São Paulo, domingo, 06 de maio de 2007

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+ Religião

A câmera benta

Mais tradicional TV católica do país, Rede Vida tenta superar resistência do mercado publicitário com a venda de cruzes e terço; pico de audiência foi com jogo de futebol

IVAN FINOTTI
EDITOR DO FOLHATEEN

À primeira vista, é uma emissora como qualquer outra. Ilhas de edição, caminhões para fazer links diretos e gigantescas câmeras beta. Estúdios refrigerados, computadores de tela plana e enormes corredores cinza.
Mas, diferentemente de outras emissoras, nessa, quando o dono e presidente, João Monteiro de Barros Filho, sai apressado de sua sala, ele não está indo a uma reunião com algum anunciante, mas, sim, se dirigindo à capela que fica no primeiro subsolo e onde, ao lado de duas faxineiras e um técnico de som, vai acompanhar a missa das 11h30 que acontece todos os dias ali, especialmente para os empregados da Rede Vida de Televisão.
"A missa para funcionários é para quem pode e para quem quer. Ninguém é obrigado a participar", explica Barros Filho, um senhor afável de 68 anos, filho de um peão de boiadeiro da região de Barretos, no interior de São Paulo, e fundador da Rede Vida, em 1995.
A capela para 14 pessoas não se compara ao santuário de 800 metros quadrados que a emissora tem em sua sede em São José do Rio Preto (SP), de onde transmite missas ao vivo.
É de lá que a Rede Vida, a mais tradicional TV católica em atividade, gera imagens para suas 431 retransmissoras, cobrindo cerca de 70% da população brasileira.

Programação
À primeira vista, é uma emissora como qualquer outra.
Em sua programação há infantis com uma bela loira ("Hora de Brincar"), jornais em três edições ("JCTV") e programas de entrevistas ("Tribuna Independente"). Em sua programação há horário político, educativos ("Telecurso 2000") e até futebol (séries A-2 e A-3 do Campeonato Paulista aos sábados e domingos).
Mas lá todas essas atrações são intercaladas por programetes de cinco, dez ou 20 minutos, chamados "O Terço", "O Pão Nosso", "Momento de Fé", "Momentos de Reflexão", "Encontro com Cristo", "Alegria e Esperança", "O Santo do Dia" e "Mãe Maria".
Há alguns mistérios na Rede Vida, e um deles é o tal jornal em três edições, o "JCTV". Ninguém sabe o que significa a sigla, nem a direção da empresa.
"É de propósito. Alguns acham que significa "Jesus Cristo TV'; para outros, é "Jornal Cristão TV'; e ainda há quem aposte em "Jornal Católico TV". No fim, todos comentam", explica João Monteiro de Barros Neto, filho de Barros Filho e jornalista responsável pela emissora.
Outro mistério da rede cristã é que, apesar de 12 anos de programação com valores morais, voltada à família -e picos de um ponto no Ibope-, foi num domingo com a final do campeonato de juniores que a emissora atingiu seu recorde histórico de audiência: cinco pontos. "Estávamos no lugar certo na hora certa", resume Barros Neto, 45.

Publicidade
À primeira vista, é uma emissora como outra qualquer. Os donos dão ordens sorrindo, os chefes as recebem sérios e os repórteres as executam sem nenhuma expressão. Reuniões da direção a portas fechadas, secretárias falando baixinho e altas preocupações com a venda de espaço para anunciantes.
Monteiro de Barros Neto é o homem que dá ordens por ali. Às suas costas, dezenas de imagens cristãs, de papas e de cristos, o ajudam a cuidar das relações institucionais, da geração via satélite, da parte comercial.
Seu irmão, Luiz Antônio, 46, se preocupa mais com a programação da emissora e apresenta o telejornal das siglas.
Ambos estão, obviamente, empolgados com a visita do papa Bento 16.
Quando João Paulo 2ø visitou o Brasil em 1997, a rede tinha apenas dois anos, mas fez grande diferença, na opinião deles.
"As grandes redes não mexeram com a programação, devido a compromissos comerciais. A Rede Vida mexeu tudo. Todas as ações do papa foram cobertas. E crescemos muito nesses dez anos. Faremos ainda melhor agora. Quando não houver imagem ao vivo, teremos mesas-redondas, jornalismo, reportagens especiais", conta Monteiro Neto.
O problema é a decepção com o mercado. Barros Neto está muito, mas muito mesmo, decepcionado com o que julga uma covardia.
"O mercado publicitário cometeu uma covardia conosco. Vamos ter grande audiência -e muito qualificada. Mas o mercado aproveitou para tirar vantagem. Muitos departamentos de marketing e agências de publicidade investem nas coberturas da vinda do papa das outras emissoras, mas não na Rede Vida. Parece que não querem ter nomes vinculados à Igreja Católica, mas ao mesmo tempo fazem uso do papa para vender seus produtos. Sem dúvida foi decepcionante para nós."
Desde o ano passado, o departamento comercial da Rede Vida busca anunciantes para a visita de Bento 16. A equipe desenvolveu a frase "Brasil mais Bento" e a espalhou pela programação, inclusive renomeando a última edição do jornal, diariamente às 21h30, para "JCTV - Brasil Mais Bento".
Entretanto, segundo Monteiro Neto, o faturamento de R$ 3 milhões mensais não vai se alterar em nem um centavo.
"A morte do papa João Paulo 2ø", continua, "gerou uma audiência enorme para as redes comerciais. O padre Marcelo Rossi começou aqui e ainda apresenta um programa matutino para nós. Mas existe essa hipocrisia do mercado publicitário".

