São Paulo, domingo, 06 de maio de 2001

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De um Dostoiévski a outro

Associated Press
Cena de "Os Karamazovs", balé produzido em Nova York em 1999


Autor russo é representante exemplar da revolução silenciosa chamada literatura

por Jacques Rancière

Em 1936, Josef von Sternberg dirigia "Crime e Castigo". As primeiras imagens do filme mostravam-nos Raskólnikov recebendo de seus mestres diplomas universitários, acompanhados de encorajamentos para um futuro brilhante e alguns preceitos de moral. A câmera transportava-nos em seguida a uma mansarda onde pontificava um retrato de Napoleão, símbolo da grande idéia de Raskólnikov: o direito dos homens superiores de disporem da vida de seus semelhantes para realizar seus grandes projetos. Assim o herói colocava de saída seu ato criminoso sob o signo de um desafio metódico à sociedade.
Em 1991, depois de alguns outros, Alexander Sokurov transpunha o livro para a tela sob o título de "Páginas Ocultas". Mas era para contar-nos uma história bem diferente: um personagem, cuja capa cinzenta mal se destacava do cinza dos canais e dos prédios carcomidos, vagava em espaços mal definidos e desconectados, em meio à mistura indistinta dos corpos e do rumor das vozes. Não mais Napoleão nem teoria, não mais usurária nem machado, o assassinato tendo já se realizado. E o alerta juiz Porfírio transformara-se, ele próprio, em funcionário sonolento. Em troca, um minúsculo episódio do romance, o suicídio de uma mulher num canal, invadia a história na forma de um corpo que se lançava incansavelmente no vão de uma escada.
Diremos apenas que há aí duas maneiras de pôr em imagens o romance de Dostoiévski, mais ou menos fiéis ou diferentemente infiéis a seu texto? Pode-se certamente opor ao roteiro de Sternberg o início do romance. Este nos mostrava Raskólnikov ocupado em preparar um assassinato que nenhuma legitimação precedia, mas somente a obsessão de saber se ele poderia realizá-lo. A teoria do crime permitido só intervinha inicialmente na narrativa sob a forma de uma conversa de bar ouvida casualmente pelo estudante.

