São Paulo, domingo, 6 de setembro de 1998

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Um discípulo de Stanislavski

da Reportagem Local
e especial para a Folha

Boal relembra a sua passagem por Nova York, dos 22 aos 25 anos, quando estudou dramaturgia com o crítico e professor John Gassner e acompanhou o trabalho com as técnicas de interpretação do diretor e teórico russo Stanislavski, no Actors Studio.

Folha - Por que você decidiu ir aos Estados Unidos, no começo dos anos 50, estudar teatro?
Augusto Boal -
Quando terminei o meu curso na universidade -eu sou químico- , o meu pai falou "eu pago um ano para você, onde você quiser". Eu tive que decidir entre a França e os Estados Unidos. Eu escrevi para o John Gassner, e ele falou que estava indo para Nova York, para lecionar na Universidade Columbia. Queria ser dramaturgo e me interessou ir para lá, para estudar com ele. Eu nem pensava em ser diretor.
Folha - Você já tinha trabalhado em teatro, antes de ir?
Boal -
Já, com o Teatro Experimental do Negro. Mas eu devia ter 22 anos e queria estudar dramaturgia. E ele era o professor mais importante que tinha. Era o professor do Tennessee Williams, do Arthur Miller, esse pessoal todo.
Folha - Além de John Gassner, o que mais marcou?
Boal -
O importante, em Nova York, foi primeiro o trabalho com ele. Ele lia todas as minhas peças, comentava, fazia sugestões. Ao mesmo tempo, ele me ajudou a entrar no Actors Studio. Eu assistia a cenas, assistia a trabalhos do Actors Studio. Não entrava em cena, é claro, mas ficava lá, quietinho.
Folha - Quem estava no Actors Studio, nessa época?
Boal -
Tinha a Geraldine Page, com quem eu tinha ficado com boas relações. Tinha o James Dean, que estava estreando no teatro e eu já conhecia antes do "Imoralista", do (André) Gide. Tinha o Anthony Perkins, que era meu colega na universidade, na parte de Shakespeare. Então, o que foi bom foi o Gassner, foi o Actors Studio e, por fim, foi ver muito teatro. Não só o que se fazia lá, mas teatro do mundo inteiro.
Folha - E musicais?
Boal -
Alguns, "South Pacific", "Wish You Were Here". Eu achava interessante, mas não era o que me seduzia. Eu gostava de ver espetáculos do (diretor Elia) Kazan. Vi a estréia de "Gata em Teto de Zinco Quente", do Tennessee Williams. Também um "Chá e Simpatia" com esse colega, o Anthony Perkins. Eu estava fascinado por teatro mesmo, ia toda noite. E passava o dia na universidade, lendo, lendo, lendo.
Folha - Como era Stanislavski, na versão do Actors Studio?
Boal -
Era uma espécie de Stanislavski expressionista. O tempo subjetivo do ator não correspondia ao tempo objetivo da cena. O cara, antes de responder, pegava o copo, rolava o copo, olhava assim e falava "yeah" (risos). Antes de vir o "yeah", era toda a pausa, todo o close-up do cinema, por responsabilidade do Kazan.
Ele gostava de cinema e fazia muito cinema. No cinema, você vê a cara do ator e não vê a inter-relação. Também tem, mas há momentos em que você vê só a cara do ator. No teatro, você tem a inter-relação como prioritária.
Folha - De Nova York, você trouxe e ajudou a iniciar uma série de mudanças no teatro, no Brasil. Em relação a Stanislavski, ao Actors Studio, o que você trouxe?
Boal -
Eu já vim querendo trabalhar com o método Stanislavski. Não fui a pessoa que introduziu Stanislavski no Brasil. Antes já havia o Sadi Cabral, a Luiza Barreto Leite. A primeira vez em que ouvi falar de Stanislavski foi com eles, em 52, aqui no Rio de Janeiro.
Mas a gente fez em 56, pela primeira vez, um estudo sistemático do Stanislavski. Foi quando eu dirigi "Ratos e Homens". A gente pegava Stanislavski página por página. O grupo era o (Gianfrancesco) Guarnieri, o Vianinha (Oduvaldo Vianna Filho), o Flávio Miggliaccio, depois o Nelson Xavier. A gente estudava tudo e depois via o que podia usar e o que não.
