São Paulo, domingo, 06 de maio de 2007

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Clima pesado

MIKE DAVIS
O urso polar flutuando em sua placa de gelo cada vez menor se tornou um ícone urgente do aquecimento global e das alterações climáticas descontroladas.
Mesmo o ocupante da Casa Branca, que parece acreditar na teoria de que a terra é chata, agora reconhece que os magníficos ursos podem estar condenados à extinção à medida que o gelo oceânico se derrete e o Ártico se torna um mar aberto pela primeira vez em milhões de anos.
A "grande experiência geofísica" da humanidade, como o oceanógrafo Roger Revelle há muito tempo caracterizou a curva cada vez mais acentuada de alta nas emissões de dióxido de carbono, extirpou as raízes holocênicas da natureza nas regiões em torno do pólo. Mas o Ártico não é o único cenário de alterações climáticas espetaculares e inequívocas, e os ursos polares não são os únicos arautos de uma nova era de caos.
Considerem-se, por exemplo, alguns dos parentes mais distantes do Ursus maritimus: os ursos pretos, que se alimentam alegre, mas ominosamente, nas montanhas Chisos, parte do parque nacional Big Bend, no Texas.
Eles podem ser mensageiros de uma transformação ambiental nas terras fronteiriças norte-americanas que terá impacto quase tão radical quanto as que vêm acontecendo no Alasca ou na Groenlândia.
Em uma caminhada até o monte Emory, em uma manhã incomumente quente de janeiro de 2002, com minha mente ainda ocupada pelas imagens apocalípticas do setembro anterior, fiz amizade, ainda que um pouco distante, com um urso jovem e brincalhão, em um acampamento à beira da trilha.
Urso imigrante
Aparições de ursos sempre têm algo de mágico, e presumi que o encontro fosse uma afirmação da presença de terras selvagens intocadas.
Na verdade, fiquei surpreso quando me foi informado por um guarda do parque, no dia seguinte, que o jovem urso era, tecnicamente, um mojado -filho de imigrantes recentes e não documentados oriundos do lado de lá do rio Grande.
Os ursos pretos sempre foram comuns nas montanhas Chisos, quando elas serviam como reduto quase mítico aos apaches mescaleros e aos comanches que atacavam os colonos nos séculos 17 e 18, mas os fazendeiros os caçaram sem piedade, e a espécie se extinguiu na região mais ou menos no começo do século 20.
Depois, de maneira quase miraculosa, no início da década de 1980, os ursos reapareceram em meio aos madrones e pinheiros do monte Emory.
Os biólogos especializados em fauna, atônitos, desenvolveram a hipótese de que eles teriam migrado da Sierra del Carmen, em Coahuila, no México, atravessado o rio Grande a nado e cruzado cerca de 65 quilômetros de deserto escaldante para chegar à região de Chisos, terra prometida ocupada por cervos dóceis e lixo abundante.
Como os leopardos que se restabeleceram nas montanhas fronteiriças do Arizona nos últimos anos ou, aliás, os chupacabras sugadores de sangue do folclore que supostamente foram avistados em subúrbios de Los Angeles, os ursos pretos são parte de uma migração épica, tanto da fauna quanto de pessoas.
Ainda que ninguém saiba exatamente por que os ursos, os felinos de grande porte e os lendários vampiros estão se transferindo para o norte, uma hipótese plausível é a de que estão ajustando seus alcances e populações ao novo reino da seca no norte do México e sudoeste dos EUA.
No que diz respeito aos seres humanos, o caso é mais fácil de acompanhar.
Pequenos ranchos e cidades quase desertas nos Estados mexicanos de Coahuila, Chihuahua e Sonora são prova da sucessão incansável de anos secos -começando nos anos 80, mas assumindo intensidade verdadeiramente catastrófica no final da década passada-, que forçou centenas de milhares de camponeses pobres a encontrar empregos de salários miseráveis nas fábricas de Ciudad Juárez, no México, e nos bairros latinos de Los Angeles.
Em determinados anos, uma "seca excepcional" tomou toda a região das planícies norte-americanas, do Canadá ao México.
Seca persistente
Em outros anos, conflagrações rubras nos mapas meteorológicos desceram pela costa do Golfo do México, na Louisiana, e cruzaram as Montanhas Rochosas em direção ao interior dos Estados Unidos, na região Noroeste.
Mas os epicentros quase permanentes da seca continuaram a ser as bacias dos rios Colorado e Grande e o norte do México.
Em 2003, por exemplo, o lago Powell registrava queda de quase 2,5 metros em seu nível de água nos três anos precedentes, e as cruciais represas ao longo do rio Grande eram pouco mais que poças de lama. O inverno de 2005/6 na região Sudoeste, enquanto isso, foi um dos mais secos já registrados, e a cidade de Phoenix, no Arizona, passou 143 dias sem uma gota de chuva.
As raras interrupções da seca, como a monção diluviana do final do verão (partes de El Paso receberam incríveis precipitações da ordem de 75 centímetros), foram insuficientes para reabastecer os aqüíferos e as represas, e em 2006 tanto Arizona quanto Texas reportaram as piores perdas de safras e gado -devido à seca- em suas histórias (um prejuízo total acumulado de quase US$ 7 bilhões).
A seca persistente, como o gelo em derretimento, reorganiza ecossistemas e transforma paisagens inteiras.
Sem umidade suficiente para produzir seiva protetora, milhões de hectares de pinheiros foram devastados por pragas de besouros devoradores de cascas; as florestas mortas, por sua vez, ajudaram a alimentar os incêndios florestais que se expandiram até atingir os subúrbios de Los Angeles, San Diego, Phoenix e Denver e destruíram parte de Los Alamos.
