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Filósofo inspirou Thomas Mann a conceber o protagonista de seu romance "Doutor Fausto"
Transfiguração de uma vida
por Marcus Mazzari
Em junho de 1997, por ocasião de
um congresso comemorativo dos
50 anos do "Doutor Fausto", constatou-se que a bibliografia secundária sobre esse romance da velhice de
Thomas Mann avolumava-se para mais
de 100 mil páginas. Se em relação à
"Montanha Mágica", aos "Buddenbrooks" ou ainda às novelas "Morte em
Veneza" e "Tonio Kroger" a situação não
é muito diferente, percebe-se o quanto é
difícil dizer algo novo sobre os grandes
marcos da obra desse escritor de Lübeck,
norte da Alemanha, mas com raízes biográficas que remontam também a Angra
dos Reis, onde sua mãe Julia da Silva
Bruhns nasceu e passou a primeira infância.
É evidente, porém, que esses livros, como toda grande obra artística, jamais poderão ser interpretados em definitivo,
pois as imagens que os povoam os tornam inexauríveis. "Incomensurável" seria, assim, outro adjetivo de cunho goethiano que se pode aplicar às obras desse
escritor, em primeiro lugar ao "Doutor
Fausto", que é por excelência o "romance da Alemanha" e que em 1947 desencadeou virulenta recepção.
Mas, a despeito da grandiosidade de
Thomas Mann (1875-1955), a sua influência sobre escritores alemães do pós-guerra é paradoxalmente reduzida, se
lembrarmos nomes como o de Franz
Kafka, com incontáveis seguidores mais
ou menos epigonais (e não só na Alemanha), Robert Musil, com o romance "O
Homem sem Qualidades", ou ainda Alfred Döblin, que tem em Günter Grass
um discípulo confesso. Seria a extraordinária envergadura enciclopédica dos romances de Mann, a incomparável erudição, que gera por vezes a impressão de
monumentalidade extemporânea, como
se "2.500 anos de cultura", para glosar
uma sarcástica observação de Brecht,
mirassem o leitor "de cima para baixo"?
Outro elemento que obstou uma recepção mais generosa dessa obra é sem
dúvida a "ironia épica", que lhe confere a
dimensão inconfundível (e suspeita para
não poucos críticos) de ambiguidade e
ceticismo.
Thomas Mann estréia na literatura aos
19 anos, com uma novela de desilusão
amorosa ("Queda") que lhe abriu de
imediato as portas para os círculos artísticos de Munique. Dois anos depois surge a narrativa "O Pequeno Senhor Friedmann", que pode ser considerado o seu
primeiro trabalho realmente significativo. Até o final da vida, o escritor manterá
a fidelidade à prosa ficcional mais ligeira,
produzindo dezenas de contos e novelas,
inclusive obras-primas do nível de "Tonio Kroger" e "Morte em Veneza".
Escreveu também romances relativamente breves para os padrões a que nos
acostumou, como "Carlota em Weimar"
(1939), ficcionalização de um encontro
tardio de Goethe com a sua paixão de juventude, ou "O Eleito" (1951), em que
uma irônica instância narrativa (o próprio "espírito da narração") conta a história do papa Gregório, espécie de Édipo
cristão que, da extrema pecaminosidade,
ascende à condição de santo.
Ironia épica
Deixou-nos também a
paródia elegante e divertida das "Confissões do Impostor Felix Krull", romance
que, embora inconcluso, levou Anatol
Rosenfeld a interpretá-lo, no ensaio
"Apolo, Hermes, Dioniso", como espécie de obra-chave para a compreensão de
toda a produção literária do autor.
