São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2000


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Biografias e análises estilísticas têm deixado em segundo plano as idéias do autor
Um século depois, ainda um extemporâneo

por Scarlett Marton

Há cem anos Nietzsche era o centro das atenções. Em setembro de 1888, começou a ser reconhecido. Alguns meses antes de sofrer o colapso psíquico em Turim, Georg Brandes relatava-lhe o sucesso das conferências sobre sua filosofia na Universidade de Copenhague (Dinamarca); August Strindberg participava-lhe a emoção causada pela virulência de suas palavras e coragem de suas idéias. De São Petersburgo e de Nova York, chegavam às suas mãos as primeiras cartas de admiradores. Com o fim da vida intelectual, veio a fama. Então, foi acima de tudo a sua biografia e o seu estilo que despertaram interesse. Acaso é tão diferente o quadro que se apresenta neste "fin-de-siècle"? Passados cem anos, estilo e biografia tornam a ocupar a cena. É bem verdade que, nesse ínterim, surgiram trabalhos de peso; a obra de Daniel Halévy e, depois, a de Curt Paul Janz examinaram, de modo abrangente e perscrutante, a vida do filósofo. Nos últimos tempos, porém, cresceu o número de textos biográficos; em geral são livros dispensáveis que nada acrescentam ao que já se sabe. Alguns chegam a prestar desserviço, expressando preconceitos e preferências de seus autores; outros, nem sequer verossímeis, não hesitam em flertar com a ficção. O que esperar, hoje, de uma biografia de Nietzsche? No meu entender, se ainda resta algo a fazer, é reconstituir seu percurso intelectual, resgatando seus referenciais teóricos, científicos e culturais, reinscrevendo-o em sua época. Tudo o mais já está feito.

Poeta, poeta-filósofo
Também é fato que, nas duas últimas décadas, apareceram escritos relevantes sobre o estilo de Nietzsche; basta lembrar a obra de Alexander Nehamas. Mas, a partir daí, começaram a proliferar trabalhos estilísticos de caráter diverso; com frequência abandonam quase por completo o exame das idéias do filósofo. Alguns limitam-se a analisar figuras literárias presentes em seus textos; outros restringem-se a compará-los com os de diferentes escritores. O que esperar, hoje, de um estudo que trate do estilo de Nietzsche? A meu ver, o que ainda está por fazer é explorar o vínculo indissociável entre o conteúdo filosófico e as formas estilísticas dos seus livros. Tudo o mais é supérfluo. No início do século 20, via-se Nietzsche sobretudo como poeta ou, no limite, poeta-filósofo. Foi só aos poucos que passou a haver consenso quanto à existência de uma filosofia nietzschiana; e, por muito tempo, duvidou-se de que ela pudesse comportar um sistema. Então, vieram a público trabalhos sistemáticos de capital importância; as obras de Jaspers, Löwith e Kaufmann, por exemplo, converteram-se em referenciais determinantes para a pesquisa das idéias de Nietzsche. Mais recentemente, porém, textos desse teor cederam lugar a estudos pontuais, que lidam com questões específicas em determinado livro ou até em determinadas passagens. Entendo que, se estes desempenham o seu papel, nem por isso se encontram em condições de substituir as visões de conjunto do legado nietzschiano. E ainda há muito o que fazer neste sentido. Por ocasião da Primeira Guerra Mundial, "Assim Falava Zaratustra", verdadeira bíblia, acompanhava os voluntários alemães que iam para o front. Hoje, dos livros de Nietzsche, é ele que chama mais a atenção. Nos últimos tempos, realizaram-se trabalhos de mérito a seu respeito; vale mencionar a obra de Annemarie Piepper e a de Laurence Lampert. Mas também ocorre que, levados pela aversão ou fascínio, estudiosos percam de vista a trama conceitual nele presente e nem sequer percebam o lugar que ocupa no contexto da filosofia nietzschiana. E, no mais das vezes, "Assim Falava Zaratustra" acaba por ensejar a mesma atitude de outrora: uma atitude entusiasmada ou preconceituosa. No correr do século, a obra de Nietzsche foi objeto dos mais diversos usos e apropriações. Recentemente, na França, pensadores da nova geração querem pensar com Nietzsche contra o nietzschianismo, voltando contra seus mestres, Foucault, Deleuze, Derrida e outros, as armas que estes lhes ensinaram a manejar. Ao combaterem o que julgaram ser uma apropriação ideológica, a de apresentar Nietzsche como o mestre da suspeita, limitam-se a substituir uma imagem sua por outra, com a agravante de que esta nova imagem, na verdade, reedita outras bem mais antigas: a de Nietzsche racista e anti-semita ou, na melhor das hipóteses, a de Nietzsche comprometido com o pensamento tradicional. E, nos Estados Unidos, estudiosos debatem em que medida Nietzsche, ao lado de Heidegger, se põe como pensador pós-moderno. Ao que tudo indica, nesse jogo de imagens e contra-imagens, seus escritos continuam simplesmente à espera de um leitor atento. Por outro lado, na França da década de 70, Deleuze, Lyotard e também Klossowski pareciam atentos àquilo que a fala de Nietzsche suscitava; norteavam-se menos pelas suas idéias que pela perspectiva que acreditavam apontar. Não pretendiam pensar a atualidade do discurso nietzschiano, mas queriam refletir sobre a atualidade através dele. E, nos Estados Unidos de hoje, em vez de utilizar o filósofo como caixa de ferramentas, para diagnosticar os valores de nossa época, estudiosos acabam por convertê-lo em instrumento para corroborar posições teóricas ou ideológicas já estabelecidas. Operam, em geral, recortes arbitrários em seus textos visando a satisfazer interesses imediatos; com frequência, a ele recorrem para sustentar determinadas concepções de feminismo ou mesmo de democracia. Afinal, de Nietzsche, sempre se disse o que se quis. Desde cedo, o autor de "Zaratustra" foi vítima de escritos ideológicos. Sua irmã Elizabeth, que logo obteve a custódia de tudo o que ele escrevera, não hesitou em atribuir a afirmações suas o peso das proclamações de um profeta. Tampouco hesitou, com o passar do tempo, em pôr a sua obra a serviço do Terceiro Reich na Alemanha. Por certo, houve quem denunciasse a trama que ligava o nome de Nietzsche ao de Hitler. De 1935 a 1945, vários intelectuais que se reuniam em torno da revista "Acéphale", como Bataille, Klossowski, Jean-Wahl, empenharam-se em desfazer o equívoco. E, no Brasil, quando chegava ao auge a difamação, Antonio Candido tomou sua defesa. Se em nossos dias há quem o veja como precursor do nazismo, é porque se deixa levar pela ignorância ou má-fé.

