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Dieta com afeto
Historiador relembra os sabores da infância passada em Londres, dividida entre as iguarias da família judaica, a tradição inglesa e a influência dos imigrantes
TONY JUDT
O fato de ter crescido à base de comida ruim não significa que não sinta
saudade dela.
Minha infância gastronômica foi marcada por tudo o que
havia de menos inspirador na
culinária inglesa tradicional,
aliviado por toques de cosmopolitismo europeu introduzidos vez ou outra pelas memórias cada vez mais tênues de
meu pai de sua juventude na
Bélgica e intercalado por lembretes semanais de uma herança inteiramente outra: os jantares da noite do shabat na casa
de meus avós, judeus do Leste Europeu.
Essa mistura curiosa não
ajudou muito a aguçar minhas
papilas gustativas -foi apenas
quando vivi na França, como
estudante de pós-graduação,
que tive contato com boa comida de maneira regular-, mas
veio se somar às confusões de
minha identidade juvenil.
Minha mãe nasceu na parte
menos judaica da velha East
End londrina: no cruzamento
das ruas Burdett e Commercial, a poucas quadras ao norte
das docas de Londres.
Esse acaso topográfico infeliz -na ausência do ambiente
intensamente judaico de Stepney Green, algumas centenas
de metros mais ao norte, ela
sempre se sentiu um pouco
alheia ao lugar onde vivia- intensificou muitos aspectos de
outro modo curiosos de sua personalidade.
Comida esquerdista
Diferentemente de meu pai,
minha mãe nutria profundo
respeito pelo rei e pela rainha e,
mais tarde, sempre se sentiu
tentada a ficar em pé durante o
discurso da rainha na TV.
Ela era discreta sobre sua
condição judaica, a ponto de
deixar entrever que se envergonhava dela, formando um contraste com o caráter abertamente estrangeiro e iídiche do
resto de nossa extensa família.
E, em um tributo invertido à indiferença de sua própria mãe às
tradições judaicas, minha mãe
não sabia praticamente nada
sobre a culinária judaica.
Por isso, fui criado à base de
comida inglesa. Mas não peixe
com fritas, "spotted dick" [pudim doce cozido ao vapor e com
frutas secas], "toad in the hole"
[salsichas servidas em uma travessa com purê de batatas ou
massa salgada], "Yorkshire pudding" [pudim de massa salgada servido com carne ao molho] ou outras iguarias da cozinha britânica.
Minha mãe desprezava esses
pratos, vendo-os como pouco
saudáveis; ela pode ter crescido
cercada por não judeus, mas
exatamente por essa razão ela e
sua família se mantinham à
parte e pouco sabiam sobre o
mundo doméstico de seus vizinhos, que viam com receio e
desconfiança.
Assim, ela não fazia ideia de
como preparar "iguarias inglesas". Seus encontros com vegetarianos e veganos, por meio
dos amigos de meu pai no Partido Socialista da Grã-Bretanha,
lhe haviam ensinado as virtudes de pão preto, arroz integral,
vagens e outros pratos básicos
"saudáveis" de uma dieta esquerdista eduardiana.
Mas também não sabia como
preparar arroz integral. Por isso, fazia como todas as outras
cozinheiras da Inglaterra naquela época: fervia tudo até que
se desmanchasse e perdesse
qualquer resquício de sabor.
Foi assim que acabei por associar a comida inglesa não
tanto à ausência de sutileza,
mas à ausência de qualquer sabor, simplesmente. Comíamos
pão preto Hovis, que, à sua maneira saudável, me parecia ainda mais sem graça do que as
torradas brancas borrachosas
servidas com o chá da tarde nas
casas de meus amigos.
Comíamos carne fervida,
verduras fervidas e, muito ocasionalmente, versões fritas das
mesmas. O queijo, quando aparecia em nossa mesa, era sempre holandês -por razões que
nunca pude compreender.
O chá preto era onipresente.
Meus pais desaprovavam os refrigerantes -outro legado infeliz de seus flertes com a política-, de modo que tomávamos
bebidas frutificadas sem gás ou,
mais tarde, Nescafé. Graças a
meu pai, Camembert, saladas,
café de verdade e outras delícias apareciam sobre nossa mesa de tempos em tempos.
Mas minha mãe as via com a
mesma desconfiança que nutria em relação a outras importações da Europa continental,
tanto gastronômicas quanto humanas.
Assim, o contraste com a comida que minha avó paterna
preparava para nós todas as
sextas-feiras à noite em sua casa na zona norte de Londres
não poderia ter sido maior.
Meu avô era judeu polonês;
minha avó tinha nascido numa
pequena cidade de maioria judaica na Lituânia. O gosto deles
em matéria de comida tendia
para as tradições judaicas do
nordeste da Europa.
Foi apenas décadas mais tarde que eu iria conhecer os sabores, as variedades e as texturas
da culinária judaica do centro-sul europeu (especialmente da
Hungria) e eu tampouco tinha a
menor familiaridade com a cozinha mediterrânea da tradição
sefardita.
Minha avó, que chegara a
Londres vinda de Pilvistock,
com escala em Antuérpia [Bélgica], nada sabia sobre saladas e
nunca conhecera uma verdura
que não torturasse até a morte
em uma panela. Mas com molhos, frangos, peixes, carne bovina, raízes e frutas ela fazia
mágicas.
Macio e crocante
A característica marcante
dos jantares de sexta era o contraste repetido entre o macio e
o crocante, o doce e o salgado.
Batatas ou nabos sempre eram
marrons, macios e pareciam ter
sido encharcados em açúcar.
