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Filósofo comenta os tipos de traição póstuma impostos ao autor de "A Gaia Ciência"
Maneiras de ignorar Nietzsche
por Clement Rosset
Pode-se dizer dos Estados Unidos da América,
não sem maldade nem, sem dúvida, com um
pouco de injustiça que eram uma das raras nações do mundo a ter evoluído diretamente da
barbárie para a decadência, sem passar pelo estágio da
civilização. Poder-se-ia dizer mais ou menos o mesmo
de todo grande autor: que ele passa diretamente do desconhecimento a uma celebridade vil, sem jamais conhecer o estágio intermediário em que seria reconhecido e não traído.
Impossível, de fato, evitar esse atalho forçado, já que a
notoriedade significa a ascensão ao domínio público e a
todos os tipos de injúrias que daí necessariamente se seguem -de modo que, entre a obscuridade e o renome,
jamais haverá lugar para esse ideal quimérico designado pela expressão "bem reputado". Blanchot justamente escreveu: "Não, não há saída para os mortos, os que
morrem após terem escrito, e eu nunca distingui na
mais gloriosa posteridade senão um inferno pretensioso em que os críticos -nós todos- fazemos figuras de
pobres diabos". E, lendo certas páginas que ele consagrou a Nietzsche, fica-se grato a Blanchot, pela lucidez
com que ele se conta no número dos críticos importunos (não, aliás, que falte pertinência a essas páginas,
mas porque a pertinência delas depende de uma preocupação e de uma fidelidade hegelianas).
Lucidez, portanto, louvável em geral, mas importante
em terreno nietzschiano, exatamente como a lucidez de
Heidegger fustigando com toda razão -mas dessa vez
sem qualquer inquietude acerca de seu próprio fato,
que se encontra, todavia, bastante ironicamente implicado- a maioria dos intérpretes de Nietzsche: "Não
são de modo algum os pensadores, mas seus intérpretes, sempre mais bem informados sobre eles do que eles
próprios eram, que, na realidade, não sabem mais o que
dizer e dessa maneira dissimulam bem mal sua perplexidade por meio de seu incorrigível pedantismo".
No que concerne a Nietzsche, eu distinguiria, por minha parte, duas grandes ordens de traição póstuma. Do
final do século 19 até nossos dias, houve, grosseiramente falando, duas maneiras de ignorar Nietzsche -ponho à parte certas maneiras de o "conhecer", como a de
Heidegger, que testemunha, a meu ver, um desconhecimento mais pernicioso do que qualquer forma de ignorância.
Nem pensou nem escreveu
A primeira, que agora está um pouco fora de época, consiste em reconhecer
que Nietzsche pensou e escreveu alguma coisa, mas alguma coisa ruim, falsa, incoerente, imoral e perigosa. A
segunda, mais recente, consiste em pretender que
Nietzsche, de certo modo, nunca nada pensou nem escreveu, mas nessa lacuna reside, paradoxalmente, o essencial de sua força e de sua fineza, assim como a razão
de sua influência atual. Apreciação curiosa, mas atestada e persistente, que faz pensar nos julgamentos da senhorita Anais em matéria de literatura e de artes modernas, em "Le Confort Intellectuel de Marcel Aymé":
"Suas preferências iam, em literatura, para Picasso, e,
em pintura, para Jean Paulhan, que, não sendo pintor, o
era no entanto e ainda mais".
Da mesma maneira Nietzsche é hoje de bom grado celebrado como aquele que, não sendo filósofo, o é "no
entanto e ainda mais": grande intérprete, pois, precisamente, nada interpreta, como disse Foucault no colóquio Nietzsche de Royaumont; grande pensador, pois
não consegue justamente pensar o que quer que seja,
como, diversas vezes Klossowski afirmou. Semelhante
asseptização do propósito nietzschiano também está
presente nos textos que, por exemplo, Bataille, Blanchot, Derrida lhe consagraram: comentários que, se não
chegam a riscar pura e simplesmente o fato de um pensamento nietzschiano, mesmo que fosse para felicitar
Nietzsche, apagam contudo sua originalidade e alcance,
assimilando o que pensa Nietzsche ao que eles próprios
preocupa -isto é, e respectivamente, a teologia do erotismo, o destino moderno do hegelianismo, a sempiterna esquivança (ou "différence") de verdade. Assimilação natural e até certo ponto legítima, se não fosse a desagradável circunstância de que as preocupações do comentador são em todos esses casos completamente
alheias ao que interessa a Nietzsche. Mais ainda: elas o
contradizem, caindo elas mesmas sob o golpe da crítica
nietzschiana que pretendem ilustrar. Propósitos de antes de Nietzsche que, curiosamente, caem um século
após Nietzsche e seu propósito.