Comercial
Como se vê, exatamente como acontece em qualquer outra emissora, a direção nunca está satisfeita com os anunciantes. E, da mesma forma, como em qualquer outra emissora, ali também há espaço para a venda de produtos por telefone.
Mas não são o George Foreman Grill ou as facas Ginsu as estrelas da programação "ligue djá".
Na Rede Vida, o que se vende é a cruz da paz da Terra Santa, uma cruz de 3,9 cm por 2,4 cm, folheada a ouro 24 quilates, que tem dois vidrinhos acoplados: em um, o fiel carrega terra de Belém, local de nascimento de Jesus Cristo; no outro, água do rio Jordão, onde foi batizado. Custa R$ 99 e vem com uma exclusiva caixinha de madeira para armazenamento.
Mas não ligue ainda porque, se você comprar duas cruzes da paz, ganhará um terço de madeira genuína de oliveira.
E não é só isso: com as duas cruzes e o terço, você receberá inteiramente grátis uma medalha folheada a ouro do frei Galvão. Tem mais: uma linda capelinha da mãe peregrina com a bênção do padre Antônio Maria.
E, finalmente, será presenteado com um pôster exclusivo do papa Bento 16, com o mote "Brasil mais Bento" e o logotipo da Rede Vida.

Jornalismo
À primeira vista, é uma emissora como qualquer outra. Repórteres vestidas de terninho, cameramen buscando o melhor ângulo e iluminadores mudos.
Alguns católicos praticantes, outros mais ou menos e todos pensando bastante antes de responder a essa pergunta capciosa.
Mas, diferentemente de outras emissoras, nessa, quando um repórter vai dizer que um padre rezou uma missa, precisa dizer "celebrou" uma missa.
Quando um cameraman grava imagens de uma consagração, deve tomar muito cuidado com as imagens da consagração, porque o ato de comer a hóstia e beber o vinho não podem ser exibidos senão ao vivo.
E, quando o editor vai colocar os caracteres que aparecem embaixo das pessoas na tela, ele deve consultar o livro da CNBB para saber exatamente se o entrevistado é padre, bispo, arcebispo ou cardeal.
As repórteres Andréa Bonatelli, Luciana Martins e Renata Lima fazem parte do reforço que a capital ganhou para a cobertura da visita do papa: os habituais 20 funcionários envolvidos na produção de programas em São Paulo ganharam um reforço de mais 30. Já Renata Lima, 28, veio de Belo Horizonte, de onde a católica TV Horizonte estabeleceu uma parceria com a Rede Vida.
Para ela, que acaba de chegar a São Paulo, as TVs católicas se diferenciam por apresentarem boas notícias. "São notícias que não entrariam em outras emissoras, que preferem privilegiar o sangue e a tragédia", diz Renata.
As outras duas jornalistas vieram da sede, onde costumam apresentar programas.
Em São Paulo, Luciana, 32, já fez reportagens na posse de dom Odilo Scherer como arcebispo de São Paulo, no ensaio das mil vozes do Coral Frei Galvão e até entrevistou a nutricionista que vai chefiar o cardápio do papa em Aparecida.
"Ela disse que será bem tropical, com muitas frutas, mas não revelou mais detalhes", conta Luciana, que teve formação católica, mas não costuma mais freqüentar missas.
Já sua amiga Andréa, 34, sempre que chega à sede da TV, em São José, dá uma passadinha no santuário para orar: "Agradeço e peço que o trabalho progrida naquele dia".
Para ela, "a maior diferença entre essa e as outras emissoras é a adequação da linguagem".
A linguagem é mesmo coisa séria em qualquer outra emissora de televisão.
Mas ali, na Rede Vida, é coisa mais séria ainda. Certa vez, quando o repórter Paulo Jr. foi entrevistar um bispo e chamou-o de "bispo Gil", foi imediatamente corrigido.
O religioso ensinou: "É bispo dom Gil, porque senão fica parecido com o daquela outra igreja...". Deus nos livre.


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