No Texas, as planícies gramadas também queimaram -cerca de 800 mil hectares apenas em 2006-, e, à medida que a terra fértil que forma a camada superior do solo é varrida para longe, as pradarias voltam à condição de deserto.
Alguns estudiosos do clima não hesitam em classificar o fenômeno como uma "mega-seca", até mesmo como "a pior em 500 anos". Outros mostram mais cautela e não estão certos, até agora, se a aridez atual do oeste dos Estados Unidos supera marcos de crise como os anos 1930 (o chamado cinturão da poeira nas planícies do sul) e a devastadora seca do sudoeste nos anos 50.
Mas é possível que não haja mais motivo para debater. As pesquisas mais recentes e abrangentes constatam que a "vermelhidão noturna do oeste" (para invocar o portentoso subtítulo do romance "Blood Meridian" [Meridiano de Sangue], de Cormac McCarthy), não é apenas episódica. A seca representa o novo "clima normal" da região.
Em depoimento chocante ao Conselho Nacional de Pesquisa, em dezembro do ano passado, Richard Seager, geofísico sênior no Observatório Terrestre Lamont Dohey, da Universidade Colúmbia, alertou que as principais projeções quanto ao clima mundial estavam todas resultando em modelos semelhantes nos supercomputadores dos cientistas: "De acordo com os modelos, um clima semelhante ao da grande seca dos anos 50 se tornará o clima dominante no sudoeste dentro de alguns anos a algumas décadas".
Rancho de areia
Essa previsão extraordinária -"a iminente seca perene do sudoeste dos Estados Unidos"- é um subproduto de um esforço monumental de computação montado por 19 grupos de modelagem do clima (entre os quais as organizações mais conhecidas desse ramo, localizadas em Boulder, Princeton, Exeter e Hamburgo) para o quarto relatório de avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC).
O IPCC, evidentemente, representa a "suprema corte" da ciência do clima. Estabelecido em 1988 pela ONU e pela Organização Mundial de Meteorologia, seu objetivo é pesquisar o aquecimento global e seu impacto.
Ainda que o presidente George W. Bush agora aceite relutantemente a avaliação do IPCC de que o Ártico está derretendo rapidamente, ele provavelmente ainda não registrou a possibilidade de que seu rancho texano em Crawford um dia possa se transformar em duna de areia.
Os cientistas do clima que estudam os anéis de troncos de árvores e arquivos naturais comparáveis há muito tempo estão cientes de que o Acordo do Rio Colorado, assinado em 1922 para alocar água aos oásis cada vez mais urbanizados do sudoeste norte-americano, se baseia em um estudo sobre período de 22 anos de fluxo do rio (1899-1921) e que o período, longe de representar uma média histórica do volume de água daquele sistema fluvial, na verdade foi uma era anômala e registrou a mais elevada umidade em 450 anos.
Mais recentemente, eles começaram a compreender de que maneira as persistentes Las Niñas (episódios de frio no leste equatorial do oceano Pacífico) interagem com os períodos de calor no Atlântico Norte subtropical para gerar secas -que podem durar décadas- na regiões das planícies e no sudoeste.
Mas, como Seager enfatizou em Washington, as simulações do IPCC apontam para algo de muito diferente dos episódios áridos catalogados no Atlas da Seca na América do Norte, do observatório Lamont. Inesperadamente, o que está mudando é o clima básico em si, e não apenas suas perturbações.
Além disso, essa transição abrupta para um clima novo e mais extremo deriva não de flutuações nas temperaturas oceânicas, mas de "mudanças nos padrões de circulação atmosférica e transporte de vapor d"água que surgem como conseqüência do aquecimento da atmosfera".
Em resumo, as terras secas se tornarão mais áridas, e as terras úmidas, mais molhadas. E o ressecamento do oeste dos EUA será acompanhado por um calor de fornalha. O relatório do IPCC inclui uma previsão chocante: as temperaturas na região subirão em média cinco graus centígrados até o final do século.
Os eventos Las Niñas, acrescentou Seager, continuarão a influenciar o nível de precipitação nas terras fronteiriças, mas, com base em uma fundação mais árida, podem gerar o pior pesadelo do oeste: secas em escala de catástrofes medievais como as que contribuíram para o colapso das sofisticadas sociedades dos anasazis no cânion Chaco e em Mesa Verde, no século 12.
Para tornar ainda piores as más notícias dos supercomputadores, mais aridez é também prevista para boa parte do Mediterrâneo e Oriente Próximo, onde secas épicas são sinônimo histórico de guerras, deslocamento populacional e etnocídio.
Mas uma série de pronunciamentos científicos, ainda que representem a conclusão unânime de 19 modelos climáticos, não deve causar muito abalo nas pistas de golfe localizadas no subúrbios de Phoenix, onde estilos de vida luxuosos resultam em consumo de água da ordem de 1.500 litros por pessoa/dia.
E tampouco impedirá que as escavadeiras continuem abrindo terreno para os monstruosos subúrbios de Las Vegas (onde 160 mil casas novas estão planejadas), estendendo-se até Kingsman, no Arizona.
E o alerta tampouco deve impedir que a população do Texas dobre daqui até 2040, apesar do possível esgotamento do aqüífero Ogallala, que se estende por sob oito Estados da região das grandes planícies.

