São Paulo, domingo, 06 de setembro de 2009

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Ponto de Fuga

Ínfimos assassinos


As referências e alusões à história do cinema constituem a própria substância de "Juízo Final"; é impossível detectá-las todas


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Escócia, mundo à parte dentro do planeta. Sua vocação é a de isolar-se dentro do já insular Reino Unido. Isso acontece desde os romanos, que abandonaram a ideia de investir naqueles nortes borrascosos, lutando contra pictos e escotos nada amáveis, em montanhas ermas e áridas.
O imperador Adriano construiu uma longuíssima muralha: que aqueles broncos ficassem do lado de lá e não amolassem. Povos de montanhas são voltados para si mesmos. Neil Marshall, inglês, nasceu porém em Newcastle upon Tyne, não longe da fronteira com a Escócia. Dirigiu "Cães de Caça" ("Dog Soldiers", 2002): numa floresta escocesa, a luta de lobisomens e soldados, filme de pequeno orçamento, com originalidade e força estilística. "Abismo do Medo" ("The Descent", 2005) passa-se nos EUA e explora com minúcia desesperante a angústia claustrofóbica.
"Juízo Final" ("Doomsday", 2008), que chega às telas brasileiras com bastante atraso, instala-se novamente na Escócia. Clausura de todo um território: uma nova muralha, metálica, moderna, com atiradores mecânicos que transformam os menores coelhinhos em pasta sanguinolenta, elevou-se sobre o velho muro de Adriano. A Escócia contaminou-se por um vírus abominável.
O governo britânico decide impedir qualquer contato dos escoceses com o mundo exterior. Desenvolve-se, internamente, uma sociedade conturbada sob líderes violentos. Situações que soam bem familiares. Dois dos personagens de "Juízo Final" são chamados de Carpenter e Miller, os mesmos sobrenomes dos diretores responsáveis por "Fuga de Nova York" [John Carpenter] e "Mad Max" [George Miller]. Não são coincidências.

MacGuffin
Os vírus são apenas pretexto. As razões que movem a aventura não têm muito pé ou cabeça. Nem "Juízo Final" está preso ao fio de uma história. É um filme que encadeia episódios fortemente construídos, desdenhando a coerência do todo.
Essas situações fazem antes ressoar a memória cinematográfica. Malcolm McDowell, que, no passado, encarnou o símbolo de uma juventude zombeteira e soberba, está lá, velho, gigantesco, shakespeariano. Estão lá as lembranças dos filmes pós-apocalípticos, e também dos épicos medievais.
Atmosfera dos anos de 1980, sobretudo; Marshall, que não chegou ainda aos 40 anos, move-se numa paixão pelo cinema vivida desde a infância. Singulariza-se no seu gosto pelo grande espetáculo. Das lutas individuais às perseguições de carros, refaz situações que se repetiram dezenas de vezes na história do cinema, em coreografias embriagadas. Situa-se no oposto da linearidade narrativa, apolínea e controlada, de Tarantino, esse outro nostálgico.
Sabe divertir-se com isso, como mostra o destino apoteótico do masoquista, personagem saído de "Pulp Fiction"; ou o inenarrável cancã dos escoceses gordos, ruivos, vestidos com kilts. Individualiza a violência: as pulsões humanas que desencadeia fazem de "Juízo Final" um filme sádico.

Presente
As referências e alusões à história do cinema constituem a própria substância de "Juízo Final". É impossível detectá-las todas. Há ressonâncias também mais fundas, em particular a antiga aversão entre escoceses e ingleses. Tudo isso forma um jogo erudito, numa obra que se nutre, voluntária, confessadamente, de outras.

Lugares
Um público cabeça não vai ver "Juízo Final". De seu lado, as plateias em busca de divertimento talvez se decepcionem, perdidas na liberdade com que tudo é mesclado. Fiel a si próprio, o filme se entrega a uma sofisticação muito rara.


jorgecoli@uol.com.br




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