São Paulo, domingo, 6 de setembro de 1998

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FILOSOFIA

A ciência total

Ao discutir a polêmica Sokal, Edgar Morin propõe jogo entre o poder científico e o literário
da Redação

Atual diretor do Centro Nacional da Pesquisa Científica (Paris), o francês Edgar Morin estará no Brasil nesta semana para participar do Primeiro Congresso Interlatino do Pensamento Complexo.
Sistema filosófico que define como "a construção de uma política de civilização capaz de resgatar a multiplicidade/unidade do "homo sapiens demens' (o termo "demens" significando a porção que sonha e tergiversa)", a complexidade será o tema da palestra que Morin fará na abertura do congresso.
O Primeiro Congresso Interlatino do Pensamento Complexo acontece entre a próxima terça-feira e o dia 11, na Universidade Cândido Mendes (r. da Assembléia, 10, Centro, RJ). As inscrições custam R$ 50,00 e podem ser feitas pelo tel. 021/531-2000, ramal 254.
Leia a seguir trecho de um texto exclusivo para a Folha do filósofo francês sobre o "caso Sokal".

EDGAR MORIN


Como resultado do "caso Sokal", a questão de saber em que condições se pode falar de autonomia ou dependência da ciência recobra todo o seu vigor e, que seja dito, a sua pertinência. Alguns teriam visto na farsa de Sokal uma prova de falsificação científica -falsificar o enunciado de um discurso para testar os critérios de reconhecimento de sua validade.
Entretanto, parece mais proveitoso ver nisso sobretudo um jogo entre dois poderes bem marcados: os "científicos", de um lado, e os "narrativos/literários", de outro. O caso, então, pode ser decomposto em dois episódios: um "molièresco" (cômico, antes de tudo) e outro "torquemadesco" (inquisitório e denunciador).
Sokal logra, de fato, publicar um texto numa revista séria, parodiando um estilo pedante e precioso no qual se mesclam, em desordem, as idéias de "desconstrução" e "construtivismo": um seria a tendência de minar as bases clássicas do edifício majestoso das leis da natureza; o outro, o construtivismo, buscaria substituir essas leis impessoais por uma ideologia fundada em condições sociohistóricas. Desvelando a fraude "molièresca", Sokal conclui que falar da ciência, no interior do discurso científico, conduz à vaidade e à indulgência.
Daí o segundo aspecto, "torquemadesco", do caso, que desencadeou uma grande ofensiva lançada pelos representantes instituídos da ciência dita "dura" ou "pura" (de que Weinberg é um dos paladinos). Estes tencionariam varrer o estilo "construtivista" e "desconstrutivista" que polui seu discurso científico, bem como denegar à psicologia e à sociologia a pretensão de dar conta da ciência: em suma, varrer toda pretensão epistemológica de relativizar a ciência e toda contestação referente à organização das disciplinas; varrer tudo o que poderia pôr em xeque o monopólio do conhecimento pelos cientistas. (...)
Ora, o problema da ciência como objeto de reflexão filosófica e epistemológica se impõe mais do que nunca. De fato, a ciência como tal é problemática -ela própria formula problemas e os oferece à reflexão. Ou, em outras palavras, ela é uma instância paradigmaticamente complexa, uma certa forma privilegiada de racionalidade, embora não integre o sujeito que pensa. Ela ignora o observador-conceptor. Além disso, a ciência não é apenas despida da consciência dela mesma. Ela é necessariamente desvinculada da consciência ética. Foi isto que lhe deu sua autonomia, mas também o que lhe dá, na época contemporânea, após ter desenvolvido os poderes de manipulação e de morte, a sua influência. (...)
A pergunta que devemos nos fazer sobre a verdade científica é: em quais condições e para quais observadores-conceptores-construtores um teorema é verdadeiro ou é "científica" uma coisa? As leis, as descobertas, a objetividade avalizadas por uma ciência escapariam às condições históricas, sociais e psicológicas presentes ao tempo de seu advento ou seriam prisioneiras delas?
Esse problema foi tratado pela sociologia há mais de meio século. Thomas Merton, por exemplo, enxerga determinismos sociais e indaga: como a ciência, incapaz de escapar a tais determinações, produz um saber que os transcende, em razão de seu caráter universal e objetivo? Parece evidente que a Terra não passa a girar em torno do Sol só depois que Copérnico, em condições singulares e precisas, estabelece a equação que prova o heliocentrismo.
Uma outra sociologia, porém, marcada pela forte personalidade do escocês Bloor, afirma que a ciência pretende se universalizar e elevar acima de seu contexto sociohistórico, a fim de melhor ocultar de si mesma sua função, que é a de ser uma "ideologia" de nossa sociedade. Se acrescentarmos a isso um toque de marxismo -ou de pseudomarxismo-, essa "ideologia" torna-se a ideologia do capitalismo contemporâneo.
Assim, o problema da autonomia da ciência é visto hoje de duas formas tão reducionistas quanto antagônicas. De um lado, uma ciência reduzida à física tradicional e a suas leis que regem o universo de maneira imperiosa e incontestada; de outro, nega-se todo privilégio epistemológico à ciência, pois ela relaciona-se a uma ideologia. A dificuldade reside em criticar simultaneamente esses dois pontos de vista.
Minha proposta é reconhecer plenamente os ingredientes não-científicos mas necessários à construção e à produção do saber científico. (...) Enfim, é necessário criticar a relativização generalizada. Nesse sentido, de fato, o reducionismo sociohistórico, cuja tendência é reduzir toda idéia, inclusive a idéia científica, a suas condições espaço-temporais de formação, solapa sua própria base. Isso porque a idéia segundo a qual todo conhecimento depende de suas condições de surgimento relativiza-se a si mesma. A idéia segundo a qual não há verdade universal destrói sua validade universal. Com isso, a concepção que relativiza a ciência deve ela própria se relativizar e suspender toda pretensão à validade absoluta.

