São Paulo, domingo, 07 de fevereiro de 2010

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Dieta com afeto

Historiador relembra os sabores da infância passada em Londres, dividida entre as iguarias da família judaica, a tradição inglesa e a influência dos imigrantes

TONY JUDT

O fato de ter crescido à base de comida ruim não significa que não sinta saudade dela. Minha infância gastronômica foi marcada por tudo o que havia de menos inspirador na culinária inglesa tradicional, aliviado por toques de cosmopolitismo europeu introduzidos vez ou outra pelas memórias cada vez mais tênues de meu pai de sua juventude na Bélgica e intercalado por lembretes semanais de uma herança inteiramente outra: os jantares da noite do shabat na casa de meus avós, judeus do Leste Europeu.
Essa mistura curiosa não ajudou muito a aguçar minhas papilas gustativas -foi apenas quando vivi na França, como estudante de pós-graduação, que tive contato com boa comida de maneira regular-, mas veio se somar às confusões de minha identidade juvenil.
Minha mãe nasceu na parte menos judaica da velha East End londrina: no cruzamento das ruas Burdett e Commercial, a poucas quadras ao norte das docas de Londres.
Esse acaso topográfico infeliz -na ausência do ambiente intensamente judaico de Stepney Green, algumas centenas de metros mais ao norte, ela sempre se sentiu um pouco alheia ao lugar onde vivia- intensificou muitos aspectos de outro modo curiosos de sua personalidade.

Comida esquerdista
Diferentemente de meu pai, minha mãe nutria profundo respeito pelo rei e pela rainha e, mais tarde, sempre se sentiu tentada a ficar em pé durante o discurso da rainha na TV.
Ela era discreta sobre sua condição judaica, a ponto de deixar entrever que se envergonhava dela, formando um contraste com o caráter abertamente estrangeiro e iídiche do resto de nossa extensa família.
E, em um tributo invertido à indiferença de sua própria mãe às tradições judaicas, minha mãe não sabia praticamente nada sobre a culinária judaica.
Por isso, fui criado à base de comida inglesa. Mas não peixe com fritas, "spotted dick" [pudim doce cozido ao vapor e com frutas secas], "toad in the hole" [salsichas servidas em uma travessa com purê de batatas ou massa salgada], "Yorkshire pudding" [pudim de massa salgada servido com carne ao molho] ou outras iguarias da cozinha britânica.
Minha mãe desprezava esses pratos, vendo-os como pouco saudáveis; ela pode ter crescido cercada por não judeus, mas exatamente por essa razão ela e sua família se mantinham à parte e pouco sabiam sobre o mundo doméstico de seus vizinhos, que viam com receio e desconfiança.
Assim, ela não fazia ideia de como preparar "iguarias inglesas". Seus encontros com vegetarianos e veganos, por meio dos amigos de meu pai no Partido Socialista da Grã-Bretanha, lhe haviam ensinado as virtudes de pão preto, arroz integral, vagens e outros pratos básicos "saudáveis" de uma dieta esquerdista eduardiana.
Mas também não sabia como preparar arroz integral. Por isso, fazia como todas as outras cozinheiras da Inglaterra naquela época: fervia tudo até que se desmanchasse e perdesse qualquer resquício de sabor.
Foi assim que acabei por associar a comida inglesa não tanto à ausência de sutileza, mas à ausência de qualquer sabor, simplesmente. Comíamos pão preto Hovis, que, à sua maneira saudável, me parecia ainda mais sem graça do que as torradas brancas borrachosas servidas com o chá da tarde nas casas de meus amigos.
Comíamos carne fervida, verduras fervidas e, muito ocasionalmente, versões fritas das mesmas. O queijo, quando aparecia em nossa mesa, era sempre holandês -por razões que nunca pude compreender.
O chá preto era onipresente.
Meus pais desaprovavam os refrigerantes -outro legado infeliz de seus flertes com a política-, de modo que tomávamos bebidas frutificadas sem gás ou, mais tarde, Nescafé. Graças a meu pai, Camembert, saladas, café de verdade e outras delícias apareciam sobre nossa mesa de tempos em tempos. Mas minha mãe as via com a mesma desconfiança que nutria em relação a outras importações da Europa continental, tanto gastronômicas quanto humanas.
Assim, o contraste com a comida que minha avó paterna preparava para nós todas as sextas-feiras à noite em sua casa na zona norte de Londres não poderia ter sido maior.
Meu avô era judeu polonês; minha avó tinha nascido numa pequena cidade de maioria judaica na Lituânia. O gosto deles em matéria de comida tendia para as tradições judaicas do nordeste da Europa.
Foi apenas décadas mais tarde que eu iria conhecer os sabores, as variedades e as texturas da culinária judaica do centro-sul europeu (especialmente da Hungria) e eu tampouco tinha a menor familiaridade com a cozinha mediterrânea da tradição sefardita.
Minha avó, que chegara a Londres vinda de Pilvistock, com escala em Antuérpia [Bélgica], nada sabia sobre saladas e nunca conhecera uma verdura que não torturasse até a morte em uma panela. Mas com molhos, frangos, peixes, carne bovina, raízes e frutas ela fazia mágicas.