Essa maneira moderna de ignorar Nietzsche, por intermédio de um comentário entusiasta, seja do fato que
Nietzsche não pensa, seja do fato que ele pensa no rastro
de uma modernidade pós-hegeliana, equivale, evidentemente, a uma recusa, análoga a que lhe opunham
aqueles que, não há muito, concediam a Nietzsche um
pensamento positivo, embora vicioso; ela é apenas uma
variante pouco sutil desta. Poder-se-ia, sem dúvida, se
interrogar sobre as causas de tal recusa, que persiste há
quase um século após a morte de Nietzsche. A razão fundamental dessa rejeição parece residir no fato que
todo discurso totalmente afirmador, como é o de
Nietzsche ou como são os de Lucrécio e Espinosa, é e
sempre foi recebido como totalmente inadmissível.
Não somente inadmissível aos olhos da maioria, como
insinuava Bataille em seu livro sobre Nietzsche, mas
também -e diria, particularmente- aos olhos do pequeno número daqueles que chamamos de os "intelectuais". Cabe à psicologia, ou talvez à psicopatologia, explicar o laço misterioso que, tão frequentemente, une o
exercício do pensamento à experiência da pena, essa estranha "coincidência do pensamento e do sofrimento",
de que se vale Klossowski em sua própria obra sobre
Nietzsche. Tal disposição de espírito é, em todo caso,
constitucionalmente rebelde a um pensamento de estilo nietzschiano. Pois está pronta a se submeter a todas
as provas, exceto a da despreocupação.
Resta que toda a modernidade filosófica e literária
apregoa o nome de Nietzsche e que não há, portanto,
nada mais estranho a essa modernidade do que o pensamento nietzschiano. Mais exatamente: o que há de
moderno em Nietzsche não reside de modo algum em
Nietzsche, mas antes de tudo na maneira, totalmente
atual, quero dizer, sintomática da atualidade, pela qual
ele é aplaudido enquanto outro que ele mesmo. Pois, se
há pouca relação entre o pensamento nietzschiano e
seus comentadores modernos, em compensação a idéia
de que a grandeza de Nietzsche provém de que ele não é
justamente um grande pensador pode aparecer como
muito característico de nossa modernidade.
Sem dúvida, a fórmula da senhorita Anais, acima citada, dá lugar a isso; mas creio que seria um erro encontrar ali apenas um tique de esnobismo de interesse local
e já caduco. Essa fórmula é mais pertinente e mais penetrante do que parece, pois toda nossa modernidade, no
fundo, a ela subscreve, de Bataille a Lacan. Dizer que a
presença está para sempre ausente ou diferida, que o
objeto do desejo não deve ser procurado nele mesmo,
mas de preferência em tudo o que não é ele, que, de maneira geral, a realidade não está onde se poderia crer,
mas sempre noutro lugar, é o mesmo que repetir, de
maneira sábia, o que a senhorita Anais exprimiu bem
simplesmente, dizendo que Jean Paulhan é tanto mais
pintor quanto não pinta. E é somente nessa perspectiva
bufa que advém hoje a Nietzsche ser levado a sério e
considerado como moderno: enquanto testemunho do
outro e figura do vazio.
Clement Rosset é filósofo francês. O trecho acima faz parte do livro
"Alegria - A Força Maior" (tradução de Eloísa de Araújo Ribeiro) que
será lançado neste mês pela Editora Relume-Dumará.
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