|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Até os limites da realidade
da Redação
O Mais! publica a seguir a versão
integral de um texto de João Alexandre Barbosa que, devido a um
erro técnico, foi publicado incompleto no caderno de 18 de outubro.
JOÃO ALEXANDRE BARBOSA
especial para a Folha
Vejo agora que venho lendo a
obra de José Saramago há muito
tempo. A prova está na mistura de
edições em que tenho os seus textos publicados por duas ou três
editoras portuguesas e, a partir de
uma certa época, a brasileira
Companhia das Letras, que, para
quem lê no Brasil, seguindo aquilo
que é feito, do lado de Portugal,
pela Editorial Caminho, veio dar
uma certa ordem no caos editorial
que costumam sofrer os escritores
de língua portuguesa.
E por aí se vê que, embora tenha
começado como romancista desde 1947 com "Terra do Pecado",
publicado pela Editorial Minerva,
somente em 1977, com "Manual
de Pintura e Caligrafia, da Edição
Moraes, assume a identidade de
romancista que, para o público
mais amplo, atinge a sua plenitude
com a publicação, em 1982 e já pela Caminho, do "Memorial do
Convento".
Duas consequências para a reflexão: durante 30 anos entregou-se
ao jornalismo e à poesia (de que
dão notícias os livros "A Bagagem
do Viajante", "Os Apontamentos" e "Os Poemas Possíveis",
"Provavelmente Alegria" e "O
Ano de 1993", respectivamente) e
somente há 21 anos vem escrevendo os romances que lhe conferem,
sem qualquer sombra de dúvida, a
posição de um dos melhores prosadores de língua portuguesa deste século que vamos terminando
-e, para dizer a verdade, o plural
só está aí pela existência anterior
de João Guimarães Rosa.
São dez romances: além dos já
citados "Terra do Pecado",
"Manual de Pintura e Caligrafia"
e "Memorial do Convento", "O
Ano da Morte de Ricardo Reis",
"A Jangada de Pedra", "A História do Cerco de Lisboa", "O
Evangelho segundo Jesus Cristo",
"Ensaio sobre a Cegueira" e
"Todos os Nomes". E não é muito difícil estabelecer, desde logo,
uma marca narrativa que, por assim dizer, articula a variedade ficcional de cada um: a presença forte de um narrador, quase sempre
no limiar da dicção autobiográfica, que busca fixar, no patamar
mais objetivo da história e da realidade circunstancial, as dissonâncias das experiências subjetivas de
que a linguagem tem dificuldades
em dar conta.
Neste sentido, o chamado romance histórico sofre, com Saramago, um desvio fundamental: a
história circunstancial não lhe serve apenas para alimentar a imaginação, mas esta, por meio de pequenos e substanciais erros de leitura, como vai estar explícito naquele "não" introduzido pelo revisor de "A História do Cerco de
Lisboa", cria uma complexidade
de maior realidade, pois inclui no
real histórico as dissonâncias da
própria linguagem que é utilizada
para a sua apreensão. O que, por
outro lado, permite ou mesmo
imanta a presença contínua de
uma desconfiança de base para
com os dados históricos, frequentemente embaralhados pelo imaginário da linguagem. E como este, no caso de um romancista, está
constituído, sobretudo, pelas fontes próprias da tradição narrativa,
o chamado romance histórico, em
Saramago, inclui necessariamente, e de modo solidário, a história
do próprio gênero. Por isso, é possível dizer que, na esteira do que
há de mais inovador na narrativa
moderna e pós-moderna, o romance de Saramago é uma prolongada discussão acerca das relações possíveis entre a representação da realidade pela linguagem
da narrativa e as inserções operadas pela imaginação ficcional.
Quando, portanto, o próprio Saramago apontava Pessoa, Borges e
Kafka como, para ele, os mais importantes escritores do século, estava sinalizando para aquilo de
que a sua própria obra dá testemunho, isto é, quer para a multiplicidade de vozes ficcionais que
está em Pessoa, quer para a realidade da ficção, como está em Borges, quer para a precisão do sonho
e do imaginário de Kafka, tudo,
no entanto, por assim dizer, sob a
tensão de uma consciência dilacerante da linguagem. Veja-se, por
exemplo, o modo pelo qual, no
seu último romance, "Todos os
Nomes", transmite ao leitor lugares e tarefas que constituem o espaço da grande sala da Conservatória Geral do Registro Civil e que
serve de pórtico à narrativa:
"A disposição dos lugares na sala acata naturalmente as precedências hierárquicas, mas sendo,
como se esperaria, harmoniosa
deste ponto de vista, também o é
do ponto de vista geométrico, o
que serve para provar que não
existe nenhuma insanável contradição entre estética e autoridade.
A primeira linha de mesas, paralela ao balcão, é ocupada pelos oito
auxiliares de escrita a quem compete atender ao público. Atrás dela, igualmente centrada em relação ao eixo mediano que, partindo da porta, se perde lá no fundo,
nos confins escuros do edifício, há
uma linha de quatro mesas. Estas
pertencem aos oficiais. A seguir a
eles vêem-se os subchefes, e estes
são dois. Finalmente, isolado, sozinho, como tinha de ser, o conservador, a quem chamam chefe
no trato cotidiano.
A distribuição das tarefas pelo
conjunto dos funcionários satisfaz
uma regra simples, a de que os elementos de cada categoria têm o
dever de executar todo o trabalho
que lhes seja possível, de modo a
que só uma mínima parte dele tenha de passar à categoria seguinte.
Isto significa que os auxiliares de
escrita são obrigados a trabalhar
sem parar de manhã à noite, enquanto os oficiais o fazem de vez
em quando, os subchefes só muito
de longe em longe, o conservador
quase nunca. A contínua agitação
dos oito da frente, que tão depressa se sentam como se levantam,
sempre às corridas da mesa para o
balcão, do balcão para os ficheiros, dos ficheiros para o arquivo,
repetindo sem descanso estas e
outras sequências e combinações
perante a indiferença dos superiores, tanto imediatos como afastados, é um factor indispensável para a compreensão de como foram
possíveis e lamentavelmente fáceis de cometer os abusos, as irregularidades e as falsificações que
constituem a matéria central deste
relato".
Eis, portanto, um traço estilístico de Saramago em sua essência:
os dados da realidade objetiva são
expostos até os seus últimos limites, não obstante as interferências
irônicas, para que então possa
surgir o elemento de dissonância
que se introduz pela movimentação final do trecho citado e que é
sua decorrente: o erro, o abuso, a
irregularidade ou a falsificação
que transformam a rasura do nome num motivo de procura pelo
nome que é o romance e que por aí
faz o leitor retornar, mesmo que
não o saiba, às fontes primordiais
do gênero narrativo. Mas a busca
pelo nome, que é também a da
identidade, tudo envolve, desde
aquele que busca até o objeto que
se busca e, por isso, a história se
confunde com as histórias individuais, sejam as do personagem Sr.
José, sejam as deste romance que
dialoga com as suas origens. Nascimento e morte, fichas hierárquicas da Conservatória, diapasões
pelos quais se mede o pulsar da
realidade, é o espaço e o tempo
que são alterados e renomeados
pela presença do erro que somente o imaginário da ficção foi capaz
de provocar.
João Alexandre Barbosa é professor aposentado de teoria literária da USP. Autor, entre outros, de "A Biblioteca Imaginária" (Ateliê Editorial).
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|