São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997.



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AUTORES

O historiador Robert Darnton analisa o relato de um artesão que relacionava o estupro aos ideais da Revolução Francesa

Fraternidade ou os perigos da história etnográfica

ROBERT DARNTON
especial para a Folha

Os perigos da história etnográfica são óbvios para qualquer um que se arrisque às cegas. Você acompanha seu antropólogo num argumento, faz uma curva e, de repente, colide com coisas estranhas: príncipes esbanjando poder na arte de governar; chefes fazendo diplomacia em torno de carneiros; e sábios esquadrinhando uma visão de mundo no fundo composta de elefantes montados sobre tartarugas, tartarugas sobre elefantes, depois tartarugas "até não acabar mais" (1). É estonteante, e também perigoso.
Falo por experiência, tendo sido denunciado por meus colegas historiadores de vira-casaca, que passou para a antropologia e sucumbiu aos "pericoli del geertzismo" (os perigos do geertzismo) (2). Quando se inicia uma viagem em tal companhia, não há caminho de volta. Daí o presente ensaio, que eu apresento como uma advertência aos companheiros de viagem; pois foi escrito num estado de geertzismo impenitente, e revela algo sobre os perigos da virada etnográfica. Desta vez eu me vi diante de uma visão de mundo que assomou das páginas da autobiografia de um trabalhador do século 18, e não gostei do que vi.
"Journal de Ma Vie" (Diário de Minha Vida), de Jacques-Louis Ménétra, um vidraceiro parisiense, é um documento extraordinário, em parte ficção, em parte fantasia, e em alguma parte (mas que proporção precisa?) um relato autêntico da vida de um artesão com o pé na estrada e nos quarteirões operários de Paris, entre 1738 e 1802 (3). Tais documentos são raros (4). Eles proporcionam lampejos sobre um território obscuro, conhecido na França como "história das mentalidades" ou o que os antropólogos descrevem como sistemas culturais. Mas eles não funcionam como janelas transparentes e o que revelam pode estar tão longe do alcance da experiência da maioria dos historiadores, a ponto de parecerem incompreensíveis.
No caso do "Journal" de Ménétra, a dificuldade não deriva da recusa do autor em distinguir fato de ficção. Qual texto -mesmo a "História dos Papas", de Ranke, mesmo "Bruxaria, Oráculos e Magia Entre os Azende", de Evans-Pritchard- não contém elementos pré-fabricados arrumados pela imaginação do narrador?
A dificuldade diz respeito a algo inteiramente de uma outra ordem, algo detestável e inesperado -a saber, o estupro. Para a maioria dos modernos, o estupro é um crime tão repulsivo que desafia a compreensão, apesar dos esforços de criminólogos, psicólogos e antropólogos para ver nele algum sentido (5). Para Ménétra era uma aventura, algo a respeito do que se gabar. Mais ainda: ele misturava a fanfarronice à troca, como se esperasse que seu leitor compartilhasse de uma anedota. E ainda mais estranho: ele associava estupro a uma noção de fraternidade.
Fraternidade -do tipo revolucionário francês, não a variedade universitária norte-americana de bebedores de cerveja- é em si mesma estranha (6). Para o historiador moderno que tenta decifrá-la de uma distância de 200 anos, ela pode parecer tão ridícula quanto repelente. Os abraços de peito cabeludo, o andar pomposo por aí, usando chapéus com laços e plumas, os juramentos ferozes pelo extermínio da tirania, as poses surpreendentemente clássicas -o bater nos peitos, flexionar músculos, agitar bandeiras e sacudir sabres-, tudo isso deixa um ar de ópera cômica tanto quanto de sexismo. Como podemos levar isso a sério? Contudo, se deixarmos de fazê-lo, poderemos nunca entender a fonte da energia que encaminhou a Revolução na direção da democracia.
Aquela energia era plebéia, uma "émotion populaire", como era conhecida pelas autoridades encarregadas do controle de motins sob o Antigo Regime. Ela mobilizou o povo comum e salvou a Revolução em cada momento crítico de 1789 a 1795. Para qualquer um que se preocupe com a causa plebéia, a fraternidade merece o seu lugar no coração da trindade de valores da Revolução. Mas, comparada com a liberdade e a igualdade, ela permanece misteriosa, como se fosse um poder escondido sob a superfície dos acontecimentos, e não sonhada tal como aquelas o são nas filosofias dos historiadores modernos. E se a energia da Revolução estivesse poluída em sua fonte?