Macio e crocante
A característica marcante dos jantares de sexta era o contraste repetido entre o macio e o crocante, o doce e o salgado.
Batatas ou nabos sempre eram marrons, macios e pareciam ter sido encharcados em açúcar.
Pepinos, cebolas e outros legumes pequenos e inofensivos chegavam à mesa crocantes e em conserva.
A carne se desmanchava e caía do garfo, tendo caído dos ossos muito tempo antes. Também ela era marrom e macia.
Os peixes -"gefilte", cozidos, em conserva, fritos ou defumados- eram onipresentes, e a casa sempre me parecia recender a seres marinhos temperados e em conserva.
O que é interessante, e talvez revelador, é que não tenho lembrança da textura ou da origem dos peixes (provavelmente carpas). Era sua forma de preparo que notávamos.
Depois do peixe e dos legumes, vinha a sobremesa. Toda espécie de frutas cozidas e comprimidas, com destaque especial para ameixas e peras, nunca deixava de surgir após o prato principal.
De vez em quando, as frutas tinham sido comprimidas em uma massa doce espessa do tipo tradicionalmente empregado no hamentasch de Purim, mas o mais frequente era a compota vir desacompanhada.
As bebidas consistiam exclusivamente em um vinho horrivelmente doce para os adultos e chá de limão para todos.
Acompanhada de algo mais consistente sob a forma de pão preto, challah [pão trançado judaico especial do shabat], bolas de matzá [pão ázimo] em uma sopa ou bolinhos de massa salgada de todas as formas e variedades possíveis (mas com um sabor apenas suave), essa refeição teria sido reconhecível para qualquer pessoa nascida entre a Alemanha e a Rússia, a Letônia e a Romênia no último meio milênio.
Para mim, transportado semanalmente de Putney a Pilvistok, ela representava a família, a familiaridade, o sabor e as raízes. Nunca sequer tentei explicar a meus amigos de escola o que comíamos nas noites de sexta nem o que aquilo significava para mim.
À medida que fui crescendo, descobria outras maneiras de acrescentar sabor a uma dieta doméstica eterna e insuportavelmente insossa.
Na Inglaterra daqueles tempos, havia apenas três caminhos que conduziam à comida interessante, se seus avós não fossem originários de terras estrangeiras exóticas. Havia a comida italiana, ainda limitada ao Soho e às margens boêmias das classes candidatas a falantes.
Isso era algo que estava fora do alcance de meu orçamento adolescente ou estudantil. Havia a comida chinesa, não especialmente interessante ou amplamente disponível, e mesmo assim comercialmente adaptada ao gosto britânico.
Os únicos restaurantes chineses sérios que havia em Londres antes de meados dos anos 1960 ficavam no East End e eram frequentados por marinheiros chineses e alguns poucos imigrantes do leste asiático. Os cardápios com frequência não tinham tradução para o inglês, e os pratos eram desconhecidos dos moradores locais.

Passagem para a Índia
A verdadeira rota de fuga conduzia às Índias. Acho que meus pais nunca chegaram a ir a um restaurante indiano -minha mãe alimentava a curiosa ilusão de que, enquanto a comida chinesa (sobre a qual ela nada sabia) seria de alguma maneira "limpa", a indiana era camuflada em sabores, de maneira suspeita, e provavelmente preparada no chão.
Nunca compartilhei desse seu preconceito; passei a maior parte de meus anos como estudante e gastei a maior parte de minha renda disponível nessa época comendo em restaurantes indianos em Londres e Cambridge.
Eu simplesmente achava a comida indiana deliciosa, mas, refletindo a posteriori, é provável que eu tenha feito uma associação inconsciente com a mesa de meus avós.
A comida indiana também era feita de proteínas cozidas em excesso e encharcadas em molhos saborosos. Seus pães eram macios, seus temperos, bem condimentados, seus legumes, doces. No papel de sobremesa, chegavam à mesa sorvetes de frutas ou exóticas compotas de frutas. E a comida era mais bem acompanhada por cerveja, uma bebida da qual mal tínhamos conhecimento em casa e que meu pai desaprovava.
Ele nunca articulou a ideia, mas tenho certeza de que em algum lugar em seu íntimo se escondia um preconceito contra os ingleses, bebedores de cerveja e frequentadores de pubs. Ele era suficientemente europeu para tomar vinho decente, mas, com essa exceção, compartilhava o preconceito judaico mais antigo contra o consumo excessivo de álcool.

Saudades
A comida indiana me fez mais inglês. Como a maioria dos ingleses de minha geração, hoje penso na comida indiana "delivery" como um prato nativo, importado séculos atrás.
Sou bastante inglês para pensar na comida indiana como um aspecto da Inglaterra de que sinto saudade aqui nos EUA, onde a comida chinesa é a culinária étnica que tem a preferência local. Mas meu caráter inglês também me leva a sentir falta da culinária judaica europeia oriental em sua forma adaptada à Inglaterra.
Se eu algum dia me propusesse seriamente a partir "em busca do sabor passado", começaria com carne bovina cozida e nabo assado, seguidos por "tikka massala" de frango e "wollies" em conserva com challah, cerveja Kingfisher e chá de limão adoçado. E o que dizer da madalena que desencadearia uma memória? Naan mergulhado em sopa de bolas de matzá, servido por um garçom de Madras [Índia] falando iídiche.
Somos o que comemos. E eu sou muito inglês.


TONY JUDT é historiador e professor da Universidade de Nova York. É autor de "Pós-Guerra" (ed. Objetiva). Copyright: Tony Judt.
Tradução de Clara Allain.



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