São Paulo, domingo, 06 de maio de 2007

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+ Política

A crença UNIVERSAL

O filósofo francês Bernard-Henri Lévy, que profere palestra em Porto Alegre depois de amanhã, diz que o anti- americanismo é a verdadeira religião no mundo de hoje


MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

Para o filósofo francês Bernard-Henri Lévy, é claro o crescimento do fundamentalismo religioso nos EUA.
Mas ele rejeita a associação do fundamentalismo neoprotestante -que julga débil- com o fundamentalismo muçulmano, que classifica de totalitário.
Em entrevista à Folha, o pensador-celebridade defende a vitalidade da democracia americana, comenta o crescimento do antiamericanismo em escala global ("a verdadeira religião mundial da atualidade"), defende o governo Lula e critica Hugo Chávez ("um totalitário").
O francês publicou no ano passado "American Vertigo" (Cia. das Letras"), em que analisa a sociedade americana e a vitalidade de sua democracia. Fruto de uma reportagem encomendada pela revista "Atlantic Monthly", o texto remete ao clássico "A Democracia na América" (Martins Fontes), escrito pelo francês Alexis de Tocqueville em meados do século 19, quando foi estudar o sistema prisional americano.
O intelectual é um dos convidados do ciclo Fronteiras do Pensamento, do Projeto Copesul Cultural, em Porto Alegre, onde profere conferência depois de amanhã (às 19h30, no Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; informações pelo tel. 0/xx/51/ 3019-2326).

 

FOLHA - O fundamentalismo religioso está em ascensão nos EUA?
BERNARD-HENRI LÉVY
- Claro. É um tema que abordo com freqüência no meu livro. Visitei essas grandes igrejas chamadas de "não-denominacionais", em que se celebra um Deus que não tem relação nem de perto com aquele das igrejas judaico-cristãs tradicionais. E, nessas igrejas, vi algo ao mesmo tempo perturbador, um pouco inquietante e, sobretudo, profundamente débil.
Mas não estou de acordo com o discurso que fala dos fundamentalismos em geral, em que os fundamentalismos protestante e muçulmano seriam subespécies.
Em outras palavras, não estou de acordo com colocar um sinal de igual entre um fundamentalismo que mata em grande escala (o de Bin Laden) e um fundamentalismo (o neoprotestante) que, até segunda ordem, se destacou apenas pelo seu poder de emburrecer e de vulgarizar.

FOLHA - Na França o sr. é criticado por ser simpático demais aos EUA. E vários representantes da "nova filosofia", grupo do qual o sr. faz parte, têm sido apontados como "néoréacs" (neoreacionários). O sr. é conservador?
LÉVY
- Tenho simpatia pelos EUA. Mas não sou arqueólogo nem neoconservador.

FOLHA - Com Hillary Clinton (senadora democrata e pré-candidata à Presidência dos EUA) e Barack Obama (senador por Illinois, também pré-candidato democrata à Presidência), pela primeira vez os EUA podem ter uma mulher ou um negro na Presidência. Há uma mudança concreta acontecendo na política americana?
LÉVY
- A mudança já aconteceu. É essa revolução formidável, freqüentemente subestimada, que começou nos anos 1960 e que é a revolução dos direitos civis. Poucos países conseguiram fazer uma revolução assim.
Poucos passaram tão rapidamente da mancha da escravidão, da segregação, da Ku Klux Klan -ou seja, do horror- para a luz de uma democracia respeitada e apresentável.
É preciso visitar os Estados do sul para perceber isso. É necessário ir ao Alabama, ao Tennessee e ao Arkansas, a esses Estados em que, há gerações, os negros eram linchados.
E onde hoje a igualdade é perfeitamente respeitada, pelo menos do ponto de vista formal. Se Hillary ou Obama forem eleitos, será por causa disso. Será fruto da maior revolução cultural que uma sociedade já conheceu, na época moderna, pelo menos.

FOLHA - Tocqueville havia previsto que a origem puritana da sociedade americana seria uma das razões para sua democracia vigorosa. Os direitos individuais estão em perigo ou, pelo menos, sob risco. A democracia americana está em crise? E no resto do mundo?
LÉVY
- Não acho que os direitos civis estejam em perigo. Há Guantánamo, certo. Claro, há o Patriot Act [pacote de leis antiterroristas lançado após o 11 de Setembro que amplia o poder de agências governamentais e prevê medidas excepcionais].
Mas não devemos cair no clichê antiamericano, como nos anos 50 de Sartre, de que "a América é raivosa". Não, a democracia americana vai sobretudo bem, ainda que desagrade seus adversários.
Aliás, seria necessário que os antiamericanistas chegassem a um acordo entre si. Não se pode condenar os EUA de serem ao mesmo tempo um país gregário por excelência ou a terra do individualismo.
É preciso escolher entre as duas críticas!

FOLHA - O antiamericanismo está em alta?
LÉVY
- Sim, e crescendo de uma maneira exponencial. Primeiro, está se tornando um fenômeno planetário. A começar da França, ou talvez da Europa, em que está se tornando a verdadeira religião mundial da atualidade.
E sobretudo está se tornando um ímã do que há de pior, resumindo e unindo tudo o que pode haver de pior nas sociedades modernas: nacionalismos, racismos, anti-semitismo, tensões identitárias etc. Eu detesto os EUA de George W. Bush. Meu livro o julga -e como!
Mas esse ódio contra os EUA, a forma como são classificados em um tipo de categoria metafísica e, no limite, de "nazificante", não me agrada, mas é uma das tendências de nossa época.