O "Journal" de Ménétra se lê como um "roman-fleuve" primitivo. Foi escrito com um enredo bem formulado, mas mal soletrado, sem pontuação, sem parágrafos, capítulos de uma distinção clara entre fantasia e fato. Pode também ser lido como um exemplo supremo de bravata sexual masculina, pois Ménétra se representou como um don Juan da classe trabalhadora, pequeno no tamanho, mas "um Hércules em matéria de amor" (7); e ele organiza sua narrativa em torno de suas supostas seduções. O texto tem traços de Boccaccio e de romances sexuais populares do período (8); mas deriva sobretudo de uma tradição oral, a fábula sexual, que os homens contavam uns aos outros durante suas viagens pela França -enquanto vagabundeavam entre um trabalho e outro, no próprio local de trabalho, nas tavernas, na cama, pois frequentemente se hospedavam juntos, dois numa cama e às vezes vários no mesmo quarto das estalagens associadas com suas "compagnonages" (grêmios fraternais de jornaleiros; Ménétra pertencia à Compagnonage du Devoir). A camaradagem à mesa e os esquemas de passar a noite em grupo fornecem o contexto imediato a esta narração de uma história; as convenções de uma cultura artesanal compartilhada fornecem à história um quadro geral de referência.
Ménétra certamente conta uma boa história, e sua performance oral deve ter sido bem mais engenhosa do que a narrativa desajeitada de seu texto escrito. A certa altura, ele descreve o efeito de suas histórias sobre um nobre do interior, que o havia convidado e a um outro jornaleiro, para jantar num "château":
"Ele se diverte nos fazendo contar nossas escapadas e tudo que fizemos em nossas viagens através da França. Eu lhe conto uma ou duas. O senhor e sua mulher riem até que as lágrimas rolem por suas bochechas. Um padre que estava servindo de capelão para eles, mas que não tinha o ar hipócrita da maioria dos de seu tipo, ri até ficar prestes a partir-se ao meio, segurando seu lenço ou guardanapo em frente a sua boca; e a senhora da casa quase não pôde ouvir mais" (9).
Ménétra constrói sua narrativa reunindo essas "escapadas" ("fredaines"). Ao segui-lo em suas caçadas a saias através da França, o leitor moderno se surpreende sendo arrastado à piada; mas, em todos os pontos cruciais, o leitor ou a leitora (ele exatamente tanto quanto ela) deixa de perceber as piadas. Elas simplesmente não são engraçadas, porque se passam num universo mental que é impensável hoje. Considere este exemplo:
"Um domingo, indo ver o barão no Faubourg Saint-Antoine na companhia de meu amigo Gombeaut, chegamos até o Bois de Vincennes. Caminhando na direção dos arbustos, nos deparamos com um ninho de amor, um jovem e uma jovem fazendo aquilo. Eu lhe disse: 'Vamos lá, multipliquem-se'. Tendo sido acidentalmente interrompido por nós nesta atividade bastante humana, ele nos disse para irmos para o inferno. Com essas palavras, Gombeaut pegou da espada; e nós o fizemos arrepender-se da insolência, porque cada um de nós nos revezamos com a jovem coisa sem dar a ela a chance de se arrumar. O idiota não se atreveu a chegar perto. Nós zombamos dele, agradecendo à moça por ter sido tão bem comportada; e, quando nos havíamos afastado alguma distância, jogamos sua espada para trás; pois cada um de nós havia ficado de guarda, enquanto o outro fazia aquilo. Poucos dias antes, enquanto bebíamos juntos, dissemos um para o outro: 'Nós somos grandes amigos, mas devemos nos tornar irmãos'. Mas não tínhamos dinheiro suficiente. Então vendemos uma fivela de sapato de prata e fomos dividir uma mulher por uma noite. Então dissemos depois um ao outro: 'Agora estamos duplamente ligados, à maneira de família'±" (10).
