São Paulo, domingo, 6 de julho de 1997.



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O MESTRE DO TEATRO

O crítico recorda uma das fases menos divulgadas de sua trajetória


Os anos de formação

da Reportagem Local

Décio de Almeida Prado viu as primeiras peças ainda nos anos 20. Mas educou-se esteticamente no teatro durante os anos 30, ao lado de Paulo Emilio Salles Gomes, amigo desde o primeiro ano do ginásio, posteriormente crítico de cinema.
Conheceu os modernistas, viajou à França, onde viu o novo teatro dos encenadores, foi ator e diretor. Em entrevista, recorda uma das passagens menos conhecidas de sua trajetória: os primeiros passos no teatro, até chegar à crítica. (NELSON DE SÁ)


Décio de Almeida Prado - Eu gostava de teatro, seguia teatro. Paulo Emilio também. Nós dois juntos. Em 1935 ele fez uma revista chamada "Movimento" e me colocou como diretor. Tínhamos 18 anos. Paulo Emilio publicou um número e teve uma atividade intelectual grande, aqui. Fizemos um clube que reunia as pessoas modernistas daquele tempo. Foi o momento em que ficamos conhecendo Mário de Andrade, Oswald de Andrade. Houve um momento, que foi abafado pelo golpe de 37.
Folha - Paulo Emilio foi preso.
Almeida Prado -
Depois ele foi para a França. Estava lá há quase dois anos quando, no começo de 39, eu também fui. Fui, naturalmente, da maneira mais barata possível. Viajando em navio, classe turística. O Paulo Emilio morava num quarto, arranjou outro para mim e outro para um primo meu. Comíamos em restaurantes de estudantes. Ele tinha amigos de todas as nacionalidades, mexicanos, romenos. Quando chegamos, ele tinha mandado uma carta dizendo que não estaria em Paris, mas nos mandava uma amiga, uma moça persa, de 18 anos. "Para não ter perigo de vocês se perderem, ela vai esperar com uma lista telefônica na mão esquerda e uma banana descascada na mão direita" (ri).
Folha - O sr. foi com o propósito de ver teatro?
Almeida Prado -
Nós quatro andávamos dia e noite juntos, para cá, para lá, vendo coisas. Vi cinema, vi uma leitura feita pelo Jacques Copeau, o grande teórico do teatro francês do começo do século, e vi os espetáculos do grupo de encenadores modernos. O que existia mais era o teatro de bulevar, a comédia ligeira. Correspondia ao que existia no Brasil, um teatro comercial. Mas havia quatro encenadores novos, que formaram o que chamavam de Cartel. Eram (Louis) Jouvet, (Charles) Dullin, (Gaston) Baty e (Georges) Pitoeff.
Folha - O sr. assistiu espetáculos dos quatro? O que viu?
Almeida Prado -
Eu assisti, do Pitoeff, uma peça de Tchecov, "A Gaivota". A mulher do Pitoeff era uma grande atriz, embora falasse, como ele, com um pouco de sotaque russo. Eles tinham saído da Rússia por causa da revolução. Do Baty, eu vi uma peça famosa, sobre realidade e aparência, aquilo que é ilusão. Do Jouvet, vi uma peça de um autor jovem, que, afinal, não teve muita importância, e vi "Knock", um grande sucesso dele na década de 20, que ele remontou. E de Dullin vi uma peça do (Armand) Salacrou, um escritor moderno. Isto é, eu vi as coisas mais atuais. Fora algum teatro de vanguarda que havia, umas coisas muito pequenas.
Folha - Sempre levado pelo Paulo Emilio?
Almeida Prado -
Levado pelo Paulo Emilio. Ele estava bem a par.
Folha - O que havia de inovação nas encenações?
Almeida Prado -
O teatro de bulevar era já muito codificado. Em geral, um cenário só, uma peça de fundo realista, geralmente numa sala, em três atos. Mas os atores eram bons. Eram os atores que faziam mais sucesso, pessoalmente, enquanto que esse teatro de encenadores já não era baseado no sucesso do ator. Era baseado no grupo, a idéia era o grupo. Por exemplo, a peça do Baty tinha talvez 20, 30 personagens. A novidade era a encenação como um conjunto. E as peças já não eram feitas em moldes tão rigorosos. O "Knock" era uma comédia, mas mais em termos clássicos, com grande simplificação das linhas. E o público começava a ir ver a encenação, que era a novidade. Como foi também, depois, no Brasil.
Folha - Eu me lembro de o sr. falar que, nas críticas, insistiu muito na idéia do texto. E que, no fim, a renovação foi mesmo o encenador, e não o autor. Como foi a sua reação à chegada do encenador?
