São Paulo, Domingo, 06 de Junho de 1999
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Jeffrey Lesser mostra como imigrantes ajustaram-se ao discurso racial do país
Negócios com a "raça brasileira"

especial para a Folha, em Providence (EUA)

A maneira como imigrantes não-europeus -como japoneses e árabes- negociaram a sua entrada na "identidade brasileira" é o objeto de trabalho do historiador norte-americano Jeffrey Lesser, 38, professor no Connecticut College e pesquisador associado à Universidade de Brown. Para esses grupos que não se encaixavam no tripé negro-branco-índio, o desafio foi, ao mesmo tempo, preservar a sua "etnicidade" e ser incluídos na "raça brasileira".
Depois de pesquisar durante seis anos em arquivos do Brasil, França, Inglaterra, Japão, EUA e Israel, Lesser lançou no último mês, nos EUA, "Negotiating National Identity: Immigrants, Minorities and the Struggle for Ethnicity in Brazil" (Negociando a Identidade Nacional: Imigrantes, Minorias e a Luta pela Etnicidade no Brasil), pela Duke University Press.
O livro enfoca principalmente a imigração árabe e japonesa na primeira metade deste século. O brasilianista mostra que os dois grupos souberam entender o discurso brasileiro sobre raça, que buscava "embranquecer" o sangue moreno por meio da vinda de imigrantes europeus brancos.
Enquanto os árabes tentaram criar um passado comum com os brasileiros, os japoneses -cuja imigração era ardentemente debatida entre intelectuais, deputados e eugenistas- necessitaram mostrar que podiam se misturar com os brasileiros e gerar filhos tão "brancos" quanto os dos europeus.
Na década de 30, organizações culturais japonesas no Brasil financiaram -abertamente ou não- publicações com fotos de homens japoneses casados com mulheres brasileiras e de seus filhos "brancos". A estratégia deu resultados e chegou a receber o aval de membros da elite brasileira.
Em 1932, por exemplo, Bruno Lobo, professor de medicina no Rio de Janeiro, publicou um livro intitulado "De Japonês a Brasileiro", com fotos de famílias inter-raciais, provando que a união entre os brasileiros e japoneses geraria crianças brancas e, portanto, europeizadas. Três anos mais tarde, em 1935, um dos defensores da imigração japonesa na Câmara dos Deputados em São Paulo chegou a afirmar que os colonos japoneses eram "até mais brancos que os portugueses".
Lesser afirma que existe uma contínua pressão no Brasil para "esconder o hífen". Ao contrário dos EUA, não é comum no país falar em afro-brasileiro, nipo-brasileiro ou árabe-brasileiro. No espaço público, basta ser "brasileiro". O pesquisador considera, no entanto, que isso está mudando, com o fortalecimento da imprensa étnica, o sucesso de grupos de pagode, a propaganda política e até com o crescimento das igrejas evangélicas. Para Lesser, essa onda de "etnicidade" não é surpresa, mas uma nova etapa da longa questão da identidade nacional.
Casado com uma brasileira, Lesser é apontado como um dos principais nomes da nova geração de brasilianistas. Em sua nova pesquisa, ele desenvolve o projeto "A Nova Face da Discriminação no Brasil", do qual também participa o antropólogo japonês Koichi Mori, do Centro de Estudos Nipo-Brasileiro, de São Paulo. Em março, o brasilianista esteve no Japão com um grupo de alunos de graduação, entrevistando "dekasseguis". Em junho e julho deste ano, estará no Brasil para a segunda fase da pesquisa. O projeto deve ser concluído até julho do ano que vem. Leia a seguir a entrevista de Lesser à Folha, realizada em sua casa, em Providence.