O nome de Thomas
Mann entrou, todavia, para a história da literatura
associado sobretudo a romances de largo fôlego
épico, narrados com distanciamento irônico e
num tom para o qual ele mesmo cunhou
a expressão "evocação sussurrante do
imperfeito". Essa tendência impõe-se logo com o seu primeiro romance, "Os
Buddenbrooks" (1901), obra tanto mais
espantosa considerando-se que Mann a
escreve entre os 22 e os 25 anos. Apoiando-se em larga escala na história da própria família, o jovem escritor narra ao
longo de centenas de páginas, abrindo
um arco que vai de 1835 a 1877 e abrange
o destino de quatro gerações, a inexorável decadência de uma tradicional e venerável casa burguesa, em contraponto à
ascensão da moderna burguesia capitalista, os Hagenström.
A decadência é assim o tema fundamental, presente nos excursos teóricos
do romance (como os "protocolos de
pensamento" redigidos pelo senador
Thomas durante leituras de Schopenhauer), mas sempre regendo as várias
etapas dessa crônica familiar que se consuma no destino do menino Hanno, cujo
temperamento musical vai enfraquecendo a vontade de viver até que por fim se
deixa levar pelo tifo.
Foi aliás com os "Buddenbrooks" que a
Academia Sueca fundamentou em 1929
a outorga do Nobel a Thomas Mann, o
que não deixou de ferir a sua vaidade,
pois cinco anos antes havia publicado "A
Montanha Mágica", concretizando um
projeto que o acompanhara por mais de
dez anos. No sanatório suíço de Davos,
onde os ritmos da vida na "planície" e o
próprio tempo entram em outra dimensão, o escritor constrói o espaço mágico
em que o seu "singelo herói" Hans Castorp, "filho enfermiço da vida", irá mover-se ao longo de sete anos, de agosto de
1907 a agosto de 1914 (o número sete é recorrente nos sete capítulos do romance,
como o será depois na tetralogia "José e
Seus Irmãos").
Nesse mundo das alturas, no convívio com amplo espectro de pessoas ligadas apenas pela tuberculose, cumpre-se um
processo formativo que
encontra o seu momento
fundamental no capítulo "Neve", em que
uma experiência-limite em meio às forças elementares da natureza faz assomar
à consciência do herói esse único pensamento que o escritor destacou em itálico:
"Em consideração à bondade e ao amor,
o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre seus pensamentos".
Com essa lição humanista, "A Montanha Mágica" alinha-se na longa tradição
dos romances de formação, mas Thomas
Mann também problematiza essa inserção fazendo a história desembocar nas
imagens cruentas da Primeira Guerra,
em cujas "tempestades de aço" Castorp
desaparece rumo a uma morte que subverte a sua longa aprendizagem de vida.
Contudo os vínculos com a tradição do
romance de formação constituem apenas uma dimensão dessa obra inesgotável, em cujas profundidades os intérpretes descobrem até hoje novas facetas e relações: "Esse romance gigantesco, fruto
de muitos anos de luta com a forma e a
idéia, apresenta-se como uma das mais
maravilhosas criações da literatura mundial do século 20, inesgotável em sua
multiplicidade e impenetrável em sua
profundidade": são palavras de Anatol
Rosenfeld, admirador contumaz desse
escritor, a que dedicou estudos enfeixados no volume "Thomas Mann" (Ed.
Perspectiva).
Selvagem e demoníaco
A Thomas
Mann coube ainda o privilégio de ter encontrado entre nós, ao lado do crítico
mencionado, um tradutor tão sóbrio e
escrupuloso como Herbert Caro. É este
que assina também a tradução do "Doutor Fausto" (1947), esse romance monumental que o próprio autor chamou de
"sua obra mais selvagem".
Por "selvagem" pode-se entender
aqui "demoníaco", pois nesse livro, como se sabe, o diabo impõe sua presença
concreta, num longo capítulo (25) que
rompe com os limites de um realismo
mais tradicional e mostra ainda a ousadia que presidiu à construção da perspectiva narrativa e da dimensão temporal. Conforme diz no livro "A Gênese
do Doutor Fausto", Mann iniciou a redação do romance em 23 de maio de
1943, no mesmo dia em que faz o narrador Serenus Zeitblom abrir a reconstituição da vida do compositor (e amigo
de infância) Adrian Leverkühn.
Serenus adianta-se, porém, dois anos
à frente do seu criador, pois coloca o
ponto final em seu relato em 8 de maio
de 1945, data exata em que a Alemanha
hitlerista assina a capitulação incondicional. Assim, enquanto o tempo da
narração permite referências a desdobramentos da guerra, o tempo narrado
move-se entre os anos de 1885 e 1940,
nascimento e morte de Adrian. Contudo a estratificação temporal torna-se
ainda mais complexa com a incorporação de outra dimensão narrativa, que
remete ao livro anônimo "História do
D. Johann Fausto", publicado em
Frankfurt no ano de 1587.
Mediação moderna
O recurso à
trajetória desse Fausto de extração medieval sofre, porém, a mediação de influências mais modernas, que o próprio autor explicita na "Gênese do
Doutor Fausto". Tem-se aqui, entre incontáveis outras fontes, o dodecafonismo de Arnold Schönberg, que ingressou na ficção romanesca graças à colaboração decisiva de Adorno. Mas avulta sobretudo a figura de Friedrich
Nietzsche, cuja trágica existência oferece balizas fundamentais para a "vita"
de Adrian. Os 24 anos decorridos entre
o contágio de Nietzsche pela sífilis até o
seu colapso em 1889, aos 45 anos, período que coincide com o prazo concedido a Fausto no pacto demoníaco, são
transpostos à biografia de Adrian, que
contrai a mesma doença, também aos
21 anos, pelo contato com a prostituta
transfigurada sob o nome "Hetaera Esmeralda".
Se por um lado a sífilis propicia-lhe a
inspiração cerebral que leva à criação
de obras geniais como o oratório "Apocalipsis cum Figuris" e a cantata sinfônica "A Lamentação do Doutor Fausto", por outro lado é a ampulheta que
controla, em seu próprio corpo, o prazo estipulado no pacto, como se explicita no capítulo 25, isto é, a longa e densa conversa com o demo, que Adrian
anota (aliás, num estilo arcaizante, que
evoca o tempo de Fausto e Lutero) e faz
chegar depois às mãos do amigo Serenus.
"A tua vida tem de ser fria, por isso
não poderás amar nenhum ser humano": a transgressão dessa condição levará Adrian a vivenciar ainda a morte
inominável do seu pequeno sobrinho
Nepomuk. É o derradeiro golpe, pouco
depois escoa o prazo estipulado e a paralisia cerebral o faz mergulhar nas trevas, aos 45 anos. Como Nietzsche, ele
volta aos cuidados da mãe e morre dez
anos depois, num 25 de agosto que assinala os 40 anos da morte do filósofo.
Livro da dor
Se a história de Adrian
Leverkühn pode ser lida como alegoria
do destino alemão no século 20, é sobretudo mediante a figura de Nietzsche
que se constrói o paralelo explicitado
apenas na última frase do romance:
"Um homem solitário junta as mãos e
diz: "Deus tenha piedade de vossa pobre alma, meu amigo, minha pátria'".
Em sua dimensão trágica, o "Doutor
Fausto", também o "livro da dor" de
Thomas Mann, testemunha o seu afastamento em relação ao filósofo que tanto o fascinara na juventude.
É a mesma atitude que se articula no
longo ensaio de 1947 "A Filosofia de
Nietzsche à Luz da Nossa Experiência",
em que Mann caracteriza o filósofo como o "esteta mais irremediável" e ao
mesmo tempo abjura todo esteticismo
que faz o homem temer a "profissão de
fé pelo bem" e envergonhar-se de "conceitos tão triviais como verdade, liberdade e justiça".
Doutor Fausto
710 págs., R$ 47,00
de Thomas Mann. Tradução de
Herbert Caro. Ed. Nova Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, RJ, tel. 0/xx/21/537-8770).
Marcus V. Mazzari é professor de teoria literária na USP, autor de "Romance de Formação em
Perspectiva Histórica - "O Tambor de Lata" de
Günter Grass" (Ateliê Editorial).
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