Almeida Prado -
Não, aí é diferente, porque naquele momento a idéia do encenador estava ligada à do autor. É o que o Jouvet desenvolve. O encenador tem papel importante, mas o papel dele é interpretar o texto. O Jouvet dizia que o poeta é o criador. Agora, para passar a criação ao palco entrava a imaginação do encenador, juntamente com o cenógrafo. A cenografia desses espetáculos era muito diferente da cenografia do teatro de bulevar. O teatro de bulevar era uma sala...
Folha - Um sofá.
Almeida Prado -
É. E roupa, em geral, moderna, porque as peças se passavam na modernidade. Só que no palco as roupas eram mais teatrais. O grande ator daquele momento, autor também, é o Sacha Guitry. Diziam que ele era uma pessoa muito teatral fora do palco e muito natural no palco (ri). Esse era o teatro de bulevar. Já o cenário do Jouvet era feito com muito mais imaginação, mais fantasia. Um dos espetáculos famosos que o Jouvet fez, alguns acham que foi o melhor feito na França entre as duas guerras, foi uma peça de Molière que se passava em dois lugares. O cenário tinha um espaço que se abria e se fechava. Um cenário só, móvel, resolvia os dois espaços cênicos. Isso era feito em linhas simples, modernas, mas por sobre esse cenário ele colocou velas, como na época de Molière, em que a encenação era dada por lustre, cheio de velas. Aquilo lembrava as coisas do século 17. As roupas também.
Folha - Quebrando o naturalismo.
Almeida Prado -
O Jouvet desenvolvia isso, que eu desenvolvo também naquela primeira crítica grande que escrevi no "Clima". Quer dizer, o fim do naturalismo, do naturalismo como cópia da realidade, e o início de um teatro mais aberto para a imaginação, mais poético. Esse era o ponto de vista do Copeau, do Copeau passou para o Jouvet e do Jouvet passou para mim. Um teatro mais poético, em contraste com o realismo naturalista da comédia de bulevar.
Folha - Foi o que o sr. trouxe para cá, nos anos 40?
Almeida Prado -
É. Então, eu tive esse preparo, que eu vi muito teatro na França, realmente. E quando comecei a fazer teatro aqui, eu sabia mais ou menos os fins, mas não dominava os meios. Minha experiência era grande, mas só da platéia. Aliás, de palco eu tinha participado de um espetáculo do Alfredo Mesquita, em 39.
Folha - Qual era a peça?
Almeida Prado -
Era chamada "Dona Branca". Eu fazia até o principal papel, de um poeta, que morre no fim. (ri)
Folha - Um jovem poeta?
Almeida Prado -
É, é uma história, assim, meio romântica. Ele me convidou porque sabia que eu tinha uma experiência em teatro. Na faculdade de filosofia, o professor Georges Raeders montou "Les Précieuses Ridicules", de Molière, com os alunos de francês. Para completar o espetáculo, montou uma peça de Júlio Dantas, "A Luva", e eu fiz um pequeno papel. O Alfredo sabia e me convidou. Mas um espetáculo amador, em São Paulo, era uma coisa ainda incipiente. Faltava-se muito aos ensaios. Havia muita conversa. O espetáculo do Alfredo Mesquita, por exemplo, nós ensaiávamos na casa dele, à noite. Era muito agradável, havia uma prosa grande, moças e rapazes. Serviam chá. Agora, quando eu fiz o Grupo Universitário de Teatro, o GUT, já não foi nesses moldes sociais.
Folha - Como diretor do GUT, o sr. declinou de montar "Vestido de Noiva", de Nelson Rodrigues, antes da montagem do Ziembinski. Também Oswald de Andrade queria que o sr. montasse "O Rei da Vela". Os dois vieram a ser reconhecidos como os grandes autores de teatro daquele momento. O que o sr. trazia de esteticamente novo, para levar a tanto interesse?
Almeida Prado -
Bom, porque esse teatro novo estava muito no início. E o Nelson Rodrigues não mandou diretamente a mim. Foi o Clóvis Graciano, que fazia cenografia de teatro amador, que esteve no Rio e trouxe o texto. Eu li e achei difícil para fazer, evidentemente. Logo depois, soube que ela estava sendo ensaiada no Rio, com o Ziembinski na direção. Aí ficamos aguardando. Diante do sucesso do Ziembinski, o meu papel de diretor amador desapareceu. É o momento em que entram os profissionais estrangeiros. Então, por que eles me procuravam? Oswald de Andrade, por exemplo. Nós tínhamos feito um espetáculo.
Folha - Gil Vicente.
