São Paulo, domingo, 6 de dezembro de 1998

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ARTE
Exposição em São Paulo refaz os primórdios da dança no Brasil nos anos 50
Fantasia brasileira

ANA MAE BARBOSA
especial para a Folha

Gláucia Amaral, a convite do curador da 24ª Bienal, idealizou e conduziu a curadoria de uma exposição que está sendo apresentada em São Paulo, sobre o Ballet do 4º Centenário de São Paulo (1953-55), que é ao mesmo tempo uma experiência multidisciplinar e multicultural.
É multidisciplinar porque inter-relaciona de maneira reconstrutora desenhos de cenografia, figurinos originais e réplicas em preto-e-branco (para se diferenciarem dos originais), música acionada por censores por meio do movimento do espectador e pelo abrir de gavetas, cinema, fotografia, paredes cobertas por jornais antigos contextualizando política, estética e factualmente a época e os espetáculos. O projeto educacional para a exposição segue de maneira isomórfica essa multidisciplinaridade. Bem formados monitores estimulam as indagações interdisciplinares e bem montadas oficinas estão abertas ao público, incluindo desde as mais diversas danças populares aos mais sofisticados métodos de dança contemporânea, pintura, música (popular e erudita), cenografia, iluminação e figurino.
A ênfase que Gláucia dá à educação nas exposições que organiza é incomum na política cultural do Brasil. A Bienal deste ano, por exemplo, em vez de monitores/orientadores de público, como nos anos anteriores, tem apenas "tira-dúvidas", assim identificados nas camisetas que usam.
O Ballet do 4º Centenário que a exposição homenageia deu início à profissionalização da dança no Brasil e foi organizado e dirigido pelo húngaro/italiano Aurélio Milloss. A vida cultural da cidade de São Paulo já muito devia aos italianos, principalmente a Pietro Maria Bardi e a Francisco Matarazzo. Faltava em seu currículo o título de mecenas da dança. Nomeado encarregado da subcomissão artística da entidade criada para organizar os festejos dos 400 anos de fundação da cidade de São Paulo, convidou Aurélio Milloss, coreógrafo, diretor de dança, primeiro bailarino do teatro Real de Roma e coreógrafo do Scala de Milão, para colocar a dança mais adequada e sistematicamente no mapa cultural da cidade, dando-lhe projeção internacional. Milloss aceitou a encomenda de criar cinco coreografias baseadas em temas brasileiros, com música de compositores brasileiros, como Francisco Mignone, Souza Lima, Camargo Guarnieri, Villa-Lobos
Vivia-se no Brasil politicamente um momento de euforia desenvolvimentista, ufanismo e afirmação de valores nacionalistas. A exposição demonstra visualmente esses valores correntes nos anos 50 por meio de um espetáculo de multivisão, montagem e edição de filmes e fotos da época, cujo espaço circular, monumental, mas ao mesmo tempo intimista, foi concebido pela própria curadora e pelo designer Geraldo Vilaseca. Em contrapartida, na saída da exposição se propõe ao espectador outra interpretação para a São Paulo de hoje por meio da significante obra de Anselm Kiefer, "Filha de Lilith" (1998), revelando a sedução quase ingênua da cidade grande sobrepujada pela força destruidora desta ingenuidade, destruidora do próprio ideal modernista de desenvolvimento e da monumentalidade, reduzindo-a a um fantasma da esperança de outrora pela ação de um poder mítico que destrói os sem-poder, aqueles que poderiam vir a realizar as utopias.
A ambiguidade entre intimismo e monumentalidade, negação e afirmação, perpassa toda a exposição, desde a relação entre a arquitetura do edifício, uma antiga fábrica abandonada por muitos anos, e a arquitetura interna da montagem, seus labirintos que combinam becos estreitos com grandes espaços abertos, pequenos nichos de contemplação e grandes salões para cursos, oficinas e espetáculos.
As sínteses de relações bipolares, a destruição de barreiras entre códigos culturais e a reconstrução das diferenças em unidades significantes caracterizam o trabalho curatorial de Gláucia Amaral. Sua preocupação em inter-relacionar o erudito e o popular, o público e o privado, o internacional e o local é anterior à decisão da Bienal em eleger um tema culturalista, a antropofagia, para sua 24ª edição.