FOLHA - Qual será o legado dos neoconservadores republicanos depois dos anos Bush?
LÉVY
- Um grande desastre político, sem dúvida. Um caos.
Mas também restará um certo número de intelectuais, alguns que eram realmente intelectuais, que produziram obras verdadeiras e que não vão desaparecer facilmente. Pode-se discordar dos neoconservadores, pode-se pensar que são o "Doutor Fantástico" [alusão ao filme de Stanley Kubrick] do século 21.
Mas eles levaram suas idéias ao debate intelectual nos EUA, e isso não é desprezível. Minha tese sobre eles, em "American Vertigo", você conhece: eles pecaram não pela falta, mas pelo excesso de moral. Por ingenuidade, por angelismo. E minha verdadeira crítica é que não fizeram política o suficiente...

FOLHA - Como Tocqueville, o sr. também percorreu as prisões americanas. Guantánamo mostra que o país está melhor ou pior?
LÉVY
- Pior, naturalmente, porque Guantánamo é uma vergonha. Seu próprio princípio é uma vergonha. Passei alguns dias lá em minha viagem de pesquisa para o livro.
E continuo sem entender como, quando se é democrata, se pode admitir essa zona sem direitos, esses inimigos presos sem processo, sem status, e com a duração de prisão determinada apenas pela boa vontade das autoridades da ilha ou das agências que combatem o terrorismo. É preciso fechar Guantánamo.

FOLHA - Qual sua opinião sobre o governo Lula, sobre Hugo Chávez e sobre a "nova esquerda" latino-americana? O sr. concorda com a visão de Jorge Castañeda, de que há uma "boa" esquerda e uma esquerda "ruim"?
LÉVY
- Lula e Chávez são diferentes. Gosto de Lula e de seu estilo de governo, e acho que ele fará o Brasil avançar. Chávez, por outro lado, é um totalitário, um partidário do poder personalista.
Um tipo que se vê como herdeiro de Fidel] Castro, que não é, você há de convir, um modelo de democrata.

FOLHA - Existe hoje um "islamofascismo", uma nova era de totalitarismos?
LÉVY
- Claro. Acho mesmo que fui um dos primeiros, ou o primeiro, a utilizar essa expressão.
Porque todos esses movimentos islâmicos têm dois contextos, dois tipos de raiz. Um deles é "original" e tem a ver com uma interpretação errônea, fundamentalista, do Corão.
Mas o outra é "estrangeiro", ou europeu, para ser mais preciso, que tem a ver com a história do fascismo europeu. Pegue-se o Baath [partido iraquiano de Saddam Hussein] ou os ideólogos da Al Qaeda. Todos têm mestres europeus, de pensamento fascista. Há no mundo árabe-muçulmano um mito duradouro segundo o qual, com a criação de Israel, eles acabaram pagando por um crime (o Holocausto) do qual eram inocentes.
O mundo árabe não foi tão inocente assim dos crimes nazistas nos anos 1930 e 40.
Dou apenas um exemplo: havia um regimento árabe, ligado às SS [guarda de elite nazista], que esperava, por meio das tropas de Rommel [marechal famoso pela campanha nazista no norte da África], o momento de avançar sobre Jerusalém para matar os 600 mil judeus que já estavam lá e participar, assim, da "solução final". Apenas a derrota de Rommel impediu esse projeto.

FOLHA - O modelo francês está em crise? Nicolas Sarkozy (candidato da União por um Movimento Popular, UMP, e líder do bloco de centro-direita à Presidência da França nas eleições de hoje) parece atraído por um liberalismo que a França sempre condenou. E Ségolène Royal (candidata do Partido Socialista) parece defender um modelo de bem-estar social que está em crise há algum tempo. Para onde caminha a França?
LÉVY
- A França vai se reformar. A única questão é saber quem está em melhores condições de fazer isso, se Royal ou Sarkozy. Em minha opinião, Royal.

FOLHA - Qual é o futuro da União Européia? A integração ou não da Turquia, os referendos derrotados em alguns países para a nova Constituição, a impossibilidade de criar uma política externa comum... A unificação está em crise?
LÉVY
- Sim, e isso é realmente um drama. Minha geração viveu a idéia de que a Europa fazia parte do movimento da história e de que, de uma forma ou outra, quase fatalmente, acabaria por se criar. E isso aconteceria independentemente do que se fizesse.
Mesmo, por exemplo, se votássemos contra ela em um ou outro referendo. É um otimismo histórico do qual estou duvidando. Talvez a unificação européia não seja tão inevitável assim. Talvez o momento já tenha passado e o processo esteja bloqueado.

FOLHA - O sr. já escreveu sobre o papel dos intelectuais em "Elogio dos Intelectuais" (Rocco). Tocqueville critica a má influência que pensadores poderiam exercer na política. O sr. é criticado por ser um intelectual midiático e por ser mais jornalista do que filósofo...
LÉVY
- Digo, como Sartre, que há uma nobreza no trabalho do jornalista. Ou, como Foucault, que também há um "jornalismo transcendental", que faz parte da filosofia.
Quando vou à África e escrevo uma reportagem sobre a situação de Darfur [Província do Sudão onde tropas do governo enfrentam rebeldes separatistas, em conflitos que já mataram mais de 200 mil camponeses nos últimos três anos e deixaram mais de 2,5 milhões desabrigados], que teve grande repercussão dentro e fora da Europa, faço jornalismo.
Não tenho a impressão, fazendo isso, de romper de forma alguma com minha atividade de intelectual engajado.


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