São Paulo, domingo, 07 de fevereiro de 2010

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Ponto de fuga

Mão de mestre


Na mostra sobre Bandeira de Mello, os estupendos desenhos de caças, momentos de apogeu, têm data recente: evocam a melhor literatura e cinematografia fantásticas


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

H á ali as grandes tristezas dos que morrem pobremente, dos que dormem nas ruas, dos que trabalham com esforço e dureza.
Há a raiva violenta, animal, comunicando-se entre homens e cães, mística do inferno que brota em noturnos horripilantes, em brumas demoníacas.
Há assuntos religiosos, cuja espiritualidade paira além das crenças e das igrejas. Há solidões isoladas em campos desertos, que evocam as invenções da pintura metafísica, mas sem nenhuma receita aplicada, com o gosto pelas ricas massas pictóricas e cromáticas. Há nus femininos, traçados com amorosa sensualidade. Os temas nunca se prendem à circunstância, à crônica ou à descrição corriqueira: tendem sempre para a generalidade sintética e universal.
São esses os sentimentos que dominam na mostra de Bandeira de Mello, ora na Caixa Cultural do Rio de Janeiro.
Nos anos 1970, o artista havia executado dois imensos painéis, panorâmicos, para o edifício dessa instituição: nada mais coerente que fosse ali programada uma exposição de sua obra. Pode-se apenas lamentar que ela não seja mais ampla e ambiciosa.
É uma quintessência, porém, e toma o espectador pela alta qualidade. Vem acompanhada de um catálogo mais completo e generoso no número de ilustrações, que são de boa qualidade.
A mostra permite apreender os meandros particulares e a unidade que preside a tudo, definitiva e subjacente. Essa unidade foi constituída pela herança de grandes tradições. Elas ressurgem, renovadas.
Arcanos
Bandeira de Mello domina o ofício de pintar. A segurança do desenho; o sentido monumental da composição; a harmonização das cores, ora ricas, acídulas, raras, ora terrosas e contidas; tudo indica fidelidade a uma sólida formação perfeitamente assimilada.
Haveria aí um risco: o uso seguro de fórmulas, a repetição exterior de um estilo, a confiança na habilidade fácil. Mas percebe-se que cada quadro ou cada desenho configura-se, para o artista, como um problema novo. Essa inquietação o conduz para soluções imprevistas; nem um quadro nem um desenho repetem recursos já encontrados e empregados.
Sua arte tem vocação narrativa. O pintor, de um modo ou de outro, está sempre contando uma história misteriosa. Mistério que não é armado por artifícios, mas que emana sabe-se lá de que funduras.

Intersecções
São vários os fluxos artísticos do passado que se cruzam nas obras de Bandeira de Mello.
O legado clássico, mediterrâneo, centrado nos poderes do corpo humano é muito forte. A figuração corpórea determina e centra.
Há também ecos da arte simbolista e metafísica, em que Giotto [século 14] ou os quatrocentistas se integram, instrumentos da monumentalidade e da solidão.
Há um paralelo possível com o muralismo social do século 20 e com Portinari, um Portinari que estivesse desembaraçado de estratégias afirmativas ou patéticas.
No entanto, essas origens não fazem de Bandeira de Mello um artista residual, um epígono incapaz de sair do passado. Ele não marca passo, porque sua pintura é viva e intensa, poderosamente atual pela intrínseca força artística.
Os estupendos desenhos de caças, momentos de apogeu, têm data recente: evocam a melhor literatura e cinematografia fantásticas.

Lugares
Bandeira de Mello tem 80 anos. Suas obras são lições de constância, invenção e presença: elas exaltam e consolam. Mantêm-se fiéis a uma elevada e nobre concepção de arte que lhe assegura a permanência e é bem rara hoje em dia.


jorgecoli@uol.com.br


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