São Paulo, domingo, 06 de agosto de 2006

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O monge-soldado

Diretor do "Le Monde Diplomatique", Ignacio Ramonet lança livro de entrevista com o líder cubano

MARCO ANTONIO VILLA

A história da América Latina é marcada pelos caudilhos. Um dos mais conhecidos foi o mexicano Antonio López de Santa Anna [1794-1876]. Em 1838, quando o porto de Veracruz estava sendo bombardeado pelos franceses, Santa Anna acabou ferido na perna. No leito, pouco antes do que imaginava serem os seus últimos momentos de vida, ditou uma breve declaração: foram 15 páginas! Acabou sobrevivendo, passou pela Presidência do país várias vezes e morreu 38 anos depois, deixando o país destruído. Fidel Castro é mais um desses caudilhos. Caudilho durante a Guerra Fria e, forçoso reconhecer, mais inteligente e sedutor do que Santa Anna e tantos outros. Mas a prolixidade ele manteve. São famosos seus discursos de oito, dez, 12 horas. A entrevista a Ignacio Ramonet, diretor do "Le Monde Diplomatique", foi realizada em várias sessões, entre 2003 e 2005, e tem mais de 600 páginas, incluindo as notas. "Fidel Castro - Biografia a Duas Vozes" [Boitempo, trad. Emir Sader, 624 págs., R$ 66] pode até ser considerado uma espécie de testamento político -daí sua importância. O livro foi organizado em 26 capítulos, indo desde a infância de Fidel até a discussão sobre como poderá ser Cuba sem o ditador. Ramonet deixa claro no início do livro sua profunda admiração pela Revolução Cubana e por Fidel Castro. Para ele, Cuba é "uma referência importante para milhões de deserdados do planeta", e "tampouco se constatou um único levante popular contra o regime". Drogas, mendicância, prostituição "são fenômenos desconhecidos ou quase inexistentes em Cuba". Fidel "tem um lugar reservado no panteão mundial consagrado às figuras que com mais empenho lutaram pela justiça social". É um "monge-soldado", "antidogmático por antonomásia", "imaginando o inimaginável", "com um atrevimento mental espetacular", "incapaz de conceber uma idéia que não seja descomunal", "é um debatedor e um polemista temível, culto, a quem só repugnam a má-fé e o ódio". E tem mais: "Diante de qualquer tema, realiza cálculos aritméticos com uma velocidade assombrosa. Com ele, nada de aproximações". Só mais uma para não cansar o leitor: "Seu pensamento é arborescente. Tudo se encadeia. Ramifica-se. Tudo tem a ver com tudo. Digressões constantes. Parênteses permanentes". Castro fala sobre tudo. Saúde, globalização, capitalismo ("que não existe mais", pois "não há concorrência"), educação, táticas de guerra, história, geografia, religião, filosofia. Quer mostrar conhecimento teórico. Ficar como um clássico do marxismo. Diz que era "marxista-leninista" desde 1952. Contudo, na defesa que fez do assalto (fracassado) ao quartel Moncada, que depois foi editada em livro com o título "A História Me Absolverá", não há uma idéia, um conceito marxistas e muitos menos nas proclamações do Movimento 26 de Julho, criado por ele. Ainda bem. O forte de Castro nunca foi a teoria. Diz que o pai organizou uma empresa que derrubava florestas e, dessa forma, "começou a obter alguma mais-valia". Quando perguntado sobre a repressão aos homossexuais, disse que "nunca houve perseguição. Não eram campos de concentração nem eram campos de castigo, mas, ao contrário, tratavam de levantar o moral, apresentar-lhes uma possibilidade de trabalhar, de ajudar o país naquelas circunstâncias difíceis". Sobre os negros -ausentes nos principais cargos do Estado cubano-, foi enfático: "A discriminação desapareceu subjetivamente". E o entrevistador ficou satisfeito. Mesmo depois de 15 anos da queda do Muro de Berlim, Fidel continua convicto dos êxitos do socialismo soviético. A vida era boa na União Soviética: "O caviar tinha (no final dos anos 80) o mesmo preço que na época de Stálin". Stálin é elogiado: "Um organizador de grande capacidade, penso que era um revolucionário". Assim, não causa estranheza seu apoio à invasão soviética da Tchecoslováquia, em 1968, encerrando a Primavera de Praga: "Caminhava-se para uma situação contra-revolucionária, para o capitalismo e para os braços do imperialismo".

Dissidentes virtuais
Ramonet recordou o tema da fuga de milhares de cubanos para os Estados Unidos. Para Fidel o problema é simples: "Emigraram porque queriam um automóvel; porque queriam viver numa sociedade de consumo". Tudo é simples para o ditador: "Todos esses chamados dissidentes são uma realidade virtual, não existem". Quando os "inexistentes" se reúnem, são presos, processados e condenados. Tudo isso porque Cuba vive numa democracia: "Para nós, um dos primeiros princípios é que aqui o partido não escolhe, quem escolhe é o povo". Porém, "é apenas coincidência o fato de um número bem elevado deles ser membro do Partido". Teoriza o ditador: "Em muitos países, o sistema eleitoral clássico, tradicional, com múltiplos partidos, acaba se transformando em um concurso de simpatia, e não, de verdade, em um concurso de competência, de honestidade, de talento para governar". O caráter socialista da revolução, inscrito na Constituição, foi resolvido de uma forma original, tipicamente castrista: ao invés de uma discussão livre, aberta, democrática, com voto secreto, foi confeccionado um abaixo-assinado subscrito por 99,25% dos eleitores. Ah, se a moda pega...


MARCO ANTONIO VILLA é professor de história no departamento de ciências sociais da Universidade Federal de São Carlos (SP). É autor de "Jango, um Perfil" (ed. Globo), entre outros.


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