Para Ménétra, foi hilariante. Para o leitor moderno, parece um estupro grupal. Estupro grupal e fraternidade -não a que ocorre no campus universitário, nem o amor fraterno atribuído aos filadelfianos, nem qualquer tipo de sentimento adocicado sobre família de homens, mas vínculo masculino baseado na violação de uma mulher. Com que direito pode o historiador juntar duas categorias tão incompatíveis quanto fraternidade e estupro? Eu responderia, em primeiro lugar, que Foucault nos deu uma lição a respeito do impensável: ela envolve quebrar e penetrar um código cultural estranho, um que parece impenetrável precisamente porque junta coisas que nós mantemos separadas; suas categorias não são as nossas, e assim ele organiza a realidade de uma maneira diferente (11).
Em segundo lugar, eu responderia que o estupro no Bois de Vincennes não fora um incidente isolado. Adapta-se ao padrão geral das experiências narradas por Ménétra. Ele descreveu toda a sua vida como uma caçada ao "animal feminino" (12) e gabava-se de vários estupros, geralmente com uma veia humorística, como se considerasse que sua platéia fosse achá-los engraçados.
Quando vagabundeava com um amigo nas vizinhanças de Angers, Ménétra encontrou um jovem casal de camponeses fazendo amor. Seu amigo espantou o rapaz e Ménétra se apropriou da moça, "metade com consentimento, metade pela força" (13). Em Lyon, Ménétra se supriu de uma mulher surda e idosa: "Eu apressei as coisas e, para me fazer entender, tive de levantar minha voz e tomá-la de assalto. Então apaguei a luz e me servi" (14). Em Montpellier, ele notou que um dos jornaleiros no dormitório da "compagnonnage" estava viajando com sua amante disfarçada de homem:
"E notei que era mercadoria para homens... À noite ocupei seu lugar, meio pela força, meio por consentimento. No dia seguinte ela disse a seu amante o que lhe havia acontecido, mas, desde que éramos muitos dividindo o quarto, ele não sabia a qual de nós acusar. Então ele nos mandou embora a todos, e respondemos com tanta zombaria, que os dois foram forçados a se retirar. Todos os jornaleiros se reuniram para rir daquilo, e todos eles, inclusive a senhora ('la mére') da estalagem, disseram que só o parisiense poderia armar uma trapaça daquela" (15).
Essas "trapaças" -Ménétra usa uma série de termos relacionados: "tours", "niches", "fredaines" e "espiègleries"- frequentemente envolviam compartilhar mulheres. Os episódios mais engraçados, da perspectiva de Ménétra, aconteciam quando os trabalhadores pilhavam esposas e filhas de seus patrões. Em Bourg-en-Bresse, eles passaram mãe e filha juntas de uma cama para outra como se tivessem passando comida: "Perguntei a um burgundiano dormindo a meu lado se ele queria participar daquilo. Ele respondeu que eu havia esquentado muito aquilo" (16).
Sexualidade e comensalidade andavam juntas, pois a taverna era o contraponto do quarto de dormir. Da mesma forma que os jornaleiros partilhavam suas camas, eles selavam amizades e resolviam brigas, indo para certas tavernas e partilhando uma jarra de vinho ou um pardal assado e salada. Segundo a descrição de Ménétra, essas cerimônias marcavam importantes encontros pessoais. Por exemplo, após uma noite de bebedeira numa taverna com seu amigo Segrestier e a mulher deste, Ménétra se viu trancado do lado de fora de seu quarto e passou a noite na cama deles. Na manhã seguinte, "ele me disse para vir beber um vinho branco com ele, porque tinha algo em seu coração" (17). Por que, Segrestier perguntou após ter vertido o vinho na taverna, sua mulher fora deitar-se ao seu lado na cama e acordara ao lado de Ménétra?
A conversa de Ménétra salvou aquela amizade e consolidou outras, em particular sua relação com um outro caçador de mulheres de nome Gaillard, que vivia vendendo relógios nas ruas de Paris. Uma bem vestida cliente de Gaillard havia pago parte em dinheiro e parte com uma nota promissória, "com a condição de que eles comeriam um pardal" -quer dizer, selariam a transação jantando juntos numa taverna (18). A mulher era madame Saint-Louis, a "maman" de um notório bordel na rue Beaurepaire. Uma coisa leva a outra, e logo os dois amigos formavam pares com madame e uma de suas garotas, primeiro na mesa, depois na cama: "Ela tinha uma cama no quarto; e lá estávamos nós, transando juntos" (19).