Slogans vazios
A despeito de muitos slogans recentes sobre "crescimento inteligente" e uso inteligente da água, as incorporadoras imobiliárias que operam no deserto continuam a criar subúrbios do mesmo modelo burro, ambientalmente ineficiente, que prejudica o sul da Califórnia há décadas.
O trunfo dos defensores da livre iniciativa no sudoeste, além disso, é o fato de que a maior parte da água disponível nos sistemas fluviais dos rios Colorado e Grande é ainda dedicada à irrigação agrícola.
Mesmo que o "pico das águas" tenha chegado e partido, a expansão imobiliária no deserto poderia se sustentar, em médio prazo, pela eliminação das lavouras de algodão e alfafa, enquanto os grandes agricultores se manteriam ricos vendendo seus direitos sobre a água subsidiados pelo governo federal aos subúrbios urbanos sedentos.
Um protótipo dessa reestruturação já pode ser visto no Vale Imperial, da Califórnia, região que tem recebido forte atenção de San Diego no que tange à aquisição de direitos sobre a água. Como resultado, um passageiro atento de avião já começa a perceber a presença cada vez maior, nos últimos tempos, de campos sem cultivo, em meio às plantações de alfafa e melões que caracterizam a região.
Uma solução mais futurista seria a opção "saudita". Steve Erie, professor da Universidade da Califórnia, em San Diego, que escreveu extensamente sobre a política de água no sul da Califórnia, disse que os incorporadores de imóveis no deserto no sudoeste e na baixa Califórnia confiam em que podem manter a população abastecida por meio da dessalinização da água marinha.
"O novo mantra das agências de água, evidentemente, é incentivar a conservação e a recuperação, mas os incorporadores gananciosos estão lançando olhares cobiçosos ao Pacífico, pensando na alquimia da dessalinização, apesar de suas conseqüências ambientais perniciosas."
De qualquer modo, diz Erie, os mercados e políticos continuarão a votar na suburbanização descontrolada e de alto impacto que pavimenta e comercializa milhares de quilômetros quadrados na frágil ecologia dos desertos de Mojave, Sonora e Chihuahua.
À medida que o preço da água aumenta, o ônus do ajuste ao novo regime climático e hidrológico cairá sobre grupos subalternos, como trabalhadores rurais (empregos ameaçados pela transferência de água), pobres urbanos, agricultores de baixa produção (entre os quais muitos indígenas americanos) e, especialmente, as populações rurais do norte do México, que já estão em risco.
De fato, o fim da era da água barata no sudoeste -especialmente porque pode coincidir com o fim da era da energia barata- acentuará os graus já elevados de desigualdade racial e de classe na região e levará mais imigrantes a apostarem contra a morte em perigosas travessias dos desertos fronteiriços.
Aliás, não é preciso muita imaginação para adivinhar o futuro grito de guerra das milícias: "Eles vêm roubar nossa água!".
Como aponta Jared Diamond no recente "Colapso" [Ed. Record], os antigos anasazis não sucumbiram apenas à seca mas ao impacto da aridez inesperada sobre uma terra explorada em excesso e habitada por pessoas despreparadas para fazer sacrifícios no quanto a seu "dispendioso estilo de vida".
Em última instância, eles preferiram devorar uns aos outros.


Este texto foi publicado na Nation.Tradução de Paulo Migliacci.


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