São Paulo, domingo, 6 de setembro de 1998

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PONTO DE FUGA

A paz da sepultura

JORGE COLI
especial para a Folha

Felipe 2º de Espanha explica ao marquês de Posa que a morte imposta aos povos é o melhor instrumento de paz. Essa política horrenda configura uma das associações entre morte e paz, questão que está no cerne da ópera "D. Carlo", de Verdi, apresentada, há pouco, no Rio de Janeiro. "D. Carlo" é a retomada de "D. Carlos", tragédia escrita 80 anos antes por Schiller. Ela revela o quanto Freud -que cita sem cessar suas peças- intuiria no grande poeta as situações psicanalíticas. Carlos, filho de Felipe 2º, ama sua madrasta e é correspondido. Felipe 2º manda matá-lo, com a cumplicidade do Grande Inquisidor, velho cego e implacável. Estes e outros conflitos pessoais confundem-se com as exigências da política, da ética, com o ódio à intolerância e ao obscurantismo.
Violentamente anticlerical, a ópera provocou reações: ainda em 1950 católicos norte-americanos queriam impedir sua montagem em Nova York. Se o aspecto analítico do texto tende a se diluir na música, esta lhe confere a mais justa e poderosa força emotiva, experiência intensa das paixões e dos tormentos. Verdi alterou o final da tragédia, fazendo surgir o fantasma do imperador Carlos 5º para bloquear o desfecho. Nem o claustro é tranquilo, nem os mortos têm repouso, e jamais a angústia romântica diante da paz impossível foi tão forte.

AAA - O filme "O Ébrio", dirigido por Gilda de Abreu em 1946, foi cuidadosamente restaurado. Ele é melhor agora do que na memória. Pouco importa a montagem tosca, os rudimentares movimentos de câmera, as convenções melodramáticas: Gilda de Abreu tem o sentido da imagem, sempre narrativa e às vezes muito bela; sabe dirigir os atores, excelentes, todos; não abandona nunca o humor, nem nos momentos pungentes, com dosagem que surpreende pelo equilíbrio.
Gilda de Abreu é o que Michel Vovelle chamou de "intermediário cultural", alguém que se movimenta entre as formas elevadas da cultura e as claves populares. Ela e Vicente Celestino agiram numa faixa situada entre a ópera e a canção, entre o grande teatro e o sentimentalismo simplificado, tudo com muita sinceridade e muito vigor. Gilda de Abreu estrelou um outro filme mítico, "Bonequinha de Seda", dirigido por Oduvaldo Viana em 1935, que mereceria também restauração. "O Ébrio" é uma jóia.

MOZART - As seis sonatas para violino e piano de Camargo Guarnieri, gravadas há dois anos por Larsen e Müllenbach (Marco Polo), foram descobertas com espanto pelas críticas européia e americana, unânimes na admiração. Surge nova versão das três primeiras, por Laís de Souza Brasil e Tânia Camargo Guarnieri (Eldorado). São concepções opostas, uma rude e construída, outra rica de sonoridades e de mistério, ambas indispensáveis.
VÔO - Depois que a tirania do "serial-chic" cessou, voltou-se a interpretar obras do pós-guerra que ficavam na sombra. Villa-Lobos conheceu um sério purgatório, mas ressurge discretamente em âmbito internacional. Emmanuel Krivine e a Orquestra de Lyon (Erato) consagraram-lhe mais um CD. Nele, uma leitura inédita, hipnótica e voluptuosa: a "Bachiana nº 2" nunca foi tão sedutora.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-Mail:coli20@hotmail.com



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