Desafio à sociedade O roteiro de Sternberg e o retrato de Napoleão transformavam portanto a intriga, fazendo de Raskólnikov um jovem ambicioso, que lança à maneira de Julien Sorel ou de Rastignac seu desafio à sociedade. Quanto ao resto, o filme seguia bastante fielmente o romance. Já o filme de Sokurov abandona praticamente quase tudo, exceto o confronto com Sônia, para transpor somente a tonalidade onírica da experiência de Raskólnikov, suas errâncias sem objetivo pelas ruas e as alternâncias de torpor e de febre que escandem seu tempo.
Não se pode, porém, remeter simplesmente os dois cineastas à pedra de toque do livro intangível. Não são apenas os cineastas que são diferentes ou os tempos que mudaram. O próprio Dostoiévski mudou. Sternberg filmava um "Crime e Castigo" de 60 anos atrás, uma intriga causal à maneira clássica: um conflito de vontades entre um jovem ambicioso, representante de tempos agitados, e um juiz diabólico. Sokurov filma um "Crime e Castigo" sem assassinato, confissão nem condenação, em que o antagonismo das vontades e das posições -assassino e vítima, juiz e culpado- é reduzido a uma igualdade fundamental do querer e do não-querer, da atividade febril e da passividade sonolenta. Seu Dostoiévski é um escritor de pequenas percepções e de páginas soltas, um contemporâneo não mais de Stendhal, mas de Faulkner.
Outros sintomas dessa mudança poderiam ser assinalados. Recentemente, um jovem filósofo francês, Michel Eltchaninoff, defendia uma tese sobre Dostoiévski. Os filósofos, na verdade, pouco haviam se interessado por ele desde uma certa época, a de Camus, a do "Homem Revoltado" e do existencialismo. Dostoiévski ocupava então um lugar de destaque na cena filosófica. Cena de uma certa filosofia preocupada em saber se a existência de Deus era compatível com o mal e o sofrimento, que consequência tinha para o homem a morte de Deus e se a liberdade do homem podia se realizar de outro modo que não no absurdo ou no terror.
O Dostoiévski dos filósofos, então, era o pai dos raciocínios de Ivan Karamazov e de Kirilov. Mas o autor da tese mencionada ocupava-se, inicialmente, não em julgar o sentido da lenda do grande Inquisidor, mas em definir seu estatuto poético e de linguagem, não com as motivações filosóficas do suicídio de Kirilov, mas com o corpo de Kirilov, esse corpo bizarro que Dostoiévski nos mostra absorvido num jogo de bola com um menino ou na contemplação de uma folha. A tese, de fato, não se ocupava nem do mal nem da liberdade, mas da corporeidade em Dostoiévski.
Dostoiévski mudou. E as novas traduções que restituem um verdor à sua linguagem ou uma desordem à sua sintaxe testemunham essa mudança. O escritor rabelaisiano de Bakhtin suplantou o filósofo de Chestov ou de Berdiaeff. Mas não se trata aí de uma simples questão de "recepção" segundo contextos e épocas diferentes. Um autor só é objeto de recepções diferentes na medida de sua própria heterogeneidade. Tanto o Dostoiévski de Camus quanto o de Bakhtin, tanto o de Sternberg quanto o de Sokurov, estão em "Crime e Castigo". E não simplesmente um ao lado do outro.
O texto é antes o lugar de sua comutabilidade. Todo o livro, com efeito, não é senão uma longa demonstração da equivalência, da indiscernibilidade de duas lógicas. O jovem estudante que quer matar para aplicar uma teoria abstrata e o vagabundo que, entre dois sonos, mata como que em sonho ou sob o efeito de uma vertigem são uma única e mesma pessoa. E toda a história poderia ser apenas um sonho de Raskólnikov.
Mesmo a implacável maquinação de Porfírio não é senão a aplicação estrita de um princípio de indecidibilidade. Porfírio, o juiz de instrução, o homem cuja razão de ser é atribuir aos fatos suas causas materiais e as intenções que os produziram, é também aquele que sabe que o crime é um efeito sem razão necessária, que uma intenção não produz um crime. O que o produz é a febre do sangue, a vertigem do possível, o encadeamento febril das pequenas ações e das pequenas percepções, encadeamento que jamais produz uma razão suficiente.
Nenhum fato jamais confundirá Raskólnikov, não demonstrará a ligação irrecusável de sua vontade assassina e do assassinato cometido. Nenhum fato terá inclusive mais força que o desejo ilógico de ser culpado que fez confessar o pintor inocente. O que poderá fazer Raskólnikov confessar é somente a mesma febre que produziu o ato, assim como produziu seus passeios errantes, suas fantasias ou seus gestos magnânimos para com a família Marmieládov ou a uma passante qualquer. A idéia que "faz agir" Raskólnikov é feita apenas de intensidades nômades, de febres, impulsos e acasos.
Porfírio, que "deixa vir", é então bem mais que um estrategista astucioso. Ele é o irmão desse escritor que dá aos grandes impulsos da vontade e às grandes questões da sociedade nem mais nem menos importância que aos sonhos de enfermos, às conversas de bêbados ou às disputas de duas mulheres pobres sobre a dignidade de sua família. Enquanto o primeiro espera sua presa, o segundo estende-se sobre a morte trágico-grotesca da mãe de Sônia, cantando -"noblesse oblige"- uma romança alemã em meio aos netos ainda vestidos com as roupas ridículas que ela lhes pusera para levá-los a testemunhar, cantando nas ruas, o destino lamentável de uma família "aristocrática". Em contrapartida, ele resumirá em duas linhas o episódio indefinidamente esperado e retardado da confissão. Mais estranhamente ainda, deixará desaparecer por um tempo seu herói para acompanhar o fim de Svidrigáilov que, pouco antes da decisão de Raskólnikov, se põe a invadir a cena e a desviar uma narrativa até então inteiramente conduzida do ponto de vista do que Raskólnikov via ou do que lhe era relatado.
Uma notável complementaridade une assim o juiz e o escritor. O juiz "maquiavélico" é aquele que sabe a inconsistência de todo maquiavelismo, quando verificou que o "pensamento" que governa os atos não obedece mais, jamais obedeceu, ao modelo da decisão dos soberanos. E o escritor "rapsódico" é o escritor consciente da lógica dos encadeamentos páticos que derrota toda a psicologia das razões do ato e todo o encadeamento aristotélico das peripécias e dos reconhecimentos.
Essa derrota das causas, dirão que ela cumpre exatamente a função da Providência e da Graça. Mas ela também ajusta a Providência e a Graça à nova lógica estatística dos acasos. E a demonstração do crente Dostoiévski, fazendo seus heróis passarem bruscamente do teatro da vontade ao drama da ressurreição, não é, no fundo, diferente da do descrente Flaubert, que identifica o nascimento de um amor no acaso de um turbilhão de poeira ou na fixação de um olhar nas unhas ou no aro esmaltado de um monóculo. Não é diferente da de Balzac, que identifica a vontade a uma doença, ou da de Tolstói, que mostra a bela estratégia dos generais derrotada pelo arrebatamento de um cavaleiro ou pela propagação de um clamor de entusiasmo ou de medo igualmente ilógicos. Essas intrigas coincidem, elas próprias, com essa nova maneira de praticar a arte da escrita que se chama literatura e que se manifesta na igualdade dos episódios importantes ou "insignificantes", sonhados ou reais, num ritmo feito de estiramentos indefinidos ou de acelerações fulminantes.
Essa maneira nova, convém lembrar que um homem de letras, também há algumas dezenas de anos, a estigmatizou e viu em Dostoiévski, juntamente com Balzac ou Proust, sua encarnação exemplar. No prefácio de "A Invenção de Morel", Borges criticava essas histórias mal costuradas e sua inverossímil psicologia, às quais opunha a bela lógica das histórias de enigmas como "A Imagem no Tapete" ou "A Invenção de Morel". E, de fato, a "psicologia" de "Crime e Castigo" é a ruína da impecável ciência do encadeamento dos pensamentos e das ações que sustenta a tragédia clássica, praticamente só servindo a Dostoiévski para enviar aos trabalhos forçados o inocente Dmitri Karamazov. Do mesmo modo, sua narração arruína a lógica do encadeamento necessário ou verossímil das ações que Aristóteles opunha à desordem empírica da vida.
As narrativas de enigmas de Borges pretendem preservar essa bela ordem, com o risco de fazer de cada intriga não mais que sua alegorização infinita. Os "labirintos" desse homem da ordem talvez só sejam feitos para exorcizar labirintos bem mais temíveis. Com Balzac ou Dostoiévski, antes de virem Proust ou Faulkner, Svevo ou Virginia Wolf, a arte de escrever esposou, de fato, a causa dessa ordem igual à desordem, dessa razão idêntica à desrazão, ou dessa atividade igual à passividade que se chama agora a vida.
Os enfoques da história do cinema aqui evocados ajudam-nos a compreender melhor, hoje, a lógica dessa revolução silenciosa chamada literatura, da qual Dostoiévski, antes de ser o campeão dessa ou daquela idéia, é um representante exemplar.

Jacques Rancière é professor da Universidade de Paris 8 (França) e autor de "O Dissenso" e "O Desentendimento" (Ed. 34), entre outros. Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Neves.



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