|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Jeffrey Lesser mostra como imigrantes ajustaram-se ao discurso racial do país
Negócios com a "raça brasileira"
especial para a Folha, em Providence (EUA)
A maneira como imigrantes
não-europeus -como japoneses e
árabes- negociaram a sua entrada na "identidade brasileira" é o
objeto de trabalho do historiador
norte-americano Jeffrey Lesser,
38, professor no Connecticut College e pesquisador associado à
Universidade de Brown. Para esses
grupos que não se encaixavam no
tripé negro-branco-índio, o desafio foi, ao mesmo tempo, preservar a sua "etnicidade" e ser incluídos na "raça brasileira".
Depois de pesquisar durante seis
anos em arquivos do Brasil, França, Inglaterra, Japão, EUA e Israel,
Lesser lançou no último mês, nos
EUA, "Negotiating National
Identity: Immigrants, Minorities
and the Struggle for Ethnicity in
Brazil" (Negociando a Identidade
Nacional: Imigrantes, Minorias e a
Luta pela Etnicidade no Brasil),
pela Duke University Press.
O livro enfoca principalmente a
imigração árabe e japonesa na primeira metade deste século. O brasilianista mostra que os dois grupos souberam entender o discurso
brasileiro sobre raça, que buscava
"embranquecer" o sangue moreno por meio da vinda de imigrantes europeus brancos.
Enquanto os árabes tentaram
criar um passado comum com os
brasileiros, os japoneses -cuja
imigração era ardentemente debatida entre intelectuais, deputados
e eugenistas- necessitaram mostrar que podiam se misturar com
os brasileiros e gerar filhos tão
"brancos" quanto os dos europeus.
Na década de 30, organizações
culturais japonesas no Brasil financiaram -abertamente ou
não- publicações com fotos de
homens japoneses casados com
mulheres brasileiras e de seus filhos "brancos". A estratégia deu
resultados e chegou a receber o
aval de membros da elite brasileira.
Em 1932, por exemplo, Bruno
Lobo, professor de medicina no
Rio de Janeiro, publicou um livro
intitulado "De Japonês a Brasileiro", com fotos de famílias inter-raciais, provando que a união
entre os brasileiros e japoneses geraria crianças brancas e, portanto,
europeizadas. Três anos mais tarde, em 1935, um dos defensores da
imigração japonesa na Câmara
dos Deputados em São Paulo chegou a afirmar que os colonos japoneses eram "até mais brancos que
os portugueses".
Lesser afirma que existe uma
contínua pressão no Brasil para
"esconder o hífen". Ao contrário
dos EUA, não é comum no país
falar em afro-brasileiro, nipo-brasileiro ou árabe-brasileiro. No espaço público, basta ser "brasileiro". O pesquisador considera, no
entanto, que isso está mudando,
com o fortalecimento da imprensa
étnica, o sucesso de grupos de pagode, a propaganda política e até
com o crescimento das igrejas
evangélicas. Para Lesser, essa onda
de "etnicidade" não é surpresa,
mas uma nova etapa da longa
questão da identidade nacional.
Casado com uma brasileira, Lesser é apontado como um dos principais nomes da nova geração de
brasilianistas. Em sua nova pesquisa, ele desenvolve o projeto "A
Nova Face da Discriminação no
Brasil", do qual também participa
o antropólogo japonês Koichi Mori, do Centro de Estudos Nipo-Brasileiro, de São Paulo. Em
março, o brasilianista esteve no Japão com um grupo de alunos de
graduação, entrevistando "dekasseguis". Em junho e julho deste
ano, estará no Brasil para a segunda fase da pesquisa. O projeto deve
ser concluído até julho do ano que
vem. Leia a seguir a entrevista de
Lesser à Folha, realizada em sua
casa, em Providence.
Folha - Quais são as diferenças
do multiculturalismo brasileiro em
relação ao dos Estados Unidos?
Jeffrey Lesser - Acho que o Brasil é tão multicultural quanto os
Estados Unidos. A diferença é que
no Brasil o discurso sobre multiculturalismo até os últimos dez
anos não existia. Ainda hoje, se você pergunta sobre a questão de etnicidade, a resposta em geral é:
"Não há, aqui só tem brasileiro".
Mas essa resposta é, de certa forma, para inglês ver.
Do lado da elite brasileira, acho
que essa resposta foi um discurso
falso, porque, quando você examina com cuidado o que essa elite dizia no passado, fica muito claro
que eles pensaram bastante a etnicidade.
Parte do meu livro discute a imigração chinesa para o Brasil no século passado. E foi muito interessante ver como a elite brasileira
entendeu muito bem que a China
não existia em termos culturais,
que havia pessoas de várias religiões, com várias experiências
econômicas, com várias culturas
etc.
Do lado da minoria, é a mesma
coisa. Se você faz a mesma pergunta, em uma situação social, a um
membro de algum grupo minoritário, você ouve: "Não, não existe
racismo, sou brasileiro". E acabou -o que é a resposta certa para
ser incluído dentro da sociedade
brasileira. Mas, saindo do público
para o privado, há um discurso diferente, altamente multicultural.
Ou seja, como ser um brasileiro de
ascendência japonesa, libanesa,
chinesa. E esse discurso foi muito
forte e importante.
Isso é muito diferente nos EUA,
onde, nos anos 60, já se começou a
reconhecer a etnicidade. Agora,
quase 40 anos depois, é típico para
todo americano ser um étnico.
Não existe um americano, só existe um afro-americano, um mexicano-americano, um judeu-americano. Há toda essa linguagem
criada para insistir no hífen.
Esse hífen, que existe no Brasil,
até hoje não entrou muito no discurso público brasileiro, mas sempre aparece no discurso privado.
