São Paulo, domingo, 06 de maio de 2007

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+ Cultura

Vitória dos mangás

Hegemonia americana no imaginário coletivo sofre revés após GM perder a liderança do setor para a Toyota

BEATRIZ RESENDE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nas últimas semanas, os jornais que costumo usar para forrar a gaiola dos periquitos, justamente aqueles que prevêem o destino da economia mundial, a situação do império e de suas colônias, o valor do dólar e outras questões de menos importância, chamaram minha atenção pela narrativa de curioso combate.
Na histórica semana de 24/4/2007, a Toyota Motor Corporation, com sede em Toyota, próximo a Nagoya, na região central do Japão, superou em vendas a General Motors Corporation, montadora americana, uma transnacional com sede em Detroit, EUA. Não sei bem por que, mas sorri. Soava como a vitória dos mangás!
Exercendo minha atuação como especialista em generalidades, ocupação a que me dedico em certos fins de semana, comecei a desenvolver ilações de tal fato inédito. Se conhecesse pessoalmente Toni Negri e Michael Hardt, os autores da importante reflexão sobre a nova ordem política da globalização publicada no volume "Império" [ed. Record], gostaria de ter ligado para eles -pelo Skype, é claro.
Como não os conheço, fiquei mesmo conversando com o velcro de minha blusa.
Na continuação das notícias sobre o tema, fiquei sabendo das férias coletivas e possíveis demissões na GM do Brasil e do sistema projetado pela Toyota para impedir motoristas embriagados de dirigir. O mais interessante, para meu repertório, foi mesmo o aprofundamento do sentido do termo "toyotismo": forma de produção em times pequenos, com um líder, visando a evitar todo tipo de desperdício.

Tempos modernos
Ou seja, o famoso "fordismo" já era. Lembra-se de Charles Chaplin em "Tempos Modernos" e a anomia da cadeia de produção, mecanizando os movimentos do operário?
Pois foi a partir da cena emblemática que o imaginário americano surgiu diante de mim, de Chaplin a Ridley Scott até chegar ao recente "300", filme de Zack Snyder, realizado a partir dos quadrinhos de Frank Miller em que nosso Rodrigo Santoro tem seu belo rosto colado a um corpo poderoso, criado em computadores, o do estrangeiro.
O que isso tudo tem a ver? Não me parece difícil juntar as partes desse videogame.
GM significa carros, aço, riqueza abundante, desperdício. Automóveis, velocidade, auto-estradas são ícones do modernismo americano, mas não só deles. Se os carros forem grandes, poderosos e velozes, farão com que nos aproximemos mais do imaginário americano veiculado por muitos anos.
Chegamos então ao excelente "Thelma Louise", realizado por Ridley Scott em 1991.
Numa espécie de "road movie" feminista, as duas heroínas tentam fugir da mesmice e do autoritarismo masculino atravessando o país num velho Thunderbird conversível. Ao poder do aço dos automóveis junta-se outro inevitável ícone no machismo americano: as armas.
Mais longo que a pistola, o fuzil. Mais fálico, mais americano, mais destruidor. Só restará às duas jovens pisar no acelerador e atirar-se num precipício. Thelma diz: "Não vão nos pegar". Louise pergunta: "Tem certeza?" Thelma responde: "Vamos nessa!"
A única liberdade possível é o abismo à frente delas.

Choque
Já "300" é tão divertido quanto politicamente incorreto. O gênio de Frank Miller inspira os vermelhos, o sangue respingando até no espectador. O aleijado é traidor, a mulher troca seu corpo por favores, os estrangeiros não prestam. Os covardes inimigos persas são iranianos hoje.
Na vida real, é claro, protestaram contra o filme, mas é tudo ficção, quadrinhos, filme.
Esparta, fundamento da civilização ocidental, é um espaço de guerras sanguinárias. O ideal da democracia grega tem como intérprete um político corrupto. Esse é o berço de nossa civilização, de nossos valores, de nossas tragédias.
A guerra terrível iniciada por 300 guerreiros conduzidos por um líder autoritário e enlouquecido pelo cheiro do sangue (muito vermelho) na verdade é um excesso de cabeças cortadas e, sobretudo, muito metal em choque: escudos, lanças e espadas, tão fálicas, ou mais, quanto os rifles contemporâneos.

Manobra
Espadas, lanças, rifles. Carros, carruagens, veículos em velocidade. Se acrescentarmos o hambúrguer do McDonald"s, quase todo o imaginário americano estereotipado estará aí identificado, insuflando a imaginação de jovens universitários, americanos ou asiáticos.
É aquele mesmo imaginário contra o qual alguns intelectuais, artistas, professores universitários e líderes dos movimentos sociais vêm se batendo desde os anos 1960/70.
Feministas, gays, negros, críticos da cultura, seguidores de Arthur Miller [dramaturgo, 1915-2005], Basquiat [artista plástico, 1960-88] e de performers diversos.
Vários deles apontados como excêntricos pelos vizinhos por terem a estranha mania de comprar carros japoneses: menores, fáceis de manobrar, mas desprovidos do importante ícone americano: GM.


BEATRIZ RESENDE é professora da Escola de Teatro da Unirio e autora de "Apontamentos de Crítica Cultural" (ed. Aeroplano).


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