Folha - Já era Stanislavski aplicado à montagem?
Boal -
Primeiro era geral e, depois, aplicando à montagem. No ano seguinte, a gente criou o chamado laboratório de interpretação. Outro dia eu vi, foi muito divertido, o Paulo Autran dizendo "a gente sempre fez exercício, depois é que chamaram laboratório". Tive vontade de ligar e falar "chama laboratório porque eu sou químico" (risos). A gente tinha que dar um nome para aquilo, e pegou. Mas a gente fazia sistematicamente. Quando não tinha nenhuma peça em cartaz, o laboratório continuava funcionando, primeiro só para nós. Depois passou a ser para outros grupos, também.
Folha - Você já estava voltado para a busca de uma interpretação brasileira? Usar Stanislavski com um propósito nacional?
Boal -
Claro, até porque a gente tinha admiração, mas também rejeição, pelo TBC (Teatro Brasileiro de Comédia). Eles faziam coisas profissionais, bem-feitas, mas eu ia ao TBC e me sentia em Milão. "Onde é que está o Brasil, nisso?" Era uma época em que a gente falava muito em nacionalismo.
Folha - "O Petróleo É Nosso."
Boal -
"O Petróleo É Nosso." A nação, incluída a burguesia nacional. Era a nação contra os estrangeiros. Havia essa diferença, que hoje praticamente desapareceu.
Folha - E o que seria uma interpretação brasileira, na prática?
Boal -
As primeiras peças que eu montei, usando Stanislavski, também falavam de coisas que não tinham muita relação conosco. "Ratos e Homens" era sobre fazendas americanas. A gente viu que não era por aí. Mas estava sendo bom, porque a forma de interpretar já passou a ser brasileira.
Folha - Mas o que é uma forma brasileira de interpretar?
Boal -
Naquela época, para nós, era a verossimilhança. Era uma interpretação que não tivesse nenhum dos trejeitos, das formas pré-estabelecidas. A mesma coisa aconteceu com Stanislavski, no começo. Antes dele havia uma interpretação simbólica (faz gesto exagerado). Isto é o amor. E ele introduziu a interpretação sinalética. O amor, se eu amo, é a minha cara que vai expressar, sou eu inteiro. Não é o gesto pré-estabelecido. Ele deu esse grande salto.
O TBC também vinha com formas simbólicas. A gente queria uma interpretação sinalética e dizia "é brasileiro". Por quê? Porque nós éramos brasileiros. Não era para criar uma nova simbologia e dizer, "o gesto brasileiro é esse". A gente não queria criar um código de interpretação brasileiro.
Folha - Flávio Migliaccio é dado, em livros, como o exemplo dessa interpretação brasileira.
Boal -
Ele era maravilhoso. Entrava em cena e você não despregava os olhos dele. O Guarnieri também. Havia atores excepcionais no Arena. Eu tinha visto Actors Studio e dizia: "Não tenho inveja nenhuma do Kazan". Os espetáculos que a gente fazia eram de uma precisão, de uma riqueza.
Folha - O (diretor) Zé Celso, num texto da época, agora editado em livro, ironiza a interpretação do Arena. Diz que era uma certa imitação de povo. O que você acha?
Boal -
O Zé Celso é muito contraditório. Ao mesmo tempo em que ele diz isso, ele também diz coisas maravilhosas sobre o Arena. Mas é uma pessoa muito bacana, eu gosto demais dele.
Folha - E a crítica em si?
Boal -
Não era imitação de povo, não. Mas não sei se ele usou a palavra no sentido de mimese, no sentido grego. Aí sim. No sentido de mimese, é entrar dentro da pessoa e tentar sentir o que ela sente, para chegar à expressão. Agora, se ele falou em imitar no sentido de macaquear, aí não é verdade. Mas o Zé Celso é um excelente diretor. Ele não tem, necessariamente, que ser um excelente crítico.
Folha - Ele foi seu assistente.
Boal -
Foi. Ele começou comigo. E disse ele, nesse livro mesmo, que aprendeu muito comigo. Eu também aprendi com ele.
Folha - Ele aprendeu Stanislavski, por exemplo, com você.
Boal -
É.



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