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PONTO DE FUGA
A paz da sepultura
JORGE COLI
especial para a Folha
Felipe 2º de Espanha explica
ao marquês de Posa que a morte imposta aos povos é o melhor
instrumento de paz. Essa política horrenda configura uma
das associações entre morte e
paz, questão que está no cerne
da ópera "D. Carlo", de Verdi,
apresentada, há pouco, no Rio
de Janeiro. "D. Carlo" é a retomada de "D. Carlos", tragédia
escrita 80 anos antes por Schiller. Ela revela o quanto Freud
-que cita sem cessar suas peças- intuiria no grande poeta
as situações psicanalíticas.
Carlos, filho de Felipe 2º, ama
sua madrasta e é correspondido. Felipe 2º manda matá-lo,
com a cumplicidade do Grande
Inquisidor, velho cego e implacável. Estes e outros conflitos
pessoais confundem-se com as
exigências da política, da ética,
com o ódio à intolerância e ao
obscurantismo.
Violentamente anticlerical, a
ópera provocou reações: ainda
em 1950 católicos norte-americanos queriam impedir sua
montagem em Nova York. Se o
aspecto analítico do texto tende a se diluir na música, esta
lhe confere a mais justa e poderosa força emotiva, experiência
intensa das paixões e dos tormentos. Verdi alterou o final
da tragédia, fazendo surgir o
fantasma do imperador Carlos
5º para bloquear o desfecho.
Nem o claustro é tranquilo,
nem os mortos têm repouso, e
jamais a angústia romântica
diante da paz impossível foi
tão forte.
AAA - O filme "O Ébrio", dirigido por Gilda de Abreu em
1946, foi cuidadosamente restaurado. Ele é melhor agora do
que na memória. Pouco importa a montagem tosca, os rudimentares movimentos de câmera, as convenções melodramáticas: Gilda de Abreu tem o
sentido da imagem, sempre
narrativa e às vezes muito bela;
sabe dirigir os atores, excelentes, todos; não abandona nunca o humor, nem nos momentos pungentes, com dosagem
que surpreende pelo equilíbrio.
Gilda de Abreu é o que Michel Vovelle chamou de "intermediário cultural", alguém que
se movimenta entre as formas
elevadas da cultura e as claves
populares. Ela e Vicente Celestino agiram numa faixa situada entre a ópera e a canção, entre o grande teatro e o sentimentalismo simplificado, tudo
com muita sinceridade e muito
vigor. Gilda de Abreu estrelou
um outro filme mítico, "Bonequinha de Seda", dirigido por
Oduvaldo Viana em 1935, que
mereceria também restauração. "O Ébrio" é uma jóia.
MOZART - As seis sonatas
para violino e piano de Camargo Guarnieri, gravadas há dois
anos por Larsen e Müllenbach
(Marco Polo), foram descobertas com espanto pelas críticas
européia e americana, unânimes na admiração. Surge nova
versão das três primeiras, por
Laís de Souza Brasil e Tânia
Camargo Guarnieri (Eldorado). São concepções opostas,
uma rude e construída, outra
rica de sonoridades e de mistério, ambas indispensáveis.
VÔO - Depois que a tirania
do "serial-chic" cessou, voltou-se a interpretar obras do
pós-guerra que ficavam na
sombra. Villa-Lobos conheceu
um sério purgatório, mas ressurge discretamente em âmbito internacional. Emmanuel
Krivine e a Orquestra de Lyon
(Erato) consagraram-lhe mais
um CD. Nele, uma leitura inédita, hipnótica e voluptuosa: a
"Bachiana nº 2" nunca foi tão
sedutora.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-Mail:coli20@hotmail.com
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