Folha - Quais são as diferenças do multiculturalismo brasileiro em relação ao dos Estados Unidos?
Jeffrey Lesser -
Acho que o Brasil é tão multicultural quanto os Estados Unidos. A diferença é que no Brasil o discurso sobre multiculturalismo até os últimos dez anos não existia. Ainda hoje, se você pergunta sobre a questão de etnicidade, a resposta em geral é: "Não há, aqui só tem brasileiro". Mas essa resposta é, de certa forma, para inglês ver.
Do lado da elite brasileira, acho que essa resposta foi um discurso falso, porque, quando você examina com cuidado o que essa elite dizia no passado, fica muito claro que eles pensaram bastante a etnicidade.
Parte do meu livro discute a imigração chinesa para o Brasil no século passado. E foi muito interessante ver como a elite brasileira entendeu muito bem que a China não existia em termos culturais, que havia pessoas de várias religiões, com várias experiências econômicas, com várias culturas etc.
Do lado da minoria, é a mesma coisa. Se você faz a mesma pergunta, em uma situação social, a um membro de algum grupo minoritário, você ouve: "Não, não existe racismo, sou brasileiro". E acabou -o que é a resposta certa para ser incluído dentro da sociedade brasileira. Mas, saindo do público para o privado, há um discurso diferente, altamente multicultural. Ou seja, como ser um brasileiro de ascendência japonesa, libanesa, chinesa. E esse discurso foi muito forte e importante.
Isso é muito diferente nos EUA, onde, nos anos 60, já se começou a reconhecer a etnicidade. Agora, quase 40 anos depois, é típico para todo americano ser um étnico. Não existe um americano, só existe um afro-americano, um mexicano-americano, um judeu-americano. Há toda essa linguagem criada para insistir no hífen.
Esse hífen, que existe no Brasil, até hoje não entrou muito no discurso público brasileiro, mas sempre aparece no discurso privado. Nesse sentido eu discordo muito da idéia de que o Brasil se torna um país multicultural só a partir dos anos 90. O que está acontecendo é que a maioria está agora começando a reconhecer o multiculturalismo, embora esse multiculturalismo estivesse já no Brasil, continue no Brasil e de certa forma seja o Brasil.
Folha - O sr. argumenta que, na idealização da "raça brasileira", uma das formas de avaliar os grupos étnicos era saber se eles iriam ou não se miscigenar. A obsessão pela miscigenação é uma particularidade brasileira?
Lesser -
Certamente a discussão, feita de maneira tão aberta, nos jornais, com estatísticas, parece ser bem brasileira. Também é interessante ver como os grupos minoritários entraram na discussão.
Por exemplo, havia grupos nipo-brasileiros que começaram a dizer que eram "melhores do que os outros" porque estavam "miscigenando melhor". Não ficava claro, quando eles afirmavam isso, se queriam dizer a mesma coisa que a maioria. Mas isso é parte da estratégia dos grupos minoritários: entender esse discurso público de homogeneidade e usá-lo para criar uma sociedade heterogênea.
Folha - A discussão era sobre qual grupo era mais branco...
Lesser -
Mas não estava exatamente claro o que se queria dizer com "branco". Isso estava em discussão. Na Câmara dos Deputados em São Paulo, um deputado chegou a dizer que o japonês é mais branco que o português. Isso mostra que a palavra "branco" estava em negociação, que branco não era simplesmente uma cor, envolvia muitas coisas, trabalho, valores etc.
Folha - A sua pesquisa mostra também que políticos de ascendência árabe ou japonesa usam imagens estereotipadas desses grupos como marketing político. Como eles utilizam essas imagens?
Lesser -
No caso dos árabes não é tão óbvio, mas, com os políticos nipo-brasileiros, fica muito claro. Eles entendem bem essa idéia de que o japonês é considerado uma etnia superior à do brasileiro. Fiz uma entrevista com um político brasileiro muito conhecido em que perguntei por que ele escrevia seu nome com letras em estilo japonês e, mesmo sendo do PT, usava fotos nas quais aparecia com o ministro da Economia japonês. Ele me respondeu: "Olha, o público brasileiro acha o político corrupto, desonesto, preguiçoso. O que estou vendendo para eles é que sou diferente: sou um japonês, honesto, trabalhador. Ou seja, eu quero lembrar ao público que, sendo japonês, eu sou o melhor brasileiro possível".
Folha - Como foi criado o termo "sírio-libanês"?
Lesser -
Não sei exatamente, mas estava sendo usado pela comunidade árabe já nos anos 20 para discutir com o público majoritário. Ou seja, nos anos 20, o próprio árabe, dentro de seu grupo, não falava: "Eu sou sírio-libanês". Ele usou essa linguagem para conversar com o outro.
Minha impressão é que esse termo foi criado para várias coisas. Em primeiro lugar, para distinguir as pessoas de ascendência síria e libanesa de outros grupos árabes. Em segundo, para insistir com o grupo brasileiro majoritário para que se colocasse o hífen. E, em terceiro, porque o grupo reconheceu a confusão sobre o que era árabe, já que naquela época todo mundo falava em "turco".
Então, essas duas palavrinhas com hífen têm muito sentido. É uma idéia muito complexa, e insistir em ser chamado assim quer dizer muito. O interessante é que, nessa época, o termo "turco" passou a ser pejorativo por pressão do grupo minoritário. O descendente sírio-libanês queria ser reconhecido como brasileiro de origem importante.
Folha - As igrejas pentecostais têm atraído muitos negros e pardos. Há alguma relação entre essa atração e a busca de etnicidade?
Lesser -
Se observarmos quem está sendo atraído pelos evangélicos, vamos descobrir que, além de negros e pardos, há muitos nipo-brasileiros, árabes etc. Os evangélicos reconhecem muito bem a etnicidade no Brasil e sabem que uma estratégia para atrair pessoas é criar igrejas com o hífen.
Por exemplo, em uma rua do centro de São Paulo há uma enorme igreja evangélica nipo-brasileira, exatamente com esse nome, ao lado de um templo budista.
Claro que há muita coisa acontecendo com o crescimento do movimento evangélico, mas parte do que ocorre é o reconhecimento da etnicidade no Brasil. Eles estão usando isso como estratégia.
A minha impressão é que muito dessa onda de afro-brasileirismo vai acontecer dentro do movimento evangélico. Outra coisa é o crescimento, no Brasil, das chamadas novas religiões japonesas, em que muitos participantes não têm ascendência japonesa. E isso está ligado à idéia de que ser um japonês é a maneira de ser o melhor brasileiro possível.
Folha - Hoje há um grande sucesso de grupos de pagode com nomes como Negritude Júnior e Raça Negra. Os membros desses grupos, no entanto, quando eles falam de raça, fazem uma aproximação mais cordial do tema. Como analisar esse discurso?
Lesser -
Não tenho muito a dizer sobre isso. Só posso acrescentar que é o esperado. Um grupo de pagode que fala de raça brasileira já é uma mudança, e isso é parte de um lento, mas contínuo, aumento da discussão sobre a etnicidade na esfera pública. Para um grupo desses fazer sucesso, ele não pode ser "antibranco", isso não vai funcionar. Se você quer assumir sua etnicidade no país, precisa ser assim: esse é o jeito brasileiro. O importante no caso é ver a manifestação da etnicidade. (FM)




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