São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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Justiça eleitoral

Jair F. dos Santos

A crônica de Monte Castelo, no Paraná, registra pelo menos um original, gente, aliás, que parece viver conforme a coroa inglesa: jamais reclamar, jamais explicar. Boanerges, o Boina, não reclamava da sua magreza espigada e soturna -e nunca explicou por que usava aquela boina azul num lugar onde o vento era calamitoso. Seus amigos no bocha implicavam calados, na Varig, onde emitia passagens e desenhava flores e bichos no verso dos documentos, se acostumaram à bizarrice, e o padre Schneider o autorizou a comungar emboinado. A qualquer pergunta sobre, respondia: assunto pessoal.
Além da boina e de Manuela, a jamboesa que visitava na zona uma vez por mês, Boanerges tinha outra mania: eleições, não política. O foguetório, as intrigas, as bandeirolas, as churrascadas o excitavam. Até porque, durante anos, convergiam para a 15ª seção no clube Kai-kan, que presidia com seu terno cinza, sua borboleta bordô, ereto na cadeira, os braços estendidos sobre a mesa. Ali seu rosto perdia a dispersão do palerma para se estreitar numa crispação fanática. Ali ele era a lei e a ordem. Ali não havia cabala nem repeteco nem morto-vivo votando. E saboreava em segredo as caras indecisas, traidoras, arrependidas, vitoriosas, para mais tarde, reservadamente, acertar com percentual altíssimo ao dizer em quem x ou y haviam votado. Surrupiada nas apurações, sua coleção de cédulas antigas anuladas com dizeres tipo "Judas", "Pelé", "corno", "safado", "peço-lhe em casamento" era famosa.
As três manias de Boanerges se cruzaram numa votação dos 60. Dona Rosita, a louraça mulher do atacadista Leonel Farinha, presidente da Câmara, achou pouco decente que Manuela fumasse cigarrilhas Talvis justo na sua frente, na fila, pesteando o ar. O tendéu não prosperou. Boanerges, o código eleitoral na cabeça, veio e decidiu a favor de Manuela. Quanto à boina: um ano depois, os mesários reunidos no fórum para que o juiz os orientasse, soube que estava excluído do próximo pleito; exatamente nisso, a crônica não mente, alguém escancarou as portas do salão e um pé-de-vento moleque tirou-lhe a boina.
O que se viu foi, na calva, um afundamento escabroso no lado direito e, na crista, uma calosidade comprida, grossa como um dedo, que se alteava na frente num talo de boa polegada. Salvador, um espírito coxo, quebrou o pasmo gritando "curuquerê, curuquerê": a calosidade era igualzinha à lagarta que comia as folhas do algodão. Boanerges respirou fundo, deixou o salão e nunca mais usou boina. Nem votou. Sua deformidade passeava pela cidade como um escárnio que maltratava a compaixão, troço intolerável. O padre Schneider e vários médicos tentaram convencê-lo a operar-se. Outros prometiam-lhe a 15ª de volta. A resposta foi: assunto pessoal. Amuaram, mas aceitaram.
Passaram-se duas décadas. Boanerges, o Curuquerê, aposentou-se nas lojas H.M. Comprou uma lambreta.
Lia Allan Kardec. Viajava ao sul do Estado para visitar parentes que nunca o visitavam. E matriculou-se no curso de pintura acrílica do Sesc, o único homem entre 20 mulheres. Então, na inauguração do novo centro cultural, mandou entregar durante a solenidade seu quadro "Justiça Eleitoral" e se trancou em casa. A pintura, enorme, ingênua, em tons fortes, apresentava uma vista aérea de Monte Castelo dividida em duas partes: numa havia gente normal nas ruas e casas, na outra, à direita, rastejavam curuquerês, lacraias, pulgões, ácaros, ratos, larvas, todos com rostos de antigos ou atuais moradores, seus desafetos, Leonel Farinha feito um gafanhoto.
Sobre eles um teco-teco agrícola despejava uma nuvem de pesticida, e no canto superior, à esquerda, tronava Boanerges, emboinado, sentado a uma mesa no seu impecável terno cinza.
Entre a arte e o acinte venceu a conveniência. O quadro está numa sala remota da prefeitura. Tempos depois, um gaiato jurou que viu em Curitiba, na Confeitaria das Famílias, Boanerges, todo emperucado, a conversar animadamente com uma senhora parecida com dona Rosita. A expressão "justiça eleitoral" ganhou aspas na cidade.


Jair Ferreira dos Santos é ficcionista e poeta, autor de "A Inexistente Arte da Decepção" (ed. Agir, contos) e de "Breve, o Pós-Humano" (ed. Francisco Alves/Imprensa Oficial do Paraná, no prelo, ensaios).


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