Pepinos, cebolas e outros legumes pequenos e inofensivos
chegavam à mesa crocantes e em conserva.
A carne se desmanchava e
caía do garfo, tendo caído dos
ossos muito tempo antes. Também ela era marrom e macia.
Os peixes -"gefilte", cozidos,
em conserva, fritos ou defumados- eram onipresentes, e a
casa sempre me parecia recender a seres marinhos temperados e em conserva.
O que é interessante, e talvez
revelador, é que não tenho lembrança da textura ou da origem
dos peixes (provavelmente carpas). Era sua forma de preparo
que notávamos.
Depois do peixe e dos legumes, vinha a sobremesa. Toda
espécie de frutas cozidas e
comprimidas, com destaque
especial para ameixas e peras,
nunca deixava de surgir após o
prato principal.
De vez em quando, as frutas
tinham sido comprimidas em
uma massa doce espessa do tipo tradicionalmente empregado no hamentasch de Purim,
mas o mais frequente era a
compota vir desacompanhada.
As bebidas consistiam exclusivamente em um vinho horrivelmente doce para os adultos e
chá de limão para todos.
Acompanhada de algo mais
consistente sob a forma de pão
preto, challah [pão trançado judaico especial do shabat], bolas
de matzá [pão ázimo] em uma
sopa ou bolinhos de massa salgada de todas as formas e variedades possíveis (mas com um
sabor apenas suave), essa refeição teria sido reconhecível para
qualquer pessoa nascida entre
a Alemanha e a Rússia, a Letônia e a Romênia no último meio
milênio.
Para mim, transportado semanalmente de Putney a Pilvistok, ela representava a família, a familiaridade, o sabor e as
raízes. Nunca sequer tentei explicar a meus amigos de escola
o que comíamos nas noites de
sexta nem o que aquilo significava para mim.
À medida que fui crescendo,
descobria outras maneiras de
acrescentar sabor a uma dieta
doméstica eterna e insuportavelmente insossa.
Na Inglaterra daqueles tempos, havia apenas três caminhos que conduziam à comida
interessante, se seus avós não
fossem originários de terras estrangeiras exóticas. Havia a comida italiana, ainda limitada ao
Soho e às margens boêmias das
classes candidatas a falantes.
Isso era algo que estava fora
do alcance de meu orçamento
adolescente ou estudantil. Havia a comida chinesa, não especialmente interessante ou amplamente disponível, e mesmo
assim comercialmente adaptada ao gosto britânico.
Os únicos restaurantes chineses sérios que havia em Londres antes de meados dos anos
1960 ficavam no East End e
eram frequentados por marinheiros chineses e alguns poucos imigrantes do leste asiático.
Os cardápios com frequência
não tinham tradução para o inglês, e os pratos eram desconhecidos dos moradores locais.
Passagem para a Índia
A verdadeira rota de fuga
conduzia às Índias. Acho que
meus pais nunca chegaram a ir
a um restaurante indiano -minha mãe alimentava a curiosa
ilusão de que, enquanto a comida chinesa (sobre a qual ela nada sabia) seria de alguma maneira "limpa", a indiana era camuflada em sabores, de maneira suspeita, e provavelmente
preparada no chão.
Nunca compartilhei desse
seu preconceito; passei a maior
parte de meus anos como estudante e gastei a maior parte de
minha renda disponível nessa
época comendo em restaurantes indianos em Londres e
Cambridge.
Eu simplesmente achava a
comida indiana deliciosa, mas,
refletindo a posteriori, é provável que eu tenha feito uma associação inconsciente com a
mesa de meus avós.
A comida indiana também
era feita de proteínas cozidas
em excesso e encharcadas em
molhos saborosos. Seus pães
eram macios, seus temperos,
bem condimentados, seus legumes, doces.
No papel de sobremesa, chegavam à mesa sorvetes de frutas ou exóticas compotas de
frutas. E a comida era mais bem
acompanhada por cerveja, uma
bebida da qual mal tínhamos
conhecimento em casa e que
meu pai desaprovava.
Ele nunca articulou a ideia,
mas tenho certeza de que em
algum lugar em seu íntimo se
escondia um preconceito contra os ingleses, bebedores de
cerveja e frequentadores de
pubs. Ele era suficientemente
europeu para tomar vinho decente, mas, com essa exceção,
compartilhava o preconceito
judaico mais antigo contra o
consumo excessivo de álcool.
Saudades
A comida indiana me fez
mais inglês. Como a maioria
dos ingleses de minha geração,
hoje penso na comida indiana
"delivery" como um prato nativo, importado séculos atrás.
Sou bastante inglês para pensar na comida indiana como
um aspecto da Inglaterra de
que sinto saudade aqui nos
EUA, onde a comida chinesa é a
culinária étnica que tem a preferência local. Mas meu caráter
inglês também me leva a sentir
falta da culinária judaica europeia oriental em sua forma
adaptada à Inglaterra.
Se eu algum dia me propusesse seriamente a partir "em
busca do sabor passado", começaria com carne bovina cozida e
nabo assado, seguidos por "tikka massala" de frango e "wollies" em conserva com challah,
cerveja Kingfisher e chá de limão adoçado. E o que dizer da
madalena que desencadearia
uma memória? Naan mergulhado em sopa de bolas de matzá, servido por um garçom de
Madras [Índia] falando iídiche.
Somos o que comemos. E eu sou muito inglês.
TONY JUDT é historiador e professor da Universidade de Nova York. É autor de "Pós-Guerra"
(ed. Objetiva). Copyright: Tony Judt.
Tradução de Clara Allain.
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