Criação do ídolo
Um dos grandes feitos de Elizabeth Förster-Nietzsche, porém, foi o de inventar uma "obra capital", a que deu o título de "Vontade de Potência". A partir de apontamentos deixados pelo filósofo, reuniu fragmentos póstumos, escolhendo-os no caos das notas redigidas durante meses, sem respeitar a ordem cronológica ou explicitar os critérios de seleção. Foi esse livro que, até a década de 50, serviu de instrumento de trabalho para os estudiosos. Nos anos 70, porém, veio a público a edição crítica das obras completas de Nietzsche, organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Fruto de um trabalho de fôlego, desenvolvido com extremo cuidado e rigor, ela tornou-se imprescindível para a pesquisa internacional acerca do pensamento nietzschiano. Isso não impede, porém, que se continuem a publicar, de forma irresponsável e leviana, coletâneas de aforismos e breviários de citações a partir de textos de Nietzsche. Estranha sina essa de um autor que continua célebre sem ser conhecido.
Também por iniciativa de Elizabeth, entre 1890 e 1910 converteram o filósofo no ídolo do momento. Então, organizaram-se peregrinações a Weimar para vê-lo; por toda Alemanha, instituíram-se círculos nietzschianos para celebrá-lo.
Mas, durante este século, produziram-se estudos incomparáveis sobre a sua obra. Atualmente, pode-se contar com trabalhos do mais alto nível, como os que aparecem nos "Nietzsche-Studien", publicação anual que visa a constituir um fórum internacional de debates em torno das múltiplas questões colocadas acerca e a partir do seu pensamento. É fato, porém, que igualmente se multiplicam abordagens rápidas e superficiais, que falam de Nietzsche como se fala de um autor na moda: sem ter conhecimento da densidade de sua reflexão filosófica.
Entre nós, Nietzsche tornou-se "popular" durante as décadas de 70 e 80; foi explorado pela mídia, utilizado pelos meios de comunicação, apropriado pelo mercado editorial. Surgiram livros de divulgação das suas idéias, artigos em jornais e revistas que mencionavam a qualquer propósito palavras suas. Ainda hoje, no afã de publicar, há quem faça vir à luz escritos pouco elaborados, textos mal-acabados. Ao que parece, tornou-se imperativo escrever sobre Nietzsche, mesmo que seja apenas para dar visibilidade ao próprio trabalho.
Na correspondência e nos livros, Nietzsche não se cansa de tentar compreender as razões da indiferença que o cerca. Sempre se queixa do silêncio que pesa sobre sua obra, da solidão que se apodera de sua vida. Raros amigos, escassos leitores. De sua época só espera não-entendimento ou descaso. Acredita ter nascido póstumo; suas idéias destinam-se a um público por vir. Por cem anos, muito se escreveu sobre este filósofo tão singular e ainda não se levaram a sério os desafios todos que ele propõe. Tudo leva a crer que, neste "fin-de-siècle", Nietzsche permanece um extemporâneo.


Scarlett Marton é professora do departamento de filosofia da USP, editora dos "Cadernos Nietzsche" e autora de "Nietzsche, das Forças Cósmicas aos Valores Humanos" (Ed. da UFMG) e "Extravagâncias - Ensaios sobre a Filosofia de Nietzsche" (Discurso Editorial), entre outros.


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