São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2000 |
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Autor colecionou estigmas no século 20, de chauvinista a precursor do nazi-fascismo A genealogia dos preconceitos
por Oswaldo Giacoia Junior
Tais ousadias custaram ao filósofo mal-entendidos em sentidos opostos: ódios inveterados ou precipitadas adesões entusiásticas. Facilitaram, desse modo, identificações ideológicas antitéticas, variando entre sua exaltação como anarquista ultralibertário, arauto pós-moderno da contracultura até o célebre discurso de Mussolini ao parlamento italiano, em que o "Duce" se auto-proclamava discípulo de Zaratustra. Nem macho chauvinista nem racista defensor da escravidão, muito menos conservador-revolucionário ou aristocrático-anarquista. A crítica de Nietzsche visava a denunciar -muitas vezes por meio do exagero caricatural -uma interpretação tacanha do conceito de igualdade, como se este implicasse nivelamento e uniformização, supressão de distâncias e diferenças. Num dos casos, a ironia se dirige a uma espécie de diluição e perda irreversível do feminino; no outro, à hipocrisia latente na moderna exaltação da dignidade do trabalho, quando este é realizado em condições degradantes de repetição mecânica, impessoalidade e alienação, em que o discurso da igualdade dissimula a exploração brutal, a reificação absoluta do trabalhador. Constata-se, pois, a que ponto alcança a extensão do preconceito. Tanto mais violento, quanto mais duros os golpes que Nietzsche vibrou em nossa entranhada má consciência. Com sua impiedosa crítica da moral, ele pretendia trazer à luz os interesses, os jogos de poder e dominação, os investimentos de desejo, a idiossincrasia e estupidez transfigurados em nossos valores mais sublimes. Assim fazendo, revolvia as mais dolorosas e bem protegidas feridas narcísicas da alma moderna, desmascarando a impostura travestida em ideal. Provocações de fachada Nunca lhe faltou consciência da proscrição a que se autocondenava: "Vá embora dessa cidade, oh Zaratustra... Muitos são os que aqui te odeiam. Odeiam-te os bons e justos, eles te consideram seu inimigo e desprezador; odeiam-te os crentes da justa fé e consideram-te o perigo da multidão". Com efeito, odiamos quem se obstina em manter presente a nossos olhos a mesquinhez que nos esforçamos por ocultar. Por essa razão, a dissonância das fórmulas é uma tentativa desesperada de alerta e um chamamento ao exercício da crítica radical. O infinito cortejo de mal-entendidos sobre Nietzsche tem origem não somente em seu estilo literário, mas também na estratégia retórica de sua filosofia. Nela as máscaras, a pele, a superfície desempenham um papel fundamental. Como provocações, elas são, antes de tudo, fachadas. Por um lado, despertam, exigem a atenção pelo cinismo petulante; por outro, ofuscam o juízo apressado, velando o íntimo sagrado de sua filosofia, e têm a missão de manter afastado dali todo aquele que é incapaz de probidade intelectual. O leitor, porém, que renuncia ao papel de filisteu moralmente indignado ou de donzela pudica ultrajada pelo escárnio de certas formulações, pode caminhar um pouco com Nietzsche e entender por que ele se faz vivamente presente como nosso valoroso companheiro de viagem. Seus escritos são, em verdade, uma escola de emancipação do pensamento. Como se inscreve no subtítulo de "Assim Falou Zaratustra", suas obras são para todos e para ninguém. Para todos, porque a filosofia de Nietzsche não se condena a um hermetismo léxico de iniciados, mas se apresenta numa profusão de estilos, que desconcerta e encanta. Para ninguém, pois é difícil atravessar as fachadas deslumbrantes, não ceder às provocações ruidosas, para só então penetrar no âmago silencioso das trágicas vivências que estão na base dessa filosofia. É aqui que somos confrontados com o que Nietzsche mais preza e cultua: a autenticidade de um si mesmo. É para isso que ele nos concita: a que nos afastemos das unanimidades cômodas, pacificadas e estúpidas, pois filosofar é, para Nietzsche, assumir a responsabilidade de pensar por si mesmo, transformar em luz e espírito o sangue de nossas paixões e sofrimentos mais terríveis. Nietzsche foi, na verdade, o mais radical adversário do rebaixamento do homem, da uniformização gregária promovida pela sociedade de massas surgida com a revolução industrial. Com uma força profética impressionante, ele antecipou os perigos da desertificação do espírito, quando a cultura se torna mercadoria e a paciência do conceito cede o passo ao frenesi sensacionalista da indústria cultural. Ao chocar, a escrita de Nietzsche pretende proteger sua intimidade, manter fora do alcance de mãos grosseiras seu núcleo espiritual frágil e delicado. Quem apenas se deixa seduzir pelo fascínio das metáforas, ou demasiadamente rápido se arvora em guardião da ortodoxia, fica paralisado pelo sortilégio do disfarce, aceita, no mau sentido, a provocação. Em ambos os casos, ainda não ascendeu à tarefa de um tipo de pensamento que não tem compromisso senão com a autenticidade. É unicamente para lá que Nietzsche, sem pressa, pretende conduzir seu leitor. Atirar contra a moral Em sua "Dialética do Esclarecimento", Adorno e Horkheimer ressaltam precisamente esse aspecto: "Os escritores sombrios da burguesia não cuidaram, como seus apologetas, de contornar as consequências do Esclarecimento por meio de doutrinas harmonizantes. Eles não ocultaram que a razão formalista estaria em estreita conexão tanto com a moral como com a não-moral. Enquanto os (escritores) luminosos protegiam por denegação a ligação insolúvel entre razão e crime, entre sociedade burguesa e dominação, os escritores sombrios proclamavam, sem consideração, a verdade chocante". Pouco destacada em meio à artilharia pesada de "Crepúsculo dos Ídolos", livro em que Nietzsche acirra a polêmica contra a moral cristã, a democracia e o socialismo, encontramos uma pista preciosa: "Se nós, os imoralistas, causamos dano à virtude? Tanto quanto os anarquistas o fazem aos príncipes. Só depois que se atira contra eles é que eles voltam a estar firmemente assentados em seu trono. Moral da história: é preciso atirar contra a moral". Sim, para ler Nietzsche adequadamente, é necessário, antes de tudo, perder o medo dos riscos que acompanham as experiências do pensamento. Oswaldo Giacoia Junior é professor livre-docente de filosofia da Universidade Estadual de Campinas, autor de "Nietzsche" (Publifolha) e "Labirintos da Alma" (Ed. da Unicamp). 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