Uma cena de taverna semelhante envolveu a compra simbólica de uma mulher. Bussie, amigo de Ménétra, vidraceiro como ele, tinha seduzido a mulher do patrão. Mas eles romperam, e ela ficou atraída por Ménétra. Quando Bussie o colocou a par da situação, em uma taverna, Ménétra respondeu: "Já que você está me dizendo que está tudo acabado entre vocês, eu a comprarei de você por uma garrafa e uma salada. Ele acreditou em mim, e nós partimos na esperança de nos tornarmos irmãos o mais breve possível" (20). Este ritual pode ter sido uma variação ou uma paródia da venda de mulheres, que E.P. Thompson e Lawrence Stone identificaram como uma forma popular de divórcio (21). No caso de Ménétra e Bussie, parece especialmente picante o fato de que a "mercadoria" pertencia ao patrão ("le bourgeois", como os trabalhadores o chamavam). Mas o que interessa é que, por dividirem a mesma mulher, Ménétra e Bussie se tornaram "irmãos".
Há um elemento de classe nesta forma de "Bruderschaft", já que ela criava fortes laços entre jornaleiros e frequentemente os unia contra os patrões. Nada era mais engraçado para Ménétra -ou para Nicolas Contat, outro caso raro de artesão que escreveu uma autobiografia (22)- do que ver um "bourgeois" traído pela mulher com seus empregados. Mas compartilhar uma mulher podia transcender a separação entre mestre e jornaleiro, que não era tão profunda quanto a divisão entre capitalista e proletário na era industrial. Ao transar com a cozinheira de um comerciante parisiense, Ménétra soube que ela também ia para a cama com seu "bourgeois", um tipo jovial que às vezes o convidava para um drinque. Num desses encontros na taverna, ele deu a entender a Ménétra que "eles eram mais do que amigos" (23): por dormirem com a mesma mulher, haviam se tornado irmãos.
Depois de seduzir outra cozinheira, que conheceu por intermédio de um cirurgião-barbeiro e um carpinteiro da Gasconha, Ménétra descobriu que tinha contraído gonorréia. Ele adotou um remédio popular, que incluía abstinência e moderação no consumo de vinho. Enquanto se submetia a esse tratamento, Ménétra fez uma caminhada num domingo com os dois homens da Gasconha. Eles pararam para matar a sede numa taverna:
"Eles colocavam água no vinho. Eu também coloquei. Eles trocaram olhares, sorriram e disseram que eu não costumava fazer isso. Eu fiquei rubro e queria dissuadi-los do que estavam pensando. O cirurgião me disse: (aqui, há uma palavra ilegível no manuscrito) 'Estou certo de que você transou com a cozinheira de madame fulana de tal'. 'Sim', eu disse. Ele respondeu, apontando para o carpinteiro: 'Ele também'. O outro acrescentou: 'E ele também'. Eu respondi: 'Então aqui estão três irmãos, todos os três infectados pelos favores apimentados daquela Circe que oferecia tanta resistência'. Nós três proclamamos nosso desejo comum de que ela fosse para o inferno. Depois de mais conversa, o cirurgião disse: 'Meus irmãos, nós vamos nos recuperar, os três, seguindo o mesmo tratamento'±" (24).
A doença venérea reforçou o sentimento de fraternidade, porque os três "irmãos" a haviam contraído da mesma fonte.
O chocante machismo das memórias de Ménétra não deve ser tomado literalmente como uma evidência de como trabalhadores do sexo masculino tratavam as mulheres no Antigo Regime, embora talvez não se distancie da realidade. Como todos os textos, o de Ménétra se enquadra em certos gêneros. Estes são particularmente interessantes no caso de Ménétra, porque envolvem uma mistura peculiar de tradições orais e escritas: a jactância sexual, a narrativa extravagante e as brincadeiras burlescas dos encontros entre homens, combinadas com o "conte" de Boccaccio, a farsa de Rabelais, a picaresca literatura de cordel e o romance erótico. O entendimento do "Journal de Ma Vie" também depende de convenções implícitas compartilhadas pelo autor/ator e pelo leitor/público. Ménétra constrói sua história utilizando dispositivos retóricos padronizados e uma narrativa convencional. Sua história não pode simplesmente ser descartada como uma aberração produzida por uma imaginação especialmente falocrática, porque o relato da caça às mulheres se utiliza de muitos aspectos da cultura ambiente.
