São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2006

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Ponto de fuga

Rascunhos e harmonias

Na enxurrada atual de imagens digitais, pode ser que uma ou outra demonstre composição original; mesma coisa para as manipulações, graças ao Photoshop; facilidade, porém, rima com banalidade

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

As câmeras digitais trouxeram facilidade e abundância à captação de imagens. Os custos são quase nulos, as possibilidades, quase infinitas. Tudo simples: clicar, armazenar, modificar, transformar. O velho sistema, com filme e papel, exigia manipulações laboriosas. Era preciso ampliadores, banhos químicos, controle estrito do tempo, secagem. Qualquer um pode agora ter a ilusão de tornar-se fotógrafo, sem esforço, sem dificuldade. Na enxurrada atual de imagens, pode ser que uma ou outra demonstre composição original ou vigor particular. Mesma coisa para as manipulações, graças ao Photoshop e congêneres. Facilidade, porém, rima com banalidade. Para quem espera da fotografia mais do que o registro da família, da viagem turística, do passatempo, é difícil sobressair na mediocridade tão engrossada pelo número.

Admiração
No Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, de Juiz de Fora (MG), há uma exposição consagrada a Julieta Gonçalves. Engenheira, aposentada, decidiu, há bem poucos anos, fazer imagens. Decidir talvez não seja bem o termo. Descobriu uma necessidade compulsiva de trabalhar com câmeras, com seu computador, para chegar a resultados muito altos, tanto na invenção formal quanto na qualidade de pensamento. As obras de Julieta Gonçalves têm títulos evocativos: "Pequim", "Avenida Paulista", "Piano Bar" e outros de alusão mais incerta. Essa geografia larga e onírica, no entanto, brota de um local restrito: seu pequeno apartamento. Ela constrói as fotografias com closes de um abajur, de uma prateleira, com o retrato de uma vizinha. Em seguida, diante do computador, as asas se abrem. Surgem as formas suaves, mas firmes, voluntárias, que encontraram um equilíbrio sensível, quase meticuloso, em sua busca de precisão. Nem lirismo impulsivo e imediato nem a manifestação de desordens apaixonadas, confusas: uma clareza definida se impõe. Alcança um sentimento sonhador que paira, suspenso, numa estranha calma. A mostra se chama "Fotogênese". É um trabalho de desfazer e fazer, de desconjuntar e associar. Na pureza colorida dos recortes ou deformações que se fixaram, paira uma presença longínqua dos cubistas, dos surrealistas. Sem retorno ao passado, porém. Essas sugestões da história ressurgem discretamente numa harmonia nova, por afinidade, sem citações, sem convenções, sem referências. Abstratas ou muito significantes, sem hierarquia de qualidade de umas ou de outras, elas não capturam o mundo visível, não remetem ao momento que fugiu e do qual a foto seria o testemunho. Dão-se no presente porque se encontram para além dele, num lugar em que o tempo não as alcança.

Cozinha
Há uma tradição purista entre muitos fotógrafos, maiores e menores, que sacraliza o instante do clique. A criação inteira estaria ali. Recusam-se, assim, a interferir no negativo, na tiragem, no enquadramento. Desdenham agora os retoques, transformações, recortes, permitidos pelos computadores. Há grandes exemplos do contrário, porém. Um Prêmio Nobel de Literatura, e que foi notável fotógrafo, dizia que a primeira imagem obtida com a câmera era apenas um rascunho. Elas deveriam, como as frases escritas, serem trabalhadas, modificadas com vagar e paciência, caso quisessem chegar às exigências da arte.


JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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