São Paulo, domingo, 06 de novembro de 2005

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A historiadora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke, que está lançando "Gilberto Freyre - Um Vitoriano nos Trópicos", fala da mudança da imagem do Brasil

Terra estrangeira

MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

A professora Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke está lançando um longo ensaio sobre Gilberto Freyre, voltado para o público estrangeiro: "Gilberto Freyre - Um Vitoriano nos Trópicos" (Unesp, 484 págs., R$ 58).
Em entrevista à Folha, ela fala sobre as repercussões no exterior do recente referendo sobre a proibição do comércio de armas e discorre sobre o que muda na imagem que o estrangeiro tem do brasileiro. Ela comenta a herança colonial lusitana -baseada no ideal da democracia racial e da miscigenação, preconizada por Gilberto Freyre-, e a idéia do homem cordial, tratada por Sérgio Buarque de Holanda.
Pallares-Burke, que vive em Cambridge (Reino Unido) e é associada ao Centro de Estudos Latino-Americanos da universidade local, não acredita que o referendo signifique uma mudança em nosso estatuto de cidadania. Mas afirma que estamos importando do exterior discursos já ultrapassados.

 

Folha - Para um estrangeiro, o resultado do referendo (vitória do "não") pode apresentar o Brasil como uma sociedade regida pela violência?
Maria Lúcia Pallares-Burke -
Eu diria, e isso tem a ver com a minha experiência de morar no exterior há muitos anos, que os estrangeiros têm uma imagem dupla do Brasil. O Brasil é associado à violência, já antiga. Mas também é associado à gentileza, à cordialidade e à afabilidade.
A questão intrigante é se eles vêem a mesma pessoa sendo capaz de violência e de gentileza -e de cordialidade no sentido mais usual que se reconhece. Como a figura famosa de "O Médico e o Monstro" (Dr. Jekyll and Mr. Hyde). Mais ou menos assim, como no livro de Stevenson. Há exemplo das duas visões.

Folha - O filme "Cidade de Deus" teve no Reino Unido um de seus maiores êxitos no exterior. Os ingleses estão "descobrindo" a violência do Brasil?
Pallares-Burke -
Tenho impressão que não é uma descoberta. O interesse pelo Brasil é o interesse pelo Carnaval, pelo futebol, até pela mestiçagem. Apesar de isso estar sendo questionado, há a valorização da mestiçagem, de um país em que as várias raças e os vários credos convivem muito bem.

Folha - A idéia que o estrangeiro tem do Brasil tanto pode vir de Gilberto Freyre, com a democracia racial, quanto de Sérgio Buarque, por meio do conceito de homem cordial. Essas idéias formadoras da nossa imagem estão sendo questionadas?
Pallares-Burke -
A idéia de homem cordial para Sérgio Buarque foi, no geral, mal compreendida. A cordialidade, segundo ele, significava agir emocionalmente, por paixão.
E ele estava contrastando isso com as sociedades do Norte, protestantes, que agem mais pela regra, mais racionalmente. A cordialidade entendida nos termos que ele estava dispondo -e que depois foi apropriada de uma forma que não era a que ele pretendia- não significa que, necessariamente, você vai ser sempre uma pessoa simpática, agradável e gentil. Ela pode significar isso se você agir levado pela emoção.
Também pode ser isso, mas não necessariamente. Eu diria que a cordialidade, segundo Sérgio Buarque, dá margem aos dois comportamentos. Ao ato violento, movido por paixão, e também ao comportamento simpático, que é visto por tantos estrangeiros. Acho que essa duplicidade no Brasil é muito forte e tenho a impressão de que, para os estrangeiros, ela está meio no ar.

Folha - A senhora se surpreendeu com a vitória do "não"?
Pallares-Burke -
Eu me surpreendi! As pessoas estavam usando uma linguagem que me lembrava a dos norte-americanos, quando defendem o direito de legítima defesa, o que para mim é apavorante. No meu entender, é uma coisa que não tem muito a ver com o Brasil, com as tradições brasileiras.

Folha - O Brasil está importando discursos?
Pallares-Burke -
Estamos, infelizmente. Há vários pesquisadores que estão muito preocupados com essa importação recente. A questão das cotas, por exemplo. Infelizmente, está havendo um pouco disso.
O mito da democracia racial, por exemplo. Não é uma verdade, mas ela pode estimular, pode ir em direção a uma realidade muito longínqüa. É uma coisa muito mais positiva do que ter um mito do conflito, que pode gerar o conflito. Percebo aqui muito presente um discurso norte-americano. Discurso que, diga-se de passagem, está sendo muito contestado lá, por eles mesmos.

Folha - Como a sra. vê a discussão sobre o referendo em relação ao que Gilberto Freyre enxergava na sociedade brasileira?
Pallares-Burke -
Apesar de, em seus momentos mais otimistas, Gilberto Freyre realmente passar uma imagem do Brasil quase idílica, em outros momentos ele era muito crítico. Ele não escondeu a violência.
Eu levanto essa hipótese numa passagem de meu livro. Se você for buscar onde ele falou mais entusiasticamente a respeito desse Brasil paradisíaco em termos de mistura de culturas e mistura de raças pacíficas, foi quando escreveu ou falou para o público estrangeiro.

Folha - Existe a imagem histórica de que o país resolveu grandes conflitos na base da conciliação, de acordos. O resultado do referendo não contradiz essa imagem? Não mostra uma descrença no Estado paternalista?
Pallares-Burke -
Talvez a sociedade esteja desesperançada em relação a um Estado que a possa proteger. Agora, historicamente, o Brasil era visto lá fora e aqui também como um país relativamente pacífico se comparado com as outras repúblicas latino-americanas.
Isso era algo sempre mencionado no exterior. Que era um país que passou da Colônia para o Império e do Império para a República. Freyre, acho que repetindo outros, falava como revolução branca. Agora, se isso [o referendo] vai abalar a visão de um Brasil pacífico, eu não sei. Porque, na verdade, eu não concordo que essa seja a visão que se tem. São muitas as visões do Brasil.

Folha - O Brasil importou a idéia da democracia a partir da Revolução Francesa, da valorização do Estado. Isso pode estar mudando?
Pallares-Burke -
Eu não sei se, no caso da atual circunstância política, esse desencanto com o Estado é mais importante do que a tradição cultural. Tornou-se mais importante neste momento. O indivíduo está desesperançado com uma situação política na qual ele tinha mais esperança.


Gilberto Freyre - Um Vitoriano nos Trópicos
484 págs., R$ 58
de Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke.
Ed. Unesp (praça da Sé, 108, SP, CEP 01001-900, tel. 0/ xx/11/3242-7171).


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