Desta forma, por sua individualidade, o "Journal de Ma Vie" é um produto social, construído a partir das formas culturais disponíveis a um vidraceiro na França do século 18. Não importa que Ménétra talvez não tenha causado um grande estrago na população feminina da França, estuprando e seduzindo como ele proclamava, ou que seu comportamento não representava exatamente os padrões de comportamento do Antigo Regime. Suas "escapades" são padrões de cultura. Elas revelam as dimensões simbólicas do mundo habitado pelos machos na França do século 18 e sugerem que os homens estabeleciam fraternidade entre si caçando mulheres, mesmo que isto ocorresse principalmente no plano da fala, compartilhando fantasias masculinas mais frequentemente do que corpos de mulheres.
Depois de ter escrito grande parte da sua autobiografia, Ménétra se envolveu com a Revolução. Tornou-se um típico sans-culotte e participou ativamente do movimento seccional durante o Terror. Olhando retrospectivamente, sua infância em Paris e suas andanças na França durante sete anos parecem tê-lo preparado perfeitamente para o sans-culottismo -seus encontros turbulentos, banquetes fraternais, hipérbole retórica e hostilidade às mulheres, exceto como fontes de comida e sexo. O valor supremo dos sans-culottes, não apenas igualdade, mas "égalité des juissances" (igualdade de gozo) (25), expressava a visão de mundo de Ménétra, impregnada de sexualidade. Os sans-culottes estabeleciam fraternidade entre si não somente cerrando fileiras em defesa da República, mas também bebendo e frequentando prostitutas -e talvez até na violência obscena dos Massacres de Setembro, apesar de eu considerar esta idéia repulsiva e esperar que ela seja incorreta.

Os perigos deste tipo de história obviamente fazem este historiador em particular sentir-se constrangido. Eu concordo com aqueles que argumentam que o distante tom olímpico em narrativas na terceira pessoa frequentemente esconde uma inclinação pessoal; que é inevitável que observadores se envolvam com aquilo que observam; que os historiadores, como os antropólogos, precisam se engajar numa relação dialógica com seu objeto (26). Eu também confesso que simpatizo com a trindade de valores da Revolução. Não tenho qualquer desejo de macular a noção de fraternidade ou de fazer com que a "fraternité" seja suprimida dos frontões de edifícios públicos na França. Mas quero compreendê-la como um ingrediente da cultura popular plebéia do século 18 -algo tão estranho a nós como a caça a cabeças entre os Ilongot e a circuncisão feminina entre os iorubas.
É claro que a versão de Ménétra da fraternidade não esgota o conceito. Em grande medida, o ideal revolucionário constituiu-se a partir de outras fontes, em particular o cristianismo e a maçonaria. Por outro lado, muito do ideário de Ménétra pode ser atribuído à sua mente peculiar. Seria abusivo construir uma mentalidade coletiva a partir de um único documento, especialmente em se tratando de um tão incomum como a autobiografia de um trabalhador do século 18. Mas é também preciso considerar que toda autobiografia representa uma tentativa de dar sentido à vida, e o faz lançando mão de significados disponíveis em seu contexto social.
Consideremos as tentativas de um outro biógrafo de si, ainda mais idiossincrático do que Ménétra, de conferir sentido a sua vida. Jean-Jacques Rousseau escreveu suas "Confessions" mais ou menos no mesmo período em que Ménétra compôs a parte central do "Journal de Ma Vie". Se acreditarmos neste último, os dois se encontraram em Paris, passearam juntos pelos jardins do Palais Royal e jogaram xadrez no Café de la Régence (Ménétra perdeu). A julgar pelas referências no texto de Ménétra e outros escritos seus, ele assimilou muitas das idéias de Rousseau. Essas idéias também aparecem no rousseaunismo popular desenvolvido pelos companheiros sans-culottes de Ménétra, de forma que não é surpreendente encontrar esta tendência no "Journal de Ma Vie". O que é surpreendente é ler a autobiografia de Rousseau tomando Ménétra como referência.
