São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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Virtudes do bom mesário

Isaias Pessotti

O mesário é, antes de tudo, um forte. Mesmo quando não é sertanejo. Precisa ter muita paciência.
Por exemplo, quando o presidente da seção manda retirar da fila de eleitores alguma jovem bem dotada para votar antes dos demais; ou quando dá o copo de água mineral do mesário a algum eleitor importante; quando um enésimo eleitor reclama aos berros: "Isso está uma bagunça: vocês deveriam organizar melhor essa votação"; quando, após ficar sentado por seis horas no banco escolar, na sala ensolarada e sem cortinas, alguma madame arrogante acusa: "Que calor horrível! Se vocês tivessem algum respeito pelo eleitor deveriam instalar ventiladores nesta sala"; quando um eleitor importante chega com jornalistas e lhes diz, abraçado ao mesário: "Eis aqui mais um protagonista anônimo desta grande festa cívica"; quando algum candidato posa junto da urna e exige que o mesário se afaste para não atrapalhar a fotografia.
O mesário precisa ter autocontrole, conter seus impulsos. Por exemplo, não pode rir quando o nome do eleitor for Gildofonso Galo Roxo ou Benvinda Guerra dos Santos; quando, lá da cabine, uma velhinha pergunta: "Moço, qual é o número do Sílvio Santos?". Deve conter-se quando o presidente sai para um cafezinho rápido e só volta depois de meia hora ou mais. Não pode deprimir-se quando um eleitor jovem exibe, vaidoso, a camiseta de Miami, com a cara ampliada do George W. Bush; deve achar graça em tarefas cívicas como a de destacar canhotos mal picotados, sem régua nem tesoura, ou a de desenhar flechas indicativas em papel de embrulho e fixá-las à parede, com fita crepe meio seca.
Deve restituir o título do Maguila, com a mesma afabilidade que dedicaria a Gisele Bündchen. Não deve entediar-se na hora do almoço, quando os eleitores não aparecem, mesmo que deva ouvir o presidente recitar, empolgado, a "Oração aos Moços", do Ruy Barbosa, mesmo que a sala seja invadida pelo cheiro de algum churrasco gorduroso da vizinhança.
Como diria Kipling, "se és capaz dessas virtudes todas, és um perfeito mesário, meu filho, e o lanche do TRE é teu. Todo teu".
Mas, sabendo que o exercício da virtude é árduo, como precaver-se contra as tentações de pecar, de irritar-se, de rir fora de hora, de mandar o presidente lamber sabão, de dizer à madame arrogante que, se quer conforto, fique em casa; de gritar "viva Bin Laden" quando o rapaz se envaidece por desfilar com a cara do Bush na camiseta, de dizer ao candidato demagogo que ele é um ladrão?
Há recursos para isso: para enfrentar o eleitor arrogante, agressivo ou o candidato prepotente, tente enxergá-lo de outro modo. Por exemplo, vestido de pijama rosa choque, no meio de uma catedral, com um frango vivo na mão e cantando a Marselhesa: ele ficará bem mais simpático. Para os casos hilariantes, desenhe na palma da mão um pato que se retorce quando você mexe a mão. Na hora de rir, olhe para o pato e ninguém perceberá que o motivo do riso é, por exemplo, o nome do Gildofonso. Para enfrentar os momentos de tédio, é aconselhável contar quantas gestantes passaram pela sala, quantos vidros da janela estão quebrados ou, então, imaginar quem estará no funeral de algum candidato corrupto. São recursos práticos e baratos.
PS: Agora, muito seriamente: o que seria da nossa democracia se não fossem os mesários? Um abraço respeitoso a todos eles.


Isaias Pessotti é escritor e ex-professor titular de psicologia da Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto (SP). É autor do romance "A Lua da Verdade" (ed. 34), entre outros.


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