São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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+ cultura

A socióloga holandesa, que fala amanhã em SP, diz que a classe média perdeu importância e defende o papel de excluídos e transnacionais para reativar megacidades

As ligações concretas

Juliana Monachesi
free-lance para a Folha

D eixando de lado setores cruciais das cidades, como a classe trabalhadora organizada e a classe média -elas "não estão mais transformando as forças econômicas"- a socióloga holandesa radicada nos EUA Saskia Sassen, autora de "The Global City" (A Cidade Global), aposta no poder político dos excluídos e das empresas globais.
Professora de sociologia na Universidade de Chicago (EUA) e da London School of Economics, Sassen participa amanhã do 3º Seminário Internacional da USP, integrando a mesa-redonda "Obstáculos ao Desenvolvimento da América Latina", de que também participam o filósofo Roberto Mangabeira Unger e o professor de economia da FGV-SP Luis Carlos Bresser Pereira.
Na entrevista a seguir, Sassen fala também de questões tratadas no livro que está prestes a lançar nos EUA, "Denationalization - Economy and Polity in a Global Digital Age" (Desnacionalização - Economia e Regime em uma Era Digital Global), baseado em pesquisa sobre os mecanismos de governo em uma economia globalizada.

"Metrópoles", "megacidades", "cidades globais": o nosso vocabulário está obsoleto em relação à especificidade urbana?
Cada um destes termos captura dimensões específicas, nenhum deles consegue captar a cidade como uma entidade viva e complexa, com muitos tipos diferentes de materialidades e de culturas. O desafio hoje, me parece, é entender a presença de forças globais e microforças, ou seja, forças suburbanas, também estratégicas no desenvolvimento e na vida cotidiana das cidades. Em "Cidade Global" eu tentei fazer precisamente isso (uma versão reduzida deste livro foi publicada no Brasil pela Studio Nobel como "As Cidades na Economia Mundial"). Na cidade global, os dois atores estratégicos que estão mudando a experiência da cultura urbana e política e que têm dado forma ao poder são os setores de empresas globais -estrangeiras ou nacionais- e a mistura de desfavorecidos que encontram na cidade talvez o último lugar para sobreviver e lutar: favelados -muitas vezes organizados politicamente-, minorias internas de baixa renda, mulheres de baixa renda que são mães solteiras, operários antes organizados em sindicatos. Talvez até os anos de 1970 a classe trabalhadora organizada e empresas nacionais orientadas para o mercado nacional eram os atores estratégicos em uma cidade como São Paulo, e em certa medida a classe média que estava se expandindo e fazendo da cidade um lugar mais habitável para as pessoas. Isso mudou: a classe média não tem mais esse papel civilizador, e a classe trabalhadora organizada perdeu de certa maneira seu poder de ser um ator estratégico.
O conceito de cidades globais parece implicar o enfraquecimento das nacionalidades. As multinacionais se tornaram mais importantes que os governos nacionais?
A cidade global é um espaço onde não somente o componente corporativo global -feito de empresas nacionais e estrangeiras e de profissionais idem- se torna parcialmente desnacionalizado. Também aquele outro setor de desfavorecidos, aqueles a quem o Estado claramente virou as costas, torna-se desnacionalizado, mas de maneira diversa. Eles tornam-se desnacionalizados no sentido de uma distância crescente entre o Estado nacional e a identidade pessoal: reivindicações sobre a cidade, habitação, abastecimento de água, transporte etc. se proliferam e se tornam mais e mais organizadas. Isso significa que a identidade de muitas pessoas se ativa e fundamenta nessas demandas concretas, e nesse sentido torna-se parte de uma condição global, porque essas reivindicações estão se proliferando em todas as principais cidades, de São Paulo a Nova York, de Paris a Jacarta, de Londres a Manila. Isso cria uma espécie de globalização horizontal: ela não funciona por meio de pirâmides verticais como a OMC [Organização Mundial do Comércio] ou de uma noção de Estado global ou de Nações Unidas. Ela passa por localidades múltiplas engajadas em lutas locais com governos locais ou setores da economia, frequentemente também no nível suburbano (a vizinhança), mas definitivamente na cidade, em detrimento do nível nacional.
Quem é responsável por regular essas cidades "transnacionais" e seus negócios?
Existem diversos mecanismos e instituições, nenhum deles suficiente, nenhum deles capaz de assegurar responsabilidade completa. Entre os instrumentos de responsabilização está uma série de leis que regulam a conduta das empresas e que presidem todo país; normas do governos municipais que afetam certos aspectos das operações das empresas, sejam nacionais ou estrangeiras; em terceiro lugar, e muito mais complicado e elusivo, está o que chamo, em "A Cidade Global", de "privatização de funções regulatórias" que ocorre como consequência da privatização de empresas públicas e da desregulamentação de setores econômicos. Um quarto mecanismo vem do regime internacional emergente (OMC, contabilidade internacional e apresentação de relatórios financeiros) que empresas, mercados e governos têm de respeitar. Esse é um regime muito particular, dominado por conceitos anglo-americanos e controlados pelos amplos atores econômicos do Norte global: o governo dos EUA também está neste quadro, assim como o FMI. Isso representa um poder externo para a maioria dos países do mundo, mas é uma ferramenta que assegura o controle e poder das principais empresas dos países ricos e também algumas das grandes empresas no Sul global, particularmente no Brasil -que pode ter muitos pobres, mas é um país incrivelmente rico, o que faz sua pobreza maciça mais escandalosa. Uma das tragédias é que tantos governos no Sul tenham se acomodado -devido à enorme pressão, embora nem sempre- às exigências desse regime dominante anglo-americano internacional.
Por que cidades como São Paulo, Buenos Aires e Cidade do México são incluídas em seus estudos entre aquelas com potencial econômico global?
Porque empresas globais, não importa quão globais nem quanto elas operem em mercados eletrônicos, precisam de uma rede de cidades com recursos de profissionais e infra-estruturas para cuidar da coordenação, serviços, gerenciamento etc. de suas operações mais complexas. Buenos Aires possui muitos recursos concentrados -serviços, comunicações, habitação. Empresas, mercados, e profissionais estão aguardando para que ela seja reinserida no "loop" global. São Paulo e Cidade do México são sólidas cidades globais nesse contexto. Elas não estão no topo da hierarquia global, mas estão bem colocadas. Há hoje cerca de 40 cidades globais: cinco principais, Nova York, Londres, Tóquio, Paris e Frankfurt, seguidas de 20 outras, como Zurique, Hong Kong, Amsterdã, São Paulo e Cidade do México.


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