São Paulo, domingo, 06 de novembro de 2005

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No polêmico "Depois da Teoria", que está sendo lançado no Brasil, o crítico inglês Terry Eagleton joga uma pá de cal nos estudos culturais e pede um resgate do vínculo entre o pessoal e o político

Uma moral universal

RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A forma expositiva de "Depois da Teoria", de Terry Eagleton, não deixa de desconcertar o leitor, revertendo sua expectativa.
Nada ali lembra o aridez do discurso acadêmico. Estão ausentes os cacoetes típicos desse gênero retórico, tal como o ato de se debruçar sobre os meandros internos de uma obra específica em busca de uma outra interpretação. Não se utilizam citações. As notas de rodapé podem ser contadas nos dedos da mão. Eagleton constrói seu texto como uma conversação agradável, mesclando o encadeamento preciso de uma aula ao tom coloquial de um diálogo em torno de uma mesa.
No entanto, apesar do tom despretensioso da narração, a questão posta pelo livro é extremamente ambiciosa. Trata-se, nada mais nada menos, de uma tentativa de estabelecer as novas formas e os novos tópicos de reflexão demandados pelo mundo contemporâneo. Dito em registro mais restrito, trata-se de atualizar os fundamentos teóricos dos estudos culturais em substituição ao esgotado pós-modernismo, que ainda domina esse campo de investigação.

Fundamentalismo
Segundo Eagleton, a figura cultural modelar de nossa época é o fundamentalismo, subdividido e polarizado no embate entre suas duas vertentes principais, a cristã e a islâmica. Diante dessa nova situação, o culturalismo pós-modernista, com sua agenda micropolítica, pautada pelas lutas das minorias étnicas e do feminismo, tornou-se obsoleto.
Para buscar uma alternativa, Eagleton retorna ao início, repensando a própria constituição dos estudos culturais.
Sucessor dos estudos literários e "humanísticos", os estudos culturais surgiram nos EUA, nas décadas de 1960 e 1970, como uma apropriação das explicações do fenômeno cultural propiciadas pelo estruturalismo, lingüística, semiótica, psicanálise, marxismo, filosofia, antropologia etc. Esse amálgama da obra de Althusser, Barthes, Bourdieu, Derrida, Foucault, Habermas, Jameson, Kristeva, Lacan, Lévi-Strauss, Edward Said e Raymond Williams cristalizou-se na "teoria" cultural à qual o título do livro alude.
Continuação do movimento modernista por outros meios, a teoria cultural preparou caminho para os estudos de gênero, da situação (pós)colonial, da perspectiva étnica, de temas como a vida cotidiana, a sexualidade, a cultura popular etc, sempre segundo um ponto de vista descentrado, procurando salientar as diferenças.
Eagleton indaga pelos fatores que conduziram os estudos culturais, pela via da reiteração desses procedimentos, à situação atual -perda de gume crítico, esgotamento do manancial que informava a ação política coletiva, banalização e trivialização da teoria. O que os teria levado à transmutação que girou o movimento do "contra" em "a favor"?
Parte da resposta gravita em torno das vicissitudes do fenômeno cultural nos últimos 40 anos. Na gênese da "teoria", cultura ainda significava o oposto de capitalismo. Refúgio do erótico, do simbólico, do ético, do mitológico, do sensorial, do emocional etc., agrupava tudo aquilo que se furtava às leis do mercado. Poucos anos depois, no momento histórico que Eagleton associa ao "pós-modernismo", a cultura já se tornara indistinguível do capitalismo.
Eagleton utiliza o termo "pós-modernismo" em uma dupla significação -como "corrente de idéias" e como "formação social". Como movimento intelectual, trata-se de um giro para o relativismo, de uma visão cética diante da verdade, dos valores universais e das narrativas históricas. Mas, apesar disso, apenas coloca outro fundamento no lugar de Deus, da natureza, da razão ou da história: a cultura -um termo capaz de juntar coisas tão díspares como prazer, arte, linguagem, desejo, mídia, corpo, gênero, etnicidade.
Por sua vez, a transformação da cultura em "estilo de vida" corresponderia a uma interpretação dos desdobramentos da vida social que enfatiza a "aparente desintegração da antiquada sociedade burguesa numa multidão de subculturas" assim como uma possível "desrealização" da sociedade, com a substituição da tríade fábrica-produção-realidade por mídia-consumo-imagem.

O "corpo material"
Nesses termos, a ênfase "pós-modernista" na ação cultural consuma o afastamento em relação à macropolítica (leia-se marxismo) iniciado pela "teoria".
A alternativa que "Depois da Teoria" sugere para o revigoramento dos estudos culturais se descortina a partir desse diagnóstico. Em lugar do culturalismo, que dissolve a materialidade em significado, Eagleton propõe como fundamento o "corpo material" -aquilo que compartilhamos de forma mais decisiva com o resto da espécie.
Elo entre o natural e o humano, o material e o significativo, o "corpo material" permitiria pensar a "moralidade" segundo critérios universais. Trata-se de retirar a moralidade do âmbito privado a que fora confinada e, à maneira do feminismo, resgatar o vínculo entre o pessoal, o moral e o político.
O apelo de Terry Eagleton em prol da necessidade de retomada da ação política coletiva como antídoto ao fundamentalismo é incontornável. Mas não fica muito claro como isso pode ser feito sem o apoio de uma análise do mundo atual, ou melhor, sem uma "teoria crítica do capitalismo". Corre-se o risco de novamente imaginar-se "do contra" estando "a favor".


Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da USP.


Depois da Teoria
304 págs., R$ 39,90
de Terry Eagleton. Tradução de Maria Lucia Oliveira. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20291-380, tel.0/xx/21/2585-2000).


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