São Paulo, Domingo, 06 de Junho de 1999
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NOVOS BRASILIANISTAS
Melissa Nobles examina como o censo tem ajudado a "embranquecer" o Brasil
Armadilhas do racismo

especial para a Folha, em Boston

Existem quantos negros no Brasil? A pergunta aparentemente simples transformou-se para a cientista política Melissa Nobles, 35, na chave para entender a construção do conceito de raça e democracia racial no país. Professora no famoso MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), Nobles lançará, no início do ano 2000, o livro "Shades of Citizenship: Race and Censuses in Modern Politics" (Matizes de Cidadania: Raça e Censo na Política Moderna). A obra é o resultado de sua tese de doutorado, defendida em 95 na Universidade de Yale, e analisa de que maneira o conceito de raça foi construído nos EUA e no Brasil por meio dos censos.
Para Nobles, o censo no Brasil tem sido uma disputa entre os que acham que o país é de maioria branca e os que defendem que somos um país de negros ou pelo menos de não-brancos. O pomo da discórdia, claro, é o mulato. Curiosamente, a batalha também é travada em campos norte-americanos, onde não é raro encontrar o Brasil citado com o aposto de "segundo país africano do mundo, depois da Nigéria" -do qual Nobles discorda.
Diferentemente do Brasil, os EUA nunca duvidaram de que o país era de maioria branca -e que queria continuar assim. Refletindo a segregação racial do início do século, em 1920 o censo americano eliminou a categoria de mulato, reclassificando-o como negro. As linhas de cor e o racismo tão visível facilitaram a identificação do "inimigo", e os movimentos negros acabaram se beneficiando.
Natural de Nova York, Nobles tem um perfil típico da classe média negra americana. Seus pais nasceram e cresceram no sul, ainda durante a segregação racial. Como os outros "afro-brasilianistas", Nobles apóia a ação afirmativa, que determina que empresas, universidades e escolas assegurem vagas para mulheres e minorias. A seguir, a entrevista que a cientista política concedeu à Folha.
Folha - De que maneira o censo ajudou a construir o conceito de raça no Brasil e nos EUA?
Melissa Nobles -
A minha pesquisa mostra que o censo ajuda não simplesmente a contar, mas a criar categorias de raça ou cor. Os métodos que são usados -como a questão do censo é escrita, quais termos (cor ou raça) e categorias (preto, pardo etc.) utiliza- têm importância. E eles são importantes por razões políticas. No século 19 e início do 20, o censo norte-americano estava sendo usado para informar idéias racistas sobre as raças "branca" e "negra". Hoje, o censo é usado para proteger o direito de voto das minorias e outras leis de direitos civis. Do censo de 1920 até o de 1950, o censo brasileiro festejou o suposto "embranquecimento" da população. A celebração é evidente na linguagem usada nos textos do IBGE. Hoje, o IBGE deve decidir que categorias serão usadas e como os dados serão interpretados. A pesquisa feita pela Folha, que virou o livro "Racismo Cordial", concluiu que o retrato do IBGE sobre o país é diferente do retrato de muitos brasileiros. O Datafolha concluiu que, diferentemente do IBGE, os brasileiros não acreditam que haja uma maioria de brancos. O Datafolha prova a minha tese: de que o IBGE ajuda a criar a cara oficial do Brasil por meio de terminologia e metodologia.
Folha - Os censos brasileiros contribuíram para o mito da democracia racial?
Nobles -
Os censos brasileiros têm ajudado o mito da democracia racial de duas formas. Em primeiro lugar, a idéia de democracia racial tem se sustentado no pressuposto de mistura racial. Ao usar o termo "cor" em vez de "raça", o método do IBGE por si só já mantinha a idéia de mistura. A justificativa era que a mistura havia tornado "raça" irrelevante. Em segundo lugar, o mito da democracia racial se mantinha na idéia de que raça não era um problema maior. No passado, o IBGE relutantemente cruzou categorias de cor com variáveis socioeconômicas (educação, renda, residência etc.). Além disso, dados sobre cor têm sido coletados e divulgados inconstantemente. Isso tem dificultado a geração de estatísticas que provem as disparidades causadas por discriminação em razão de raça ou cor.
Folha - Não há o risco de a sua análise cair no presentismo, dada a grande instabilidade política brasileira durante este século?
Nobles -
Naturalmente, interpretar ações do passado gera certos riscos. Apesar da grande instabilidade política, econômica e intelectual deste século, uma análise do censo brasileiro mostra que ele tem de fato ajudado a justificar e garantir uma falta de ação do Estado brasileiro. Essa falta de ação tem sido, ao mesmo tempo, uma decorrência consciente e inconsciente do pensamento político e intelectual sobre raça. Além disso, tento provar que o IBGE não tem sido uma instituição politicamente neutra, e o mesmo vale para o censo norte-americano.
Folha - No Brasil, os ativistas negros brasileiros têm lutado para atrair mulatos, mas a estratégia não tem dado muitos resultados. Qual é a perspectiva?
Nobles -
Com o tempo, uma grande identidade negra, para a qual os mulatos podem ser atraídos, vai surgir no Brasil, mas apenas se os ativistas negros brasileiros forem capazes de convencer os mulatos de que a sua cor os deixa em desvantagem. Nos EUA, os mulatos se uniram aos negros porque também eram discriminados pelos brancos. Portanto não havia nenhuma vantagem material ou simbólica em ser mulato.
Folha - A sra. diz que o Brasil estaria "americanizando", pois busca agora categorizar melhor a noção de raça, e os EUA, "abrasileirando", pois está cada vez mais parecido com o que seria a imagem de uma democracia racial. Isso significa que a noção de raça está se tornando mais importante do que a de classe no Brasil, enquanto nos EUA ocorre o contrário?
Nobles -
Sim, raça está sendo vista como mais relevante do que classe no Brasil. Isso é importante, porque finalmente centra a atenção na elite política e econômica. Muitas vezes os brasileiros dizem que o racismo não é importante porque pessoas de todas as cores são pobres. Mas é necessário examinar quem constitui as classes média e alta. O racismo explica em parte por que a elite brasileira é esmagadoramente branca. (FM)




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