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FILOSOFIA
A ciência total
Ao discutir a polêmica Sokal, Edgar Morin propõe jogo entre o poder científico e o literário
da Redação
Atual diretor do Centro Nacional da Pesquisa Científica (Paris),
o francês Edgar Morin estará no
Brasil nesta semana para participar do Primeiro Congresso Interlatino do Pensamento Complexo.
Sistema filosófico que define como "a construção de uma política
de civilização capaz de resgatar a
multiplicidade/unidade do "homo sapiens demens' (o termo
"demens" significando a porção
que sonha e tergiversa)", a complexidade será o tema da palestra
que Morin fará na abertura do
congresso.
O Primeiro Congresso Interlatino do Pensamento Complexo
acontece entre a próxima terça-feira e o dia 11, na Universidade
Cândido Mendes (r. da Assembléia, 10, Centro, RJ). As inscrições custam R$ 50,00 e podem ser
feitas pelo tel. 021/531-2000, ramal
254.
Leia a seguir trecho de um texto
exclusivo para a Folha do filósofo
francês sobre o "caso Sokal".
EDGAR MORIN
Como resultado do "caso Sokal", a questão de saber em que
condições se pode falar de autonomia ou dependência da ciência recobra todo o seu vigor e, que seja
dito, a sua pertinência. Alguns teriam visto na farsa de Sokal uma
prova de falsificação científica
-falsificar o enunciado de um
discurso para testar os critérios de
reconhecimento de sua validade.
Entretanto, parece mais proveitoso ver nisso sobretudo um jogo
entre dois poderes bem marcados:
os "científicos", de um lado, e os
"narrativos/literários", de outro.
O caso, então, pode ser decomposto em dois episódios: um
"molièresco" (cômico, antes de
tudo) e outro "torquemadesco"
(inquisitório e denunciador).
Sokal logra, de fato, publicar um
texto numa revista séria, parodiando um estilo pedante e precioso no qual se mesclam, em desordem, as idéias de "desconstrução" e "construtivismo": um seria a tendência de minar as bases
clássicas do edifício majestoso das
leis da natureza; o outro, o construtivismo, buscaria substituir essas leis impessoais por uma ideologia fundada em condições sociohistóricas. Desvelando a fraude
"molièresca", Sokal conclui que
falar da ciência, no interior do discurso científico, conduz à vaidade
e à indulgência.
Daí o segundo aspecto, "torquemadesco", do caso, que desencadeou uma grande ofensiva
lançada pelos representantes instituídos da ciência dita "dura" ou
"pura" (de que Weinberg é um
dos paladinos). Estes tencionariam varrer o estilo "construtivista" e "desconstrutivista" que
polui seu discurso científico, bem
como denegar à psicologia e à sociologia a pretensão de dar conta
da ciência: em suma, varrer toda
pretensão epistemológica de relativizar a ciência e toda contestação
referente à organização das disciplinas; varrer tudo o que poderia
pôr em xeque o monopólio do conhecimento pelos cientistas. (...)
Ora, o problema da ciência como objeto de reflexão filosófica e
epistemológica se impõe mais do
que nunca. De fato, a ciência como
tal é problemática -ela própria
formula problemas e os oferece à
reflexão. Ou, em outras palavras,
ela é uma instância paradigmaticamente complexa, uma certa forma privilegiada de racionalidade,
embora não integre o sujeito que
pensa. Ela ignora o observador-conceptor. Além disso, a ciência não é apenas despida da consciência dela mesma. Ela é necessariamente desvinculada da consciência ética. Foi isto que lhe deu
sua autonomia, mas também o
que lhe dá, na época contemporânea, após ter desenvolvido os poderes de manipulação e de morte,
a sua influência. (...)
A pergunta que devemos nos fazer sobre a verdade científica é: em
quais condições e para quais observadores-conceptores-construtores um teorema é verdadeiro ou
é "científica" uma coisa? As leis,
as descobertas, a objetividade avalizadas por uma ciência escapariam às condições históricas, sociais e psicológicas presentes ao
tempo de seu advento ou seriam
prisioneiras delas?
Esse problema foi tratado pela
sociologia há mais de meio século.