Nesse sentido eu discordo muito
da idéia de que o Brasil se torna um
país multicultural só a partir dos
anos 90. O que está acontecendo é
que a maioria está agora começando a reconhecer o multiculturalismo, embora esse multiculturalismo estivesse já no Brasil, continue
no Brasil e de certa forma seja o
Brasil.
Folha - O sr. argumenta que, na
idealização da "raça brasileira",
uma das formas de avaliar os grupos étnicos era saber se eles iriam
ou não se miscigenar. A obsessão
pela miscigenação é uma particularidade brasileira?
Lesser - Certamente a discussão, feita de maneira tão aberta,
nos jornais, com estatísticas, parece ser bem brasileira. Também é
interessante ver como os grupos
minoritários entraram na discussão.
Por exemplo, havia grupos nipo-brasileiros que começaram a
dizer que eram "melhores do que
os outros" porque estavam "miscigenando melhor". Não ficava
claro, quando eles afirmavam isso,
se queriam dizer a mesma coisa
que a maioria. Mas isso é parte da
estratégia dos grupos minoritários: entender esse discurso público de homogeneidade e usá-lo para criar uma sociedade heterogênea.
Folha - A discussão era sobre
qual grupo era mais branco...
Lesser - Mas não estava exatamente claro o que se queria dizer
com "branco". Isso estava em
discussão. Na Câmara dos Deputados em São Paulo, um deputado
chegou a dizer que o japonês é
mais branco que o português. Isso
mostra que a palavra "branco"
estava em negociação, que branco
não era simplesmente uma cor,
envolvia muitas coisas, trabalho,
valores etc.
Folha - A sua pesquisa mostra
também que políticos de ascendência árabe ou japonesa usam
imagens estereotipadas desses
grupos como marketing político.
Como eles utilizam essas imagens?
Lesser - No caso dos árabes não
é tão óbvio, mas, com os políticos
nipo-brasileiros, fica muito claro.
Eles entendem bem essa idéia de
que o japonês é considerado uma
etnia superior à do brasileiro. Fiz
uma entrevista com um político
brasileiro muito conhecido em
que perguntei por que ele escrevia
seu nome com letras em estilo japonês e, mesmo sendo do PT, usava fotos nas quais aparecia com o
ministro da Economia japonês. Ele
me respondeu: "Olha, o público
brasileiro acha o político corrupto,
desonesto, preguiçoso. O que estou vendendo para eles é que sou
diferente: sou um japonês, honesto, trabalhador. Ou seja, eu quero
lembrar ao público que, sendo japonês, eu sou o melhor brasileiro
possível".
Folha - Como foi criado o termo
"sírio-libanês"?
Lesser - Não sei exatamente,
mas estava sendo usado pela comunidade árabe já nos anos 20 para discutir com o público majoritário. Ou seja, nos anos 20, o próprio árabe, dentro de seu grupo,
não falava: "Eu sou sírio-libanês". Ele usou essa linguagem para conversar com o outro.
Minha impressão é que esse termo foi criado para várias coisas.
Em primeiro lugar, para distinguir
as pessoas de ascendência síria e
libanesa de outros grupos árabes.
Em segundo, para insistir com o
grupo brasileiro majoritário para
que se colocasse o hífen. E, em terceiro, porque o grupo reconheceu
a confusão sobre o que era árabe,
já que naquela época todo mundo
falava em "turco".
Então, essas duas palavrinhas
com hífen têm muito sentido. É
uma idéia muito complexa, e insistir em ser chamado assim quer dizer muito. O interessante é que,
nessa época, o termo "turco"
passou a ser pejorativo por pressão
do grupo minoritário. O descendente sírio-libanês queria ser reconhecido como brasileiro de origem importante.
Folha - As igrejas pentecostais
têm atraído muitos negros e pardos. Há alguma relação entre essa
atração e a busca de etnicidade?
Lesser - Se observarmos quem
está sendo atraído pelos evangélicos, vamos descobrir que, além de
negros e pardos, há muitos nipo-brasileiros, árabes etc. Os
evangélicos reconhecem muito
bem a etnicidade no Brasil e sabem
que uma estratégia para atrair pessoas é criar igrejas com o hífen.
Por exemplo, em uma rua do
centro de São Paulo há uma enorme igreja evangélica nipo-brasileira, exatamente com esse nome, ao
lado de um templo budista.
Claro que há muita coisa acontecendo com o crescimento do movimento evangélico, mas parte do
que ocorre é o reconhecimento da
etnicidade no Brasil. Eles estão
usando isso como estratégia.
A minha impressão é que muito
dessa onda de afro-brasileirismo
vai acontecer dentro do movimento evangélico. Outra coisa é o crescimento, no Brasil, das chamadas
novas religiões japonesas, em que
muitos participantes não têm ascendência japonesa. E isso está ligado à idéia de que ser um japonês
é a maneira de ser o melhor brasileiro possível.
Folha - Hoje há um grande sucesso de grupos de pagode com nomes como Negritude Júnior e Raça
Negra. Os membros desses grupos,
no entanto, quando eles falam de
raça, fazem uma aproximação
mais cordial do tema. Como analisar esse discurso?
Lesser - Não tenho muito a dizer sobre isso. Só posso acrescentar que é o esperado. Um grupo de
pagode que fala de raça brasileira
já é uma mudança, e isso é parte de
um lento, mas contínuo, aumento
da discussão sobre a etnicidade na
esfera pública. Para um grupo desses fazer sucesso, ele não pode ser
"antibranco", isso não vai funcionar. Se você quer assumir sua
etnicidade no país, precisa ser assim: esse é o jeito brasileiro. O importante no caso é ver a manifestação da etnicidade.
(FM)
Texto Anterior: Estudos enfocam igrejas populares Próximo Texto: O mito da escrava Anastácia Índice
|