Almeida Prado -
Eram três peças. Como programa, era bem interessante, porque tinha uma peça de Gil Vicente, que seria o início do teatro em língua portuguesa, tinha Martins Pena, que seria o começo da comédia brasileira, e eu procurei alguém que escrevesse uma peça no mesmo tom de comicidade popular. O Mário de Andrade indicou o Mário Leme, que era jornalista, trabalhava no "Estado de S. Paulo". O espetáculo foi apresentado e o Oswald até escreveu sobre ele uma crônica muito elogiosa, acho até que elogiosa demais.
Folha - Cacilda Becker trabalhava na peça?
Almeida Prado -
Cacilda trabalhava, exatamente. Fazia o papel da prostituta, já mais velha, que encaminhava as moças para os padres. Mas, logo depois, o Oswald mandou me oferecer, se eu queria fazer a peça... Primeiro, que a censura não deixaria. Nós estávamos em 1943, uma ditadura. Por exemplo, no meu espetáculo tinha uma cena em que a atriz, a Cacilda, deveria se debruçar pela janela e aparecer apenas o traseiro dela. "Não pode. Proibido. Traseiro não pode." Quer dizer, você imagina a peça do Oswald de Andrade sendo apresentada. Seria impossível. Além disso, achei a peça ultrapassada, porque correspondia muito ao modernismo de 1920 até 1930, e nós estávamos na década de 40. Na verdade, depois ficou demonstrado que o texto funcionava, mas desde que se voltasse ao espírito destrutivo da década de 20. Em 68, de volta esse espírito, a peça funciona. Num certo sentido, como antipeça, uma peça escrita, não como as outras, mas em oposição às outras.
Folha - Por que Oswald de Andrade gostou da sua encenação?
Almeida Prado -
Pensando bem, depois, vi que a primeira peça, "Auto da Barca do Inferno", foi a primeira montagem em termos modernistas que se fez em São Paulo. Aqui, com companhia nacional, era a primeira vez. Os cenários e as vestimentas eram do Clóvis Graciano, um pintor moderno. E era feito, assim, de uma maneira bem moderna. Por exemplo, o Anjo, que, em vez de uma mulher, foi feito por um homem, e com asas de celulóide. Também o Diabo. Havia um rosto com barba pintado no corpo do Diabo. A barba, então, se localizava num lugar que parecia meio impróprio (ri). Enfim, foi feito nesse espírito. E a iluminação era toda moderna, feita, em parte, pelo Lourival Gomes Machado.
Folha - Como foi, em 46, a estréia como crítico no "Estado"? O sr. adotou de início uma postura mais programática ou combativa, diante do teatro dos comediantes, das grandes estrelas de comédia, como na França.
Almeida Prado -
Naquele momento o teatro estava muito pobre, em São Paulo. Nós tínhamos, praticamente, só dois teatros em funcionamento constante. Um era o Municipal, mais ocupado pela música, e o outro era o Teatro Santana, que acolhia as grandes companhias brasileiras e o teatro de revista, que fazia muito sucesso. Eu representava um ponto de vista, sem dúvida, que era o das pessoas que queriam renovar o teatro. O teatro profissional, naquela época, era muito voltado para o público comum, tinha um público especializado que era pouco exigente, do ponto de vista artístico. Que ia lá sobretudo para dar risada, com o Procópio (Ferreira), com outros. Aí é que houve o problema. Veio a companhia da Eva Todor.
Folha - Que era do Rio?
Almeida Prado -
Essas companhias se formavam no Rio e depois percorriam o Brasil. São Paulo era o segundo mercado. E veio a companhia da Eva Todor e fez um teatro ligeiro, conforme se fazia então, e eu já queria um outro teatro, tinha outras exigências. E fiz a crítica, não sei se desfavorável, mas uma crítica severa. O publicitário da companhia, que, ao mesmo tempo, tinha ligações no jornal, foi lá reclamar ao doutor Júlio de Mesquita Filho. O "Estado" sempre tinha uma linha generosa com o teatro, exatamente porque não dava muita importância ao teatro. Ele criticou, e o doutor Júlio me chamou para uma explicação. Aí eu disse a ele: "Olha, há no momento uma grande mudança de linhas de teatro, está se propondo uma coisa nova, e eu sou favorável a esse tipo de teatro renovado". Isso foi em 46, eu tinha 29 anos e já estava em andamento a renovação do teatro, que eu exprimi através da crítica.




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