Thomas Merton, por exemplo,
enxerga determinismos sociais e
indaga: como a ciência, incapaz de
escapar a tais determinações, produz um saber que os transcende,
em razão de seu caráter universal e
objetivo? Parece evidente que a
Terra não passa a girar em torno
do Sol só depois que Copérnico,
em condições singulares e precisas, estabelece a equação que prova o heliocentrismo.
Uma outra sociologia, porém,
marcada pela forte personalidade
do escocês Bloor, afirma que a
ciência pretende se universalizar e
elevar acima de seu contexto sociohistórico, a fim de melhor ocultar de si mesma sua função, que é a
de ser uma "ideologia" de nossa
sociedade. Se acrescentarmos a isso um toque de marxismo -ou de
pseudomarxismo-, essa "ideologia" torna-se a ideologia do capitalismo contemporâneo.
Assim, o problema da autonomia da ciência é visto hoje de duas
formas tão reducionistas quanto
antagônicas. De um lado, uma
ciência reduzida à física tradicional e a suas leis que regem o universo de maneira imperiosa e incontestada; de outro, nega-se todo
privilégio epistemológico à ciência, pois ela relaciona-se a uma
ideologia. A dificuldade reside em
criticar simultaneamente esses
dois pontos de vista.
Minha proposta é reconhecer
plenamente os ingredientes
não-científicos mas necessários à
construção e à produção do saber
científico. (...) Enfim, é necessário
criticar a relativização generalizada. Nesse sentido, de fato, o reducionismo sociohistórico, cuja tendência é reduzir toda idéia, inclusive a idéia científica, a suas condições espaço-temporais de formação, solapa sua própria base. Isso
porque a idéia segundo a qual todo conhecimento depende de suas
condições de surgimento relativiza-se a si mesma. A idéia segundo
a qual não há verdade universal
destrói sua validade universal.
Com isso, a concepção que relativiza a ciência deve ela própria se
relativizar e suspender toda pretensão à validade absoluta.
A dependência da autonomia
Em geral, a idéia de autonomia se
opõe à de dependência, da mesma
maneira que a idéia de liberdade se
opõe à de determinismo. Na concepção científica tradicional, a autonomia não era imaginável, já
que havia determinações, causas
externas. Autonomia, se houvesse, não seria outra senão a metafísica. Hoje em dia, com o progresso
das noções vindas da cibernética e
da teoria dos sistemas e sobretudo
com a concepção da auto-organização (em virtude do segundo
princípio da termodinâmica), está
claro que os sistemas auto-organizados e autoproduzidos esbanjam
energia por seu próprio trabalho
de auto-organização. Eles têm,
portanto, a necessidade de retirar
energia de seu meio. Dele se retiram também, como dizia Schrödinger, a ordem e a organização.
Animais e vegetais, para dar um
exemplo, integram neles a organização que vem da rotação da Terra, isto é, a alternância do dia e da
noite ou das estações. (...)
O paradoxo é o seguinte: um sistema autônomo só pode sê-lo caso
dependa das condições externas.
Quanto mais nos tornamos dependentes de uma cultura, quer
dizer, quanto mais lemos e aprendemos, quanto mais conhecemos
o mundo e a sociedade, maior é a
chance de desenvolver a nossa autonomia de espírito.
Tradução e reconstrução
O conhecimento é sempre uma
tradução e uma reconstrução. O
próprio cérebro jamais se conecta
diretamente com o mundo. Nossos terminais sensoriais sofrem o
influxo de estímulos que são retrabalhados, transformados e traduzidos num código binário, para finalmente nos fornecer a percepção. Além disso, um conhecimento sob forma de idéias e de teorias
é uma tradução e uma reconstrução. Por isso, as idéias servem tanto para nos comunicar com o
mundo exterior quanto para ocultá-lo. Nessa concepção, a ciência
não é o perfeito reflexo da ordem
majestosa da natureza que ela logra desvendar, mas também não é
uma pura construção do espírito.
A meu ver, a ciência se constrói
com a cooperação do mundo exterior: sou co-construtivista.
Tradução de José Marcos Macedo.
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