Leia o trecho inicial de "Crime e Castigo"

Fiódor Dostoiévski

Ao cair da tarde de um início de julho, calor extremo, um jovem deixou o cubículo que subalugava de inquilinos na Travessa S, ganhou a rua e, ar meio indeciso, caminhou a passos lentos em direção à ponte K.
Saiu-se bem, evitando encontrar a senhoria na escada. Seu cubículo ficava bem debaixo do telhado de um alto prédio de cinco andares, e mais parecia um armário que um apartamento. Já a senhoria, de quem ele subalugava o cubículo com cama e mesa, ocupava um apartamento individual um lanço de escada abaixo, e toda vez que ele saía para a rua tinha de lhe passar forçosamente ao lado da cozinha, quase sempre de porta escancarada para a escada. E cada vez que passava ao lado o jovem experimentava uma sensação mórbida e covarde, que o envergonhava e levava a franzir o cenho. Estava encalacrado com a senhoria e temia encontrá-la.
Não é que fosse tão medroso e apagado, antes bem o contrário; mas fazia algum tempo que vivia num estado irritadiço e tenso, parecido com hipocondria. Andava tão absorto e isolado de todos que temia qualquer tipo de encontro, não só com a senhoria. Estava esmagado pela pobreza, e até mesmo o aperto em que vivia deixara de oprimi-lo ultimamente. Abandonara de vez as atividades essenciais e se negava a estudar. No fundo não temia senhoria nenhuma, tramasse lá o que quisesse contra ele. Quanto a parar na escada, ficar ouvindo toda sorte de absurdos sobre todas aquelas bobagens diárias com que ele nada tinha a ver, todas aquelas implicâncias sobre pagamento, aquelas ameaças, aquelas queixas, e ainda ter de esquivar-se, de desculpar-se, de mentir -aí já era demais, melhor seria dar um jeito de esgueirar-se escada abaixo feito gato e sair de banda sem ser notado.
Aliás, ao sair à rua ele mesmo se impressionou com o medo que então sentira de encontrar sua credora.
"Eu aqui querendo me meter numa coisa dessas e com medo de bobagens!" -pensou ele, com um sorriso estranho. "Hum... é... tudo está ao alcance do homem e ele deixa isso tudo escapar só por medo... é mesmo um axioma. Curioso: o que será que as pessoas mais temem...
Pensando bem, eu ando falando pelos cotovelos. É por não fazer nada que falo pelos cotovelos. Ou pode ser assim também: eu falo pelos cotovelos porque não faço nada. Foi nesse último mês que aprendi a matraquear, varando dias e noites deitado num canto pensando... no tempo do rei velho. O que é mesmo que estou indo fazer? Será que tenho capacidade para aquilo? Será que aquilo é sério? Sério coisa nenhuma. Então é para alimentar a fantasia que me distraio: brincadeira! É, vai ver que é brincadeira mesmo!"
Na rua fazia um calor terrível e, para completar, o abafamento, o aperto, cal por toda parte, madeira, tijolo, poeira, e aquele peculiar mau cheiro de verão tão conhecido de cada petersburguense sem condição de alugar uma casa de campo -tudo aquilo afetou de modo súbito e desagradável os já abalados nervos do jovem. O cheiro insuportável das tabernas, especialmente numerosas nesta parte da cidade, e os bêbedos, que apareciam a cada instante, apesar de ser dia útil, completavam o colorido repugnante e triste do quadro. Um sentimento do mais profundo asco esboçou-se por um instante nos contornos delicados do jovem. Aliás ele era de uma beleza admirável, belos olhos escuros, cabelos castanhos escuros, estatura acima da mediana, esbelto, bem constituído. Mas logo caiu numa espécie de meditação profunda, melhor dizendo, numa espécie de esquecimento mesmo, e seguiu adiante já sem notar o ambiente, aliás até sem querer notá-lo. Vez por outra apenas resmungava alguma coisa com seus botões, pelo hábito de monologar que ele mesmo acabara de reconhecer de si para si. No mesmo instante reconheceu que suas idéias às vezes se embaralhavam e que estava muito fraco: já entrara no segundo dia quase sem comer coisíssima nenhuma.

Estava tão mal vestido que outra pessoa, ainda que habituada a tal situação, teria vergonha de sair à rua de dia em semelhantes andrajos. É bem verdade que o quarteirão era um daqueles em que seria difícil ver alguém de terno. A proximidade da Siénnaia, o grande número de certas casas e a população predominante de artesãos e operários de oficinas, amontoada naquelas ruas centrais e travessas de Petersburgo, às vezes matizavam a paisagem geral com tais tipos que seria até estranho alguém admirar-se de encontrar uma figura esquisita. Mas a alma do jovem já havia acumulado tanto desdém raivoso que, apesar de todo o seu melindre, às vezes de gente muito jovem, o que menos o acanhava na rua eram os seus andrajos. Coisa diferente era encontrar outros conhecidos ou seus ex-colegas, que ele nunca gostava de encontrar... Entretanto, quando um bêbado que, não se sabe por que e para onde, estava sendo levado pela rua numa enorme telega, atrelada a um imenso cavalo de carroça, gritou-lhe de repente: "Ei, você aí, chapeleiro alemão!" - e pôs a boca no mundo apontando para ele- o jovem parou de súbito e agarrou-se convulsivamente ao chapéu. Era um chapéu Zimmerman, alto, redondo, mas já todo surrado, inteiramente pardo de tão desbotado, cheio de buracos e manchas, sem abas e com a beira mais feia quebrada para um lado. Contudo não foi a vergonha que se apoderou dele mas um sentimento bem diferente, parecido susto.
"Eu bem que sabia! -resmungava perturbado-, eu bem que sabia! E isso é o mais detestável! Vem uma bobagem qualquer, a coisa mais vulgar do mundo, e pode estragar uma idéia! É, um chapéu que chama atenção demais... Ridículo, e é por isso que chama atenção..." (...)


Tradução de Paulo Bezerra.


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