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A historiadora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke,
que está lançando "Gilberto Freyre - Um Vitoriano
nos Trópicos", fala da mudança da imagem do Brasil
Terra estrangeira
MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO
A professora Maria Lúcia
Garcia Pallares-Burke está
lançando um longo ensaio
sobre Gilberto Freyre, voltado para o público estrangeiro: "Gilberto Freyre - Um Vitoriano nos
Trópicos" (Unesp, 484 págs., R$ 58).
Em entrevista à Folha, ela fala sobre as repercussões no exterior do
recente referendo sobre a proibição
do comércio de armas e discorre sobre o que muda na imagem que o estrangeiro tem do brasileiro. Ela comenta a herança colonial lusitana
-baseada no ideal da democracia
racial e da miscigenação, preconizada por Gilberto Freyre-, e a idéia
do homem cordial, tratada por Sérgio Buarque de Holanda.
Pallares-Burke, que vive em Cambridge (Reino Unido) e é associada
ao Centro de Estudos Latino-Americanos da universidade local, não
acredita que o referendo signifique
uma mudança em nosso estatuto de
cidadania. Mas afirma que estamos
importando do exterior discursos já
ultrapassados.
Folha - Para um estrangeiro, o resultado do referendo (vitória do "não")
pode apresentar o Brasil como uma
sociedade regida pela violência?
Maria Lúcia Pallares-Burke - Eu diria, e isso tem a ver com a minha experiência de morar no exterior há
muitos anos, que os estrangeiros
têm uma imagem dupla do Brasil. O
Brasil é associado à violência, já antiga. Mas também é associado à gentileza, à cordialidade e à afabilidade.
A questão intrigante é se eles vêem
a mesma pessoa sendo capaz de violência e de gentileza -e de cordialidade no sentido mais usual que se
reconhece. Como a figura famosa de
"O Médico e o Monstro" (Dr. Jekyll
and Mr. Hyde). Mais ou menos assim, como no livro de Stevenson. Há
exemplo das duas visões.
Folha - O filme "Cidade de Deus" teve no Reino Unido um de seus maiores
êxitos no exterior. Os ingleses estão
"descobrindo" a violência do Brasil?
Pallares-Burke - Tenho impressão
que não é uma descoberta. O interesse pelo Brasil é o interesse pelo
Carnaval, pelo futebol, até pela mestiçagem. Apesar de isso estar sendo
questionado, há a valorização da
mestiçagem, de um país em que as
várias raças e os vários credos convivem muito bem.
Folha - A idéia que o estrangeiro
tem do Brasil tanto pode vir de Gilberto Freyre, com a democracia racial,
quanto de Sérgio Buarque, por meio
do conceito de homem cordial. Essas
idéias formadoras da nossa imagem
estão sendo questionadas?
Pallares-Burke - A idéia de homem
cordial para Sérgio Buarque foi, no
geral, mal compreendida. A cordialidade, segundo ele, significava agir
emocionalmente, por paixão.
E ele estava contrastando isso com
as sociedades do Norte, protestantes, que agem mais pela regra, mais
racionalmente. A cordialidade entendida nos termos que ele estava
dispondo -e que depois foi apropriada de uma forma que não era a
que ele pretendia- não significa
que, necessariamente, você vai ser
sempre uma pessoa simpática, agradável e gentil. Ela pode significar isso
se você agir levado pela emoção.
Também pode ser isso, mas não
necessariamente. Eu diria que a cordialidade, segundo Sérgio Buarque,
dá margem aos dois comportamentos. Ao ato violento, movido por paixão, e também ao comportamento
simpático, que é visto por tantos estrangeiros. Acho que essa duplicidade no Brasil é muito forte e tenho a
impressão de que, para os estrangeiros, ela está meio no ar.
Folha - A senhora se surpreendeu
com a vitória do "não"?
Pallares-Burke - Eu me surpreendi!
As pessoas estavam usando uma linguagem que me lembrava a dos norte-americanos, quando defendem o
direito de legítima defesa, o que para
mim é apavorante. No meu entender, é uma coisa que não tem muito
a ver com o Brasil, com as tradições
brasileiras.
Folha - O Brasil está importando discursos?
Pallares-Burke - Estamos, infelizmente. Há vários pesquisadores que
estão muito preocupados com essa
importação recente. A questão das
cotas, por exemplo. Infelizmente, está havendo um pouco disso.
O mito da democracia racial, por
exemplo. Não é uma verdade, mas
ela pode estimular, pode ir em direção a uma realidade muito longínqüa. É uma coisa muito mais positiva do que ter um mito do conflito,
que pode gerar o conflito. Percebo
aqui muito presente um discurso
norte-americano. Discurso que, diga-se de passagem, está sendo muito
contestado lá, por eles mesmos.
Folha - Como a sra. vê a discussão
sobre o referendo em relação ao que
Gilberto Freyre enxergava na sociedade brasileira?
Pallares-Burke - Apesar de, em seus
momentos mais otimistas, Gilberto
Freyre realmente passar uma imagem do Brasil quase idílica, em outros momentos ele era muito crítico.
Ele não escondeu a violência.
Eu levanto essa hipótese numa
passagem de meu livro. Se você for
buscar onde ele falou mais entusiasticamente a respeito desse Brasil paradisíaco em termos de mistura de
culturas e mistura de raças pacíficas,
foi quando escreveu ou falou para o
público estrangeiro.
Folha - Existe a imagem histórica de
que o país resolveu grandes conflitos
na base da conciliação, de acordos. O
resultado do referendo não contradiz
essa imagem? Não mostra uma descrença no Estado paternalista?
Pallares-Burke - Talvez a sociedade
esteja desesperançada em relação a
um Estado que a possa proteger.
Agora, historicamente, o Brasil era
visto lá fora e aqui também como
um país relativamente pacífico se
comparado com as outras repúblicas latino-americanas.
Isso era algo sempre mencionado
no exterior. Que era um país que
passou da Colônia para o Império e
do Império para a República. Freyre,
acho que repetindo outros, falava
como revolução branca. Agora, se isso [o referendo] vai abalar a visão de
um Brasil pacífico, eu não sei. Porque, na verdade, eu não concordo
que essa seja a visão que se tem. São
muitas as visões do Brasil.
Folha - O Brasil importou a idéia da
democracia a partir da Revolução
Francesa, da valorização do Estado.
Isso pode estar mudando?
Pallares-Burke - Eu não sei se, no
caso da atual circunstância política,
esse desencanto com o Estado é mais
importante do que a tradição cultural. Tornou-se mais importante neste momento. O indivíduo está desesperançado com uma situação política na qual ele tinha mais esperança.
Gilberto Freyre - Um Vitoriano nos Trópicos
484 págs., R$ 58
de Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke.
Ed. Unesp (praça da Sé, 108, SP, CEP
01001-900, tel. 0/ xx/11/3242-7171).
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