O ideal antropofágico, do modernista Oswald de Andrade, baseado na utopia esperançosa de que seríamos capazes de engolir o Primeiro Mundo, a cultura dos colonizadores, e virmos a ser mais significativos e poderosos do que o próprio Primeiro Mundo, nunca se realizou e dificilmente se realizará, agora que somos comandados de fora para dentro pelo FMI.
Os conceitos como hibridismo, sincretismo, adaptação/contribuição original, localismo/internacionalismo que esta exposição explora são mais adequados para explicar as atuais trocas baseadas no diálogo intercultural e suas muitas incoerências.
Por exemplo, o livro de Patrizia Velori ("Milloss - Un Maestro della Coreografia tra Espressionismo e Classitá", Lucca) e a mostra memorial por ela organizada para essa exposição nos revelam um Milloss flexível para com a cultura do outro. Os balés que criou baseados na cultura brasileira foram muito comemorados pela imprensa, mas não tiveram o mesmo sucesso de público que os balés que já faziam parte do repertório europeu. Como era politicamente incorreto recusar o nacional, muitos culparam Milloss pelo insucesso -por ter representado a cultura brasileira por meio de estereótipos. A verdade é que, para as elites frequentadoras das artes, cangaceiras, bumba-meu-boi, vida indígena e vida de pobre nas ruas eram mais estrangeiros do que os bosques de Viena, as figuras da commedia dell'arte e o "Bolero" de Ravel.
Um dos pontos altos da exposição é a mostra dos desenhos para figurinos e cenografia. Destaco os de Noêmia Mourão e Irene Ruchti, únicas mulheres entre os cenógrafos. O diagrama de trabalho e desenhos de máscaras e figurinos de Flávio de Carvalho têm a contenção de um expressionista jogando xadrez. Os mais influenciados por artistas europeus foram Portinari ("Passacaglia"), pelos telões de Miró para o Balé de Monte Carlo e Di Cavalcanti ("Lenda do Amor Impossível") pelos figurinos de Léger para os Balés Suecos. Os projetos de Lasar Segall ("O Mandarim Maravilhoso") e de Santa Rosa ("Deliciae Populi") chegaram a ser repetidos posteriormente em encenações na Europa, assim como os de dois estrangeiros convidados, o português Anahory ("Indiscrições") e o italiano Toti Scialoja ("Caprichos"), o primeiro mais formalista, encaminhando-se para um abstracionismo geométrico, enquanto o segundo parecia embebido em resquícios dos metafísicos italianos metabolizados pelo expressionismo.
Muitas fotos complementam as informações visuais sobre os cenários e compensam a apresentação dos poucos desenhos de Heitor dos Prazeres ("O Guarda-Chuva"), de Quirino da Silva ("No Vale da Inocência") e de Aldo Calvo ("Loteria Vienense" e "Ilha Eterna"), italiano naturalizado brasileiro responsável técnico por toda a cenografia, uma figura já na época muito influente no teatro do Brasil. Os desenhos de Oswaldo de Andrade Filho ("Bolero") e de Clovis Graciano ("Uirapuru") revelam artistas com experiência em cenografia e os de Burle Marx ("Petrouchka"), uma construção de espaço precisa, valorizando a abstração.
Deixo para me referir por último aos bem construídos desenhos de Darcy Penteado ("Sonata de Angústia"), que nos remetem à violência de guerras que não vivemos, mas das quais participamos. Ele foi o único dos cenógrafos brasileiros escolhido por Milloss, contrariando escolha anterior de Francisco Matarazzo.
A maioria dos desenhos expostos foi encontrada em coleções particulares ou fundações culturais na Europa.
Cultura e história têm muitas fronteiras, mas a exposição demonstra que elas todas são permeáveis, criando-se uma trama de múltiplas significações.

O evento: A exposição "O Ballet do 4º Centenário" acontece até o dia 13 de dezembro no Sesc Belenzinho (r. Álvaro Ramos, 991, estação Belém do metrô, tel. 011/6096-8143);


Ana Mae Barbosa é autora, entre outros, do recém-publicado "Tópicos Utópicos" (Comarte).



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