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O monge-soldado
Diretor do "Le Monde Diplomatique", Ignacio Ramonet lança livro de entrevista com o líder cubano
MARCO ANTONIO VILLA
A história da América
Latina é marcada
pelos caudilhos.
Um dos mais conhecidos foi o mexicano Antonio López de Santa
Anna [1794-1876]. Em 1838,
quando o porto de Veracruz estava sendo bombardeado pelos
franceses, Santa Anna acabou
ferido na perna. No leito, pouco
antes do que imaginava serem
os seus últimos momentos de
vida, ditou uma breve declaração: foram 15 páginas! Acabou
sobrevivendo, passou pela Presidência do país várias vezes e
morreu 38 anos depois, deixando o país destruído.
Fidel Castro é mais um desses caudilhos. Caudilho durante a Guerra Fria e, forçoso reconhecer, mais inteligente e sedutor do que Santa Anna e tantos outros. Mas a prolixidade
ele manteve. São famosos seus
discursos de oito, dez, 12 horas.
A entrevista a Ignacio Ramonet, diretor do "Le Monde Diplomatique", foi realizada em
várias sessões, entre 2003 e
2005, e tem mais de 600 páginas, incluindo as notas. "Fidel
Castro - Biografia a Duas Vozes" [Boitempo, trad. Emir Sader, 624 págs., R$ 66] pode até
ser considerado uma espécie
de testamento político -daí
sua importância. O livro foi organizado em 26 capítulos, indo
desde a infância de Fidel até a
discussão sobre como poderá
ser Cuba sem o ditador.
Ramonet deixa claro no início do livro sua profunda admiração pela Revolução Cubana e
por Fidel Castro.
Para ele, Cuba é "uma referência importante para milhões de deserdados do planeta", e "tampouco se constatou
um único levante popular contra o regime". Drogas, mendicância, prostituição "são fenômenos desconhecidos ou quase
inexistentes em Cuba".
Fidel "tem um lugar reservado no panteão mundial consagrado às figuras que com mais
empenho lutaram pela justiça
social". É um "monge-soldado", "antidogmático por antonomásia", "imaginando o inimaginável", "com um atrevimento mental espetacular",
"incapaz de conceber uma
idéia que não seja descomunal", "é um debatedor e um polemista temível, culto, a quem
só repugnam a má-fé e o ódio".
E tem mais: "Diante de qualquer tema, realiza cálculos aritméticos com uma velocidade
assombrosa. Com ele, nada de
aproximações". Só mais uma
para não cansar o leitor: "Seu
pensamento é arborescente.
Tudo se encadeia. Ramifica-se.
Tudo tem a ver com tudo. Digressões constantes. Parênteses permanentes".
Castro fala sobre tudo. Saúde, globalização, capitalismo
("que não existe mais", pois
"não há concorrência"), educação, táticas de guerra, história,
geografia, religião, filosofia.
Quer mostrar conhecimento
teórico. Ficar como um clássico do marxismo. Diz que era
"marxista-leninista" desde
1952. Contudo, na defesa que
fez do assalto (fracassado) ao
quartel Moncada, que depois
foi editada em livro com o título "A História Me Absolverá",
não há uma idéia, um conceito
marxistas e muitos menos nas
proclamações do Movimento
26 de Julho, criado por ele.
Ainda bem. O forte de Castro
nunca foi a teoria. Diz que o pai
organizou uma empresa que
derrubava florestas e, dessa
forma, "começou a obter alguma mais-valia".
Quando perguntado sobre a
repressão aos homossexuais,
disse que "nunca houve perseguição. Não eram campos de
concentração nem eram campos de castigo, mas, ao contrário, tratavam de levantar o moral, apresentar-lhes uma possibilidade de trabalhar, de ajudar
o país naquelas circunstâncias
difíceis". Sobre os negros -ausentes nos principais cargos do
Estado cubano-, foi enfático:
"A discriminação desapareceu
subjetivamente". E o entrevistador ficou satisfeito.
Mesmo depois de 15 anos da
queda do Muro de Berlim, Fidel continua convicto dos êxitos do socialismo soviético. A
vida era boa na União Soviética: "O caviar tinha (no final dos
anos 80) o mesmo preço que na
época de Stálin". Stálin é elogiado: "Um organizador de
grande capacidade, penso que
era um revolucionário".
Assim, não causa estranheza
seu apoio à invasão soviética da
Tchecoslováquia, em 1968, encerrando a Primavera de Praga:
"Caminhava-se para uma situação contra-revolucionária,
para o capitalismo e para os
braços do imperialismo".
Dissidentes virtuais
Ramonet recordou o tema da
fuga de milhares de cubanos
para os Estados Unidos. Para
Fidel o problema é simples:
"Emigraram porque queriam
um automóvel; porque queriam viver numa sociedade de
consumo". Tudo é simples para
o ditador: "Todos esses chamados dissidentes são uma realidade virtual, não existem".
Quando os "inexistentes" se
reúnem, são presos, processados e condenados. Tudo isso
porque Cuba vive numa democracia: "Para nós, um dos primeiros princípios é que aqui o
partido não escolhe, quem escolhe é o povo". Porém, "é apenas coincidência o fato de um
número bem elevado deles ser
membro do Partido".
Teoriza o ditador: "Em muitos países, o sistema eleitoral
clássico, tradicional, com múltiplos partidos, acaba se transformando em um concurso de
simpatia, e não, de verdade, em
um concurso de competência,
de honestidade, de talento para
governar".
O caráter socialista da revolução, inscrito na Constituição,
foi resolvido de uma forma original, tipicamente castrista: ao
invés de uma discussão livre,
aberta, democrática, com voto
secreto, foi confeccionado um
abaixo-assinado subscrito por
99,25% dos eleitores. Ah, se a
moda pega...
MARCO ANTONIO VILLA é professor de história no departamento de ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos (SP). É autor
de "Jango, um Perfil" (ed. Globo), entre outros.
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