A dependência da autonomia
Em geral, a idéia de autonomia se opõe à de dependência, da mesma maneira que a idéia de liberdade se opõe à de determinismo. Na concepção científica tradicional, a autonomia não era imaginável, já que havia determinações, causas externas. Autonomia, se houvesse, não seria outra senão a metafísica. Hoje em dia, com o progresso das noções vindas da cibernética e da teoria dos sistemas e sobretudo com a concepção da auto-organização (em virtude do segundo princípio da termodinâmica), está claro que os sistemas auto-organizados e autoproduzidos esbanjam energia por seu próprio trabalho de auto-organização. Eles têm, portanto, a necessidade de retirar energia de seu meio. Dele se retiram também, como dizia Schrödinger, a ordem e a organização. Animais e vegetais, para dar um exemplo, integram neles a organização que vem da rotação da Terra, isto é, a alternância do dia e da noite ou das estações. (...)
O paradoxo é o seguinte: um sistema autônomo só pode sê-lo caso dependa das condições externas. Quanto mais nos tornamos dependentes de uma cultura, quer dizer, quanto mais lemos e aprendemos, quanto mais conhecemos o mundo e a sociedade, maior é a chance de desenvolver a nossa autonomia de espírito.

Tradução e reconstrução
O conhecimento é sempre uma tradução e uma reconstrução. O próprio cérebro jamais se conecta diretamente com o mundo. Nossos terminais sensoriais sofrem o influxo de estímulos que são retrabalhados, transformados e traduzidos num código binário, para finalmente nos fornecer a percepção. Além disso, um conhecimento sob forma de idéias e de teorias é uma tradução e uma reconstrução. Por isso, as idéias servem tanto para nos comunicar com o mundo exterior quanto para ocultá-lo. Nessa concepção, a ciência não é o perfeito reflexo da ordem majestosa da natureza que ela logra desvendar, mas também não é uma pura construção do espírito. A meu ver, a ciência se constrói com a cooperação do mundo exterior: sou co-construtivista.


Tradução de José Marcos Macedo.



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