São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ 3 questões Sobre Nietzsche

1. Qual a importância de sua obra para a filosofia ocidental?
2. Qual seu principal legado para o século 20?
3. Vive-se hoje em uma época nietzschiana?

Benedito Nunes responde

1.
Isso corresponde a mais de um capítulo, a mais de um livro de filosofia. Que começaria pelos pré-socráticos, subiria aos instintos primários, de formação estética e, logo, a vontade de poder, o aspecto político, passando pela crítica do homem teórico contemplativo e, consequentemente, também pela distância entre pensamento e vida, o processo de decadência da cultura e o niilismo.

2.
São tantos os legados que é impossível apontar um principal. Pela primeira vez a filosofia recebeu um legado não-filosófico -ou antifilosófico. Pela primeira vez a filosofia se fez por via "destrutiva". E pela primeira vez a filosofia passou a ser aturdida pela linguagem filosófico-poética. E por que não dizer que o pensamento nietzschiano foi o primeiro a consagrar a união nupcial da filosofia com a poesia?

3.
Nietzsche jamais considerou satisfatória a demolição dos ídolos -ou a simples demolição dos ídolos- nem tampouco a desvalorização de todos os valores. O que domina hoje não é dele: a mediocridade ("mansa e mesquinha") e os fracos impulsos. Quem praticaria a "virtude radiante" prelecionada por Zaratustra? Não temos hoje o super-homem, mas a sua caricatura.

Roberto Romano responde


1.
Quando um filósofo produz, nele se condensam os contributos de todos os pensadores pretéritos, recusados ou assumidos em seus textos. O estilo aforístico de Nietzsche capta as fraquezas e forças dos mais diferentes sistemas e perspectivas. Nas linhas do pensador, que aplica o martelo como arma eficaz, Platão vive, em anamorfose, desfigurado pelas interpretações espiritualistas e cristãs. O platonismo atacado por Nietzsche é discutível, não sendo a sua leitura algo "definitivo".
Muita coisa semelhante pode ser enunciada sobre Spinoza, lido e admirado por Nietzsche, sobre Voltaire etc. O mesmo ocorreu com os escritos nietzschianos, como "O Nascimento da Tragédia", obra romântica repetida como ladainha pela massa dos incultos, sobretudo a distinção, depois modificada por Nietzsche, entre o "apolíneo" e o "dionisíaco". Os textos ordenados por Colli e Montinari mostram uma erudição imensa, o exato contrário do pedantismo, o que define um diálogo real (sem irenismos ou recusas simples) com a tradição filosófica. O autor do " Livro do Filósofo" mudou a maneira de ler e de interpretar os filosofemas. Tem razão Paul Ricoeur ao situá-lo, entre Freud e Marx, na lista dos "mestres da suspeita".

2.
Apesar dos tolos que afirmam ser a obra de Nietzsche a expressão "dos jornais alemães conservadores de seu tempo" e também apesar dos "novos filósofos", que o utilizaram (e utilizam) no mercado da fama e dos lucros para defender um irracionalismo barato, produto a ser consumido na TV e nas revistas de moda, os livros de Nietzsche, tendo sofrido as torturas e a rapina dos nazistas (como os de Marx sofreram os estupros stalinistas), ajudam a pensar velhos e novos problemas humanos, como a vontade, imaginação, poesia, ciência, os preconceitos morais, as fraudes dos múltiplos fanatismos.

3.
Vive-se uma época não-nietzschiana na medida em que o ressentimento, a perda de valores, a covardia das massas e a mentira dos dirigentes, a banalidade e todo o séquito dogmático das religiões ainda produzem, e cada vez mais, rebanhos humanos em massa formidável. Vive-se hoje, nas instituições universitárias por exemplo, "a ilusão, a lisonja, a mentira e o engodo, o comadrio, os ares de importância, o lustre de empréstimo, e a máscara, o véu da convenção..." ("Livro do Filósofo", 2). Estamos na época da mídia, do mediano, do vulgar em rede mundial de comunicações. Na cozinha do espírito, reina a oferta sem limites de alimentos de gosto e nascimento duvidosos. Contra isso já nos preveniram os aristocráticos Platão, Spinoza e, com eles, Nietzsche. O que não é pouco!

QUEM SÃO

Roberto Romano
É professor de ética e filosofia política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Autor de "Conservadorismo Romântico" (Ed. Unesp) e "Silêncio e Ruído - A Sátira em Denis Diderot" (Ed. da Unicamp), entre outros.

Benedito Nunes
É crítico e professor de literatura na Universidade Federal do Pará. Autor de "Hermenêutica e Poesia - O Pensamento Poético" (Ed. da UFMG) e "Crivo de Papel" (Ed. Ática), entre outros.



Texto Anterior: Os dez +
Próximo Texto: Paulo César de Souza: Os lugares de Nietzsche
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.