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Ponto de Fuga
Ínfimos assassinos
As referências e alusões à história do cinema constituem a própria substância de "Juízo Final"; é impossível detectá-las todas
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JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Escócia, mundo à parte
dentro do planeta. Sua
vocação é a de isolar-se
dentro do já insular Reino Unido. Isso acontece desde os romanos, que abandonaram a
ideia de investir naqueles nortes borrascosos, lutando contra
pictos e escotos nada amáveis,
em montanhas ermas e áridas.
O imperador Adriano construiu uma longuíssima muralha: que aqueles broncos ficassem do lado de lá e não amolassem. Povos de montanhas são
voltados para si mesmos.
Neil Marshall, inglês, nasceu
porém em Newcastle upon
Tyne, não longe da fronteira
com a Escócia. Dirigiu "Cães de
Caça" ("Dog Soldiers", 2002):
numa floresta escocesa, a luta
de lobisomens e soldados, filme de pequeno orçamento,
com originalidade e força estilística. "Abismo do Medo"
("The Descent", 2005) passa-se nos EUA e explora com minúcia desesperante a angústia
claustrofóbica.
"Juízo Final" ("Doomsday",
2008), que chega às telas brasileiras com bastante atraso, instala-se novamente na Escócia.
Clausura de todo um território:
uma nova muralha, metálica,
moderna, com atiradores mecânicos que transformam os
menores coelhinhos em pasta
sanguinolenta, elevou-se sobre
o velho muro de Adriano. A Escócia contaminou-se por um
vírus abominável.
O governo britânico decide
impedir qualquer contato dos
escoceses com o mundo exterior. Desenvolve-se, internamente, uma sociedade conturbada sob líderes violentos.
Situações que soam bem familiares. Dois dos personagens
de "Juízo Final" são chamados
de Carpenter e Miller, os mesmos sobrenomes dos diretores
responsáveis por "Fuga de Nova York" [John Carpenter] e
"Mad Max" [George Miller].
Não são coincidências.
MacGuffin
Os vírus são apenas pretexto.
As razões que movem a aventura não têm muito pé ou cabeça.
Nem "Juízo Final" está preso
ao fio de uma história. É um filme que encadeia episódios fortemente construídos, desdenhando a coerência do todo.
Essas situações fazem antes
ressoar a memória cinematográfica. Malcolm McDowell,
que, no passado, encarnou o
símbolo de uma juventude
zombeteira e soberba, está lá,
velho, gigantesco, shakespeariano. Estão lá as lembranças
dos filmes pós-apocalípticos, e
também dos épicos medievais.
Atmosfera dos anos de 1980,
sobretudo; Marshall, que não
chegou ainda aos 40 anos, move-se numa paixão pelo cinema
vivida desde a infância.
Singulariza-se no seu gosto
pelo grande espetáculo. Das lutas individuais às perseguições
de carros, refaz situações que
se repetiram dezenas de vezes
na história do cinema, em coreografias embriagadas. Situa-se no oposto da linearidade
narrativa, apolínea e controlada, de Tarantino, esse outro
nostálgico.
Sabe divertir-se com isso, como mostra o destino apoteótico do masoquista, personagem
saído de "Pulp Fiction"; ou o
inenarrável cancã dos escoceses gordos, ruivos, vestidos
com kilts. Individualiza a violência: as pulsões humanas que
desencadeia fazem de "Juízo
Final" um filme sádico.
Presente
As referências e alusões à história do cinema constituem a
própria substância de "Juízo
Final". É impossível detectá-las
todas. Há ressonâncias também mais fundas, em particular
a antiga aversão entre escoceses e ingleses. Tudo isso forma
um jogo erudito, numa obra
que se nutre, voluntária, confessadamente, de outras.
Lugares
Um público cabeça não vai
ver "Juízo Final". De seu lado,
as plateias em busca de divertimento talvez se decepcionem,
perdidas na liberdade com que
tudo é mesclado. Fiel a si próprio, o filme se entrega a uma
sofisticação muito rara.
jorgecoli@uol.com.br
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