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Ponto de fuga
Rascunhos e harmonias
Na enxurrada atual de imagens digitais, pode ser que uma ou outra demonstre composição original; mesma coisa para as manipulações, graças ao Photoshop; facilidade, porém,
rima com banalidade
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
As câmeras digitais trouxeram facilidade e
abundância à captação
de imagens. Os custos são quase nulos, as possibilidades, quase infinitas. Tudo simples: clicar, armazenar, modificar,
transformar. O velho sistema,
com filme e papel, exigia manipulações laboriosas. Era preciso ampliadores, banhos químicos, controle estrito do tempo,
secagem. Qualquer um pode
agora ter a ilusão de tornar-se
fotógrafo, sem esforço, sem dificuldade.
Na enxurrada atual de imagens, pode ser que uma ou outra demonstre composição original ou vigor particular. Mesma coisa para as manipulações,
graças ao Photoshop e congêneres. Facilidade, porém, rima
com banalidade. Para quem espera da fotografia mais do que
o registro da família, da viagem
turística, do passatempo, é difícil sobressair na mediocridade
tão engrossada pelo número.
Admiração
No Centro Cultural Bernardo Mascarenhas, de Juiz de Fora (MG), há uma exposição
consagrada a Julieta Gonçalves. Engenheira, aposentada,
decidiu, há bem poucos anos,
fazer imagens.
Decidir talvez não seja bem o
termo. Descobriu uma necessidade compulsiva de trabalhar
com câmeras, com seu computador, para chegar a resultados
muito altos, tanto na invenção
formal quanto na qualidade de
pensamento.
As obras de Julieta Gonçalves têm títulos evocativos: "Pequim", "Avenida Paulista",
"Piano Bar" e outros de alusão
mais incerta. Essa geografia
larga e onírica, no entanto, brota de um local restrito: seu pequeno apartamento. Ela constrói as fotografias com closes de
um abajur, de uma prateleira,
com o retrato de uma vizinha.
Em seguida, diante do computador, as asas se abrem. Surgem as formas suaves, mas firmes, voluntárias, que encontraram um equilíbrio sensível,
quase meticuloso, em sua busca de precisão.
Nem lirismo impulsivo e
imediato nem a manifestação
de desordens apaixonadas,
confusas: uma clareza definida
se impõe. Alcança um sentimento sonhador que paira, suspenso, numa estranha calma.
A mostra se chama "Fotogênese". É um trabalho de desfazer e fazer, de desconjuntar e
associar. Na pureza colorida
dos recortes ou deformações
que se fixaram, paira uma presença longínqua dos cubistas,
dos surrealistas. Sem retorno
ao passado, porém. Essas sugestões da história ressurgem
discretamente numa harmonia
nova, por afinidade, sem citações, sem convenções, sem referências. Abstratas ou muito
significantes, sem hierarquia
de qualidade de umas ou de outras, elas não capturam o mundo visível, não remetem ao momento que fugiu e do qual a foto
seria o testemunho. Dão-se no
presente porque se encontram
para além dele, num lugar em
que o tempo não as alcança.
Cozinha
Há uma tradição purista entre muitos fotógrafos, maiores
e menores, que sacraliza o instante do clique. A criação inteira estaria ali. Recusam-se, assim, a interferir no negativo, na
tiragem, no enquadramento.
Desdenham agora os retoques,
transformações, recortes, permitidos pelos computadores.
Há grandes exemplos do contrário, porém. Um Prêmio Nobel de Literatura, e que foi notável fotógrafo, dizia que a primeira imagem obtida com a câmera era apenas um rascunho.
Elas deveriam, como as frases
escritas, serem trabalhadas,
modificadas com vagar e paciência, caso quisessem chegar
às exigências da arte.
JORGE COLI é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br
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