Em suas "Confissões", Rousseau narra uma "escapade" arquitetada por seu melhor amigo, um secretário na embaixada da Espanha chamado Carrio, durante sua estada em Veneza:
"Carrio estava sempre cortejando mulheres. Cansado de estar com aquelas que já eram ligadas a outros homens, ele teve a idéia de ter uma que pertencesse a nós dois. Eu concordei. O problema era encontrar uma de qualidade assegurada. Depois de muito procurar, ele descobriu uma menina de 11 ou 12 anos de idade, que estava sendo posta à venda por sua infame mãe" (27).
Exatamente como no caso de Ménétra e Gombeaut, Rousseau e Carrio consolidaram sua amizade comprando uma prostituta. É verdade que Rousseau nunca dormiu com "la petite Anzoletta", porque ela não tinha ainda atingido a puberdade. Ele e seu sócio pagaram pequenas somas à mãe da menina, aguardando o dia em que tomariam plena posse da sua propriedade comum. Rousseau deixou Veneza antes de a propriedade estar madura.
Após seu retorno a Paris, Rousseau viveu como o sobrinho de Rameau, dos restos de mesas mal postas. Uma dessas mesas pertencia a Emanuel-Christoph Klüpfel, um pastor de Geneva, do círculo do príncipe da Saxônia-Gotha. Klüpfel também mantinha uma menina, e uma vez mais a comensalidade levou à sexualidade partilhada e a laços entre homens, desta vez entre Rousseau e seu amigo mais próximo àquela época, Friedrich-Melchior Grimm. Nas "Confessions", Rousseau conta como ele e Grimm encontraram Klüpfel por acaso:
"Certa noite, ao entrar num café, nós o encontramos saindo para jantar com ela. Nós fizemos troça dele; ele respondeu de forma galante, convidando-nos a participar do jantar e, assim, por seu turno, fez troça de nós. A pobre garota me pareceu ter bom coração, ser muito doce e não se adaptar bem ao seu papel, para o qual ela havia sido o mais bem treinada possível por uma mulher parecendo uma bruxa que a acompanhava. A brincadeira e o vinho elevaram nossos espíritos, a ponto de nos esquecermos de nós mesmos. O bom Klüpfel não desejava ser moderado em sua hospitalidade e então nós três, um após o outro, nos retiramos para um quarto próximo com a pobre menina, que não sabia se devia rir ou chorar" (28).
Normalmente, não se associaria um grande clássico como as "Confessions" de Rousseau a um trabalho primitivo como o "Journal" de Ménétra. Ainda assim, eles são fruto da mesma cultura e seus autores pertenciam à mesma espécie, a do animal macho caçando fêmeas na França pré-revolucionária. Um estranho par, Ménétra e Rousseau. Entretanto, considerando-os juntos da perspectiva do geertzismo, pode-se ter uma nova visão dos sistemas simbólicos por meio dos quais os homens ordenavam suas vidas no estranho e cruel mundo da Europa do século 18.


Notas:
1. Clifford Geertz, "The Interpretation of Cultures" (Nova York, 1973), pág. 29.
2. Giovanni Levi, "I Pericoli del Geertzismo", Quaderni storici XX (Abril, 1995).
3. O texto foi publicado com um excelente comentário por Daniel Roche: "Journal de Ma Vie. Jacques-Louis Ménétra. Compagnon Vitrier au 18ème. Siècle" (Paris, 1982).
4. Os únicos trabalhos comparáveis para o final do século 17 e o século 18 são Alain Lottin, "Vie et Mentalité d'un Lillois Sous Louis XIV" (Lille, 1968) e Valentin Jamerey-Duval, "Mémoires - Enfance et Éducation d'un Paysan au 18ème. Siècle" (Paris, 1981). Alguns dos temas abordados por Ménétra também aparecem na conhecida autobiografia de Agricole Perdiguier, "Mémoires d'un Compagnon" (Paris, 1980).
5. Vide Peggy Reeves Sanday, "Fraternity Gang Rape: Sex, Brotherhood, and Privilege on Campus" (Nova York, 1990); Linda Brookover Bourque, "Defining Rape" (Durham, 1989); e Julia R. e Herman Schwendinger, "Rape and Inequality" (Beverly Hills, 1983).
6. O melhor estudo, apesar de não focalizar especificamente a fraternidade, é um ensaio de Richard Cobb, "The Revolutionary Mentality in France", in Cobb, "A Second Identity - Essays on France and French History" (Londres, 1969), págs. 122-141. Vide também Mona Ozouf, "Fraternité", in François Furet e Mona Ozouf (orgs.), "Dictionnaire Critique de la Révolution Française" (Paris, 1988), págs. 731-741, e Marcel David, "Fraternité et Révolution Française (Paris, 1978).
7. "Journal", pág. 202.
8. A narração de Ménétra de suas seduções em um convento, pelo qual ele havia sido contratado para consertar janelas quebradas, parece derivar de um episódio similar em "La Foutromanie", um romance erótico razoavelmente popular. Ménétra pode muito bem ter baseado outros episódios de sua autobiografia em obras semelhantes. Artesãos especializados eram em geral suficientemente letrados, e os romances eram em geral suficientemente simples, para que o material impresso pudesse penetrar na tradição oral dos jornaleiros. Na literatura popular, como a "bibliothèque bleue", o processo também ocorreu no sentido inverso: histórias da tradição oral foram adaptadas para narrativas impressas. Vide Marc Soriano, "Les Contes de Perrault: Culture Savante et Traditions Populaires" (Paris, 1968), e Roger Chartier, "Lectures et Lecteurs dans la France d'Ancien Régime" (Paris, 1987).
9. "Journal", pág. 95. Eu adicionei pontuação e simplifiquei a sintaxe.
10. Ibid., págs. 172-173.
11. Vide especialmente Foucault, "The Order of Things - An Archeology of the Human Sciences" (Nova York, 1973), que apresenta os mesmos perigos que o geertzismo.
12. "Journal", pág. 67.
13. Ibid., pág. 53.
14. Ibid., pág. 103.
15. Ibid., pág. 87.
16. Ibid., pág. 131.
17. Ibid., pág. 168.
18. Ibid., pág. 240.
19. Ibid., pág. 241.
20. Ibid., pág. 201-202.
21. Lawrence Stone, "The Road to Divorce - England 1530-1987" (Oxford, 1990), págs. 143-148.
22. Vide Nicolas Contat, "Anecdotes Typographiques Où l'On Voit la Description des Coûtumes, Moeurs et Usages Singuliers des Compagnons Imprimeurs", ed. Giles Barber (Oxford, 1980), e Robert Darnton, "The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History" (Nova York, 1984), cap. 2.
23. "Journal", pág. 198.
24. Ibid., págs. 215-216.
25. A expressão pode ser traduzida como igualdade no gozo das boas coisas da vida, exceto pelo fato de que "jouissance" também sugere prazer sexual, particularmente orgasmo. Para um discussão aprofundada da ideologia sans-culotte, vide Albert Soboul, "Les Sans-culottes Parisiens En l'An II" (Paris, 1958). Para uma abordagem mais estritamente freudiana da fraternidade revolucionária, vide Lynn Hunt, "The Family Romance of the French Revolution" (Berkeley, 1992).
26. Para discussões exemplares desses temas, que parecem preocupar mais os antropólogos do que os historiadores, vide James Clifford e George E. Marcus, "Writing Culture - The Poetics and Politics of Ethnography" (Berkeley, 1986); James Clifford, "The Predicament of Culture - Twentieth-Century Ethnography and Art" (Cambridge, Mass., 1988); James Boon, "Other Tribes, Other Scribes: Symbolic Anthropology in the Comparative Study of Cultures, Histories, Religions, and Texts" (Cambridge, Mass., 1982); Renato Rosaldo, "Culture and Truth: The Remaking of Social Analysis" (Boston, 1989); Clifford Geertz, "Works and Lives - The Anthropologist as Author" (Stanford, 1988); e Clifford Geertz, "After the Fact - Two Centuries, Four Decades, One Anthropologist" (Cambridge, Mass., 1995).
27. Rousseau, "Les Confessions" (Classiques Garnier Edition, Paris, 1964), pág. 380.
28. Ibid., págs. 420-421.


Robert Darnton é historiador e professor da Universidade de Princeton (EUA). Publicou no Brasil, entre outros, "O Massacre dos Gatos" e "Edição e Sedição" (Companhia das Letras).
Tradução de João José Reis e Lígia Bellini.




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