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No polêmico "Depois da Teoria", que está sendo lançado no Brasil, o crítico inglês Terry Eagleton joga uma pá de cal nos estudos culturais e pede um resgate do vínculo entre o pessoal e o político
Uma moral universal
RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA
A forma expositiva de "Depois da Teoria", de Terry Eagleton, não deixa de desconcertar o leitor, revertendo
sua expectativa.
Nada ali lembra o aridez do discurso acadêmico. Estão ausentes os
cacoetes típicos desse gênero retórico, tal como o ato de se debruçar sobre os meandros internos de uma
obra específica em busca de uma outra interpretação. Não se utilizam citações. As notas de rodapé podem
ser contadas nos dedos da mão. Eagleton constrói seu texto como uma
conversação agradável, mesclando o
encadeamento preciso de uma aula
ao tom coloquial de um diálogo em
torno de uma mesa.
No entanto, apesar do tom despretensioso da narração, a questão posta pelo livro é extremamente ambiciosa. Trata-se, nada mais nada menos, de uma tentativa de estabelecer
as novas formas e os novos tópicos
de reflexão demandados pelo mundo contemporâneo. Dito em registro
mais restrito, trata-se de atualizar os
fundamentos teóricos dos estudos
culturais em substituição ao esgotado pós-modernismo, que ainda domina esse campo de investigação.
Fundamentalismo
Segundo Eagleton, a figura cultural modelar de nossa época é o fundamentalismo, subdividido e polarizado no embate entre suas duas vertentes principais, a cristã e a islâmica. Diante dessa nova situação, o culturalismo pós-modernista, com sua
agenda micropolítica, pautada pelas
lutas das minorias étnicas e do feminismo, tornou-se obsoleto.
Para buscar uma alternativa, Eagleton retorna ao início, repensando
a própria constituição dos estudos
culturais.
Sucessor dos estudos literários e
"humanísticos", os estudos culturais
surgiram nos EUA, nas décadas de
1960 e 1970, como uma apropriação
das explicações do fenômeno cultural propiciadas pelo estruturalismo,
lingüística, semiótica, psicanálise,
marxismo, filosofia, antropologia
etc. Esse amálgama da obra de Althusser, Barthes, Bourdieu, Derrida,
Foucault, Habermas, Jameson, Kristeva, Lacan, Lévi-Strauss, Edward
Said e Raymond Williams cristalizou-se na "teoria" cultural à qual o
título do livro alude.
Continuação do movimento modernista por outros meios, a teoria
cultural preparou caminho para os
estudos de gênero, da situação
(pós)colonial, da perspectiva étnica,
de temas como a vida cotidiana, a sexualidade, a cultura popular etc,
sempre segundo um ponto de vista
descentrado, procurando salientar
as diferenças.
Eagleton indaga pelos fatores que
conduziram os estudos culturais,
pela via da reiteração desses procedimentos, à situação atual -perda
de gume crítico, esgotamento do
manancial que informava a ação política coletiva, banalização e trivialização da teoria. O que os teria levado
à transmutação que girou o movimento do "contra" em "a favor"?
Parte da resposta gravita em torno
das vicissitudes do fenômeno cultural nos últimos 40 anos. Na gênese
da "teoria", cultura ainda significava
o oposto de capitalismo. Refúgio do
erótico, do simbólico, do ético, do
mitológico, do sensorial, do emocional etc., agrupava tudo aquilo que se
furtava às leis do mercado. Poucos
anos depois, no momento histórico
que Eagleton associa ao "pós-modernismo", a cultura já se tornara indistinguível do capitalismo.
Eagleton utiliza o termo "pós-modernismo" em uma dupla significação -como "corrente de idéias" e
como "formação social". Como movimento intelectual, trata-se de um
giro para o relativismo, de uma visão
cética diante da verdade, dos valores
universais e das narrativas históricas. Mas, apesar disso, apenas coloca
outro fundamento no lugar de Deus,
da natureza, da razão ou da história:
a cultura -um termo capaz de juntar coisas tão díspares como prazer,
arte, linguagem, desejo, mídia, corpo, gênero, etnicidade.
Por sua vez, a transformação da
cultura em "estilo de vida" corresponderia a uma interpretação dos
desdobramentos da vida social que
enfatiza a "aparente desintegração
da antiquada sociedade burguesa
numa multidão de subculturas" assim como uma possível "desrealização" da sociedade, com a substituição da tríade fábrica-produção-realidade por mídia-consumo-imagem.
O "corpo material"
Nesses termos, a ênfase "pós-modernista" na ação cultural consuma
o afastamento em relação à macropolítica (leia-se marxismo) iniciado
pela "teoria".
A alternativa que "Depois da Teoria" sugere para o revigoramento
dos estudos culturais se descortina a
partir desse diagnóstico. Em lugar
do culturalismo, que dissolve a materialidade em significado, Eagleton
propõe como fundamento o "corpo
material" -aquilo que compartilhamos de forma mais decisiva com
o resto da espécie.
Elo entre o natural e o humano, o
material e o significativo, o "corpo
material" permitiria pensar a "moralidade" segundo critérios universais. Trata-se de retirar a moralidade
do âmbito privado a que fora confinada e, à maneira do feminismo, resgatar o vínculo entre o pessoal, o
moral e o político.
O apelo de Terry Eagleton em prol
da necessidade de retomada da ação
política coletiva como antídoto ao
fundamentalismo é incontornável.
Mas não fica muito claro como isso
pode ser feito sem o apoio de uma
análise do mundo atual, ou melhor,
sem uma "teoria crítica do capitalismo". Corre-se o risco de novamente
imaginar-se "do contra" estando "a
favor".
Ricardo Musse é professor no departamento de sociologia da USP.
Depois da Teoria
304 págs., R$ 39,90
de Terry Eagleton. Tradução de Maria Lucia
Oliveira. Ed. Civilização Brasileira (r. Argentina, 171, Rio de Janeiro, RJ, CEP 20291-380, tel.